24/10/09

O caso Freeport e o fim do romancista



O notável no caso Freeport não é a longa demora do processo. Não é dos mais morosos na Justiça portuguesa. O que merece admiração, talvez louvor, é a narrativa que o suporta. Se observarmos um romance, ele tem, por norma, um autor. Este cria o narrador que conta a história, compondo as acções e os pensamentos das personagens. A composição é a arte suprema da narrativa romanesca. De certa maneira, um romance é uma coisa simples. Basta criar um bom narrador. Dependerá deste, passe a ironia, a qualidade da narrativa, fundada na arte da composição. No caso Freeport, não há autor. Não havendo autor, não há narrador. Mas apesar disso, existe narrativa, a qual possui uma intriga notável, onde as peripécias se sucedem como se tivessem sido criadas por um autêntico romancista, peripécias essas que vão atando o nó, sem que o leitor desprevenido consiga, apesar das revelações, antecipar qual vai ser o desenlace. Esta narrativa é a consumação da modernidade romanesca, pois cada personagem compõe autonomamente parte da história. Imprensa, Ministério Público, Polícia Judicária, arguidos, etc. vão propondo textos que acabam por se compor entre si e por si mesmos, de forma a que o nó seja cada vez mais cerrado e a narrativa possa prosseguir, como nas telenovelas ou nos antigos romances publicados em folhetins nos jornais. O caso Freeport é uma prova a favor do fim dos romancistas, mas não do romance. Hoje em dia, para haver um belo romance não é preciso autor, bastam as personagens. A narrativa escreve-se por si mesma. E no entanto, apesar do carácter admirável da ficção, todos temos a sensação, quiçá errónea, de que um processo judicial deveria obedecer a outro género literário que não o romance, mesmo que este seja auto-poiético.

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