A visão dos outros
Aprende-se sempre com o resultado da visão dos outros sobre nós. Geralmente, essa visão recata-se na intimidade da consciência, dissimula-se, é generosa connosco ao silenciar o pensamento. As regras de urbanidade poupam alguns desgostos ao nosso precário narcisismo. Mas esse olhar estranho torna-se instrutivo quando é obrigado, pelas circunstâncias sociais ou institucionais, a objectivar-se. Objectivar-se aqui não significa tornar-se objectivo, mas simplesmente ter de se manifestar objectivamente, o que é inteiramente diferente. Nesse momento, temos a revelação de como os outros, por este ou aquele motivo, nos vêem. E isso é sempre instrutivo. Instrui-nos sobre nós e sobre os outros que nos olham. O que, porém, me tem dado mais motivo de reflexão, a partir da experiência própria, é que esse olhar sobre nós vindo dos outros muda muito em conformidade com o lugar onde nos situamos. Por lugar, refiro-me ao lugar geográfico e não a um outro tipo de espaço, seja social ou mental. Sou mais atreito à benevolência dos outros em certos lugares, enquanto outros lugares me são mais claramente adversos. É como se existisse para mim, talvez para todos nós, uma geografia onde se combinam espaços fastos e nefastos, espaços onde se é amado sem fazer nada por isso, e espaços onde se é não propriamente odiado, mas olhado de lado e com mal disfarçada desconfiança, embora também nada se tenha feito para isso. É evidente que estes espaços geograficamente fastos ou nefastos acabam por ter uma correspondência social e mental. Nunca se compreende perfeitamente aquele aviso que na adolescência os pais fazem para que não se frequentem certos sítios nem certas pessoas. Pensamos que é um conselho localizado no espaço e no tempo, mas não é. Prolonga-se vida fora. Muitos dos nossos problemas nascem de nos termos deixado arrastar, talvez por complacência para connosco e para com os outros, para espaços que não são os nossos e frequentar pessoas que não nos convêm. Elas, as pessoas que não nos convêm, sempre que tiverem oportunidade não deixarão de assinalar a nossa inconveniência.
1 comentário:
Brilhante, como sempre, e curiosa a questão do espaço geográfico. Talvez por não ter apreendido plenamente os fundamentos apresentados e também por alguma falta de experiência, tenho algumas dúvidas até que ponto o espaço geográfico, por si só, é assim tão relevante no juízo que os outros fazem de nós. Parece-me que esse juízo depende mais do julgamento social acerca dos lugares e de quem os frequenta, da maior ou menor identificação com os mesmos e da própria atitude que neles adoptamos. Nesse sentido, percebo que é mais fácil sermos valorizados nuns meios e menos noutros, dependendo também de quem emite o juízo.
Do que estou plenamente convencida é que o contacto com diferentes espaços geográficos (e também sociais) poderá levar-nos a comportamentos muito distintos, revelando de nós facetas por muitos desconhecidas - até de nós próprios. A esse propósito, lembro-me sempre de um professor de Matemática, de porte distinto e impecável (mesmo com roupas sujas) que tanto envergava o fato e gravata na cidade, muito sério e doutoral, como vestia roupas gastas de camponês, trabalhando arduamente a terra, na sua aldeia natal. A mesma pessoa, com comportamentos e linguagem completamente diferentes, mas a mesma autenticidade. Era apreciado e respeitado por muitos, no campo e na cidade, onde certamente lhe valorizavam qualidades diferentes.
Há ainda um outro espaço que condiciona muito a visão que os outros têm de nós, um espaço intangível onde vamos erguendo paredes para lá das quais só alguns podem ver... Estou cada vez mais consciente dessa realidade e, por essa razão, cada vez mais me abstenho de julgar os outros, e muito menos me convenço que os conheço.
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