Leituras
Tenho estado a trabalhar sobre um texto de Joseph de Maistre denominado Éclaircissement sur les Sacrifices. Há nessa operação uma dupla ambiguidade. Maistre, um autor anti-iluminista, e é o mínimo que se pode dizer do seu reaccionarismo, utiliza no título do seu estudo uma das palavras mais caras ao Iluminismo, Éclaircissement, Esclarecimento. Esclarecer não é mais do que levar a luz da razão aos lugares onde as trevas predominam. Esclarecer significa literalmente tornar claro, visível. O Esclarecimento é atravessado por um ideal de transparência, por uma luta sem fim contra a opacidade do real. O que Maistre faz, porém, é levar a luz até ao lugar onde ela não penetra, até a uma espécie de buraco negro que deglute toda a energia, que elimina a luminosidade, que mostra um limite à transparência. Esclarece para mostrar que nem tudo pode ser esclarecido, como se brincasse com os seus inimigos teóricos de predilecção, como Voltaire.
A segunda ambiguidade reside em mim, leitor de Maistre. Muito do que leio repugna-me o sentimento e atiça a ferocidade polémica da razão. Ao mesmo tempo, contudo, insinua-se um secreto prazer na leitura, uma prazer que não nasce da transgressão, mas do reconhecimento de uma voz muito antiga que o tempo tinha recalcado. É como se a superfície racionalista que cobre a minha educação cedesse a um longínquo apelo daquilo que, para a razão, há de mais tenebroso e ameaçador. Sinto-me divido entre a vontade de polémica e a sedução que os textos de Maistre exercem sobre mim. Já há muito que não encontrava textos que me pusessem neste estado de ambiguidade. Os livros de Agustina Bessa-Luís, por exemplo, tinham essa capacidade. Fascinavam-me e repeliam-me. Faziam-no de tal maneira que cheguei a jogá-los violentamente contra a parade ou para o chão e pontapeá-los, para depois os apanhar e retomar sofregamente a leitura. Ninguém se iluda, ler não leva à glória dos altares, nem é um exercício para almas cordatas. Ler pode ser uma batalha campal.
2 comentários:
Talvez ajude fumar um Maria Mancini, creio que se chamavam assim os charutos que o jovem Hans Castorp fumava quando ficava fascinado e repugnado pelos carismáticos senhores Setembrini e Nafta quando lhe falavam de um outro tipo de Aufklärung...
Infelizmente hoje em dia as nossas livrarias estão inundadas de livros que nem sequer servem para fazer de almofada, à noite, no campo de batalha quanto mais para uma batalha campal...
Benditos livros esses, que nos conduzem a batalhas.
De facto, Maria, as livrarias, nos tempos que correm, foram confundidas com as lixeiras municipais, para onde se evacua, em embalagens ao gosto popular, os dejectos de muitos cérebos ociosos.
Um Maria Mancini? Na verdade, dispenso. Sempre fui um fumador infiel e nunca apreciei particularmente o género charuto. Mas deu-me saudade da Montanha Mágica e desses Setembrini e Nafta. E ela já deveria ter ocorrido, pois tem tudo a ver com Maistre, um admirador dos jesuítas e um adversário da nova ordem trazida pelos antepassados de Setembrini. Terei de retomar a obra. Obrigado pela pista.
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