A víbora no peito e a morte da liberdade
Depois de contar uma história desagradável sobre a estranha relação entre um banco privado e o jornal Sol, motivada por uma notícia pouco favorável ao governo, Rui Ramos, na crónica de hoje no Correio da Manhã, argumenta que o problema, o da punição de quem não baixa a cabeça perante o poder, não é só deste nem só com este governo. Conclui o artigo dizendo: «Há trinta anos que andamos a fingir que pode haver direito e pluralismo onde quem fala corre o risco de ser castigado e onde para fazer negócios é preciso pôr dinheiro em envelopes. A democracia portuguesa vive com uma víbora sobre o peito. Só não nos morde se estivermos muito quietinhos e formos bem comportados. É assim que queremos viver, quietinhos e bem comportados?»
Toda a sociedade portuguesa está, há muito, absolutamente domesticada. Alguns redutos de liberdade de expressão e de crítica existem ainda nas profissões liberais, mas poucos, e nas universidades, cada vez menos. Até ao último governo de Sócrates, os professores do ensino não superior representavam outro reduto onde a liberdade de expressão e de crítica era possível. Uma liberdade que, por essa província fora, era transferida para a esfera pública e política dos municípios, onde muitos professores tinham voz activa, tanto na vida política como na imprensa local. Mas o efeito conjugado do Estatuto da Carreira Docente, da Avaliação de Professores e da lei sobre Gestão Escolar destruiu esse reduto. Toda a gente percebe que o melhor é estar caladinho, pois há que evitar "chatices". Como nos tempos do dr. Salazar ou do prof. Caetano.
Se o debate educativo dentro das escolas era já pobre, tornou-se inexistente. As escolas são, ao nível do debate de ideias, mausoléus entregues a curadores e regedores, dos quais se tem medo ou a quem se quer agradar de forma abjecta. A indigência intelectual cresce. Muitos dos dirigentes escolares, por certo, não gostam do papel e não se sentem bem nesta fotografia de família. Mas o papel foi-lhes entregue. Mais tarde ou mais cedo, eles ou os próximos a vir, em caso de necessidade lá farão exercício do arbítrio com que foram investidos, lá saberão encontrar os mecanismos maravilhosos para calar alguma voz mais crítica e descuidada, mecanismos que políticos inimigos da liberdade e do espírito crítico lhe puseram, sem qualquer sobressalto na consciência, nas mãos.
Os professores, para além das manifestações generalistas contra o ECD e a avaliação, não passam já de uma massa amorfa, há boas excepções, claro, sem espírito crítico e, como todos os outros portugueses, amedrontados com as indisposições ou os fluxos hormonais das chefias e daqui a uns tempos do régulo municipal. Quem está hoje, numa escola, disponível para chamar a atenção para o que possa haver de errado, do ponto de vista educativo, na orientação de um director executivo? Quem, sendo professor, vai amanhã criticar um Presidente de Câmara? É de um professorado assim que, depois, os demagogos habituais e os psicólogos de serviço exigem que formem cidadãos críticos e reflexivos, e outras idiotices inomináveis do género. A liberdade fica para os aposentados, por enquanto. Mas isso significa apenas que a liberdade se tornou decrépita.
Os portugueses nunca amaram especialmente a liberdade. Agora, e eu estou a medir bem as palavras, os portugueses começam a ter medo de ser livres. Uma sociedade civil frágil. Governos locais e centrais demasiado fortes, governos que colonizam o aparelho de estado e das autarquias, governos que, em todos os lados e independentemente dos partidos a que pertençam, não têm a medida do respeito pelo pensar alheio. Portugal definha num pântano e na viscosidade que se apossou, mais uma vez, da sociedade portuguesa. Os melhores e os mais livres resta-lhes um caminho: a porta de saída. A liberdade morre em cada hora que passa. Morre por restrição subreptícia e por falta de exercício. A víbora ameça morder-nos no peito, é um facto. Mas à liberdade já a víbora envenenou há muito.
5 comentários:
É a realidade em que vivemos, onde parece que só há uma solução proverbial: se não podes contra eles, junta-te a eles... E entretanto, vamos vendo o que os olhos não querem simplesmente ver: a pobreza a aumentar desmedida e descaradamente! Depois de 1974, não me parece normal que jovens em corpo são terminem o 12º ano a dizer que Luís Vaz de Camões foi o grande aventureiro que descobriu o caminho marítimo para a Índia e que, numa ilha, terá sido aquele que lançou ao mar uma garrafa com um bilhete lá dentro! Claro que perante tanto miserabilismo, começa a ser impossivel acreditar que os professores são o problema, até porque eles não têm qualquer autoridade para ensinar, quando muito, lá poderão ir tentando contornar o problema, esclarecendo que Camões foi o gajo que escreveu Os Lusíadas e inventou umas gajas giras, sensuais, de cabelos louros aos caqracóis e olhos verdes, às quais chamou Tágides...
Essa autoridade foi-lhes retirada deliberadamente durante longos anos. O que se passou nos últimos cinco foi apenas o completar de uma tarefa ignóbil começada há muito pelo poder político.
Bom fim-de-semana
JCM
Bom fim-de-semana também.
MargaridaG
Mas a manifestação de 200.000 professores em Lisboa, há uns meses, não foi um sinal de liberdade? Não foi uma demonstração de que essa liberdade existe se as pessoas falarem e se unirem? Será a culpa só das medidas do governo? Não estarão as pessoas a acomodarem-se? Por muito mau clima que exista e que possa coagir de algum modo as pessoas a «não quererem chatices», no fundo são sempre essas mesmas pessoas a optar por não ter chatices. Não vivemos num estado policial, vivemos sim numa sociedade que do ponto de vista sociológico é considerada «feminina» ao contrário de culturas mais «masculinas«, como as do leste da Europa, que resolvem tudo «á pancada»...a nossa sociedade tem tendência para calar, para evitar chatices, para viver comezinhamente e celebrar o Natal com bacalhau, sem chatices...o probema é nosso ao aceitarmos o estado da situação. Felizmente que o proprietário deste blogue, Jorge carreira Maia, vai lançando alertas. Alerta está.
Permita_me conordar discordando.
De factoo nunca fomos muito chegados á verdadeira ideia de liberdade, pesa sobre nós a suposta crítica do outro, mais do que a verdadeira consciência individual, existe muitas vezes o ruído abafado das vozes da rua, do café, da escola.
Se tantos sentem a víbora porque não fazer como aos crocodilos de Enzo Corman?
É preciso viver mais a consciência individual, um patamar é que se ensinam direitos como retribuição de deveres e não como dados espotâneos, em vez de "nascer cidadão" talvez se pudesse providenciar um programa de ensino recorrente "crescer cidadão", e imaginamos já quantos notáveis rostos de hoje teriam tanto a apreender...
Por exemplo a não confundir a proriedade dos dinheiros do Estado com os dinheiros de um partido.
A reconhecer a cousa pública e o serviço ao País, e tantas pequenas coisas como não roubar fita-cola na repartição, ou utilizar o telefone do serviço para trocar receitas de natal com a prima que emigrou para a França...
As escolas espelham a queda das expectativas, ninguúem quer seres pensantes no futuro, como não querem no presente nem quiseram no passado. São maçadores e demandam em excesso.
Nem os professores os querem, nem o País tem espaço para os demandadores.
Os acéfalos incomodam pelo odor que exalam quando fechados numa sala perante um livro, cheira a mofo...mas no futuro e contando que se abram as janelas evitaremos questões veradeiramente incómodas se alimentar-mos os acéfalos a pão de ló!!!
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