05/11/09

Contaminações



O idílio alemão tem qualquer coisa de confinado, de reduzido, como de resto sugere a etimologia da palavra «idílio», a pequena imagem ou pequeno quadrozinho florido da literatura helenistica. A história alemã, que entretanto visa impérios universais e milenares, nasce muitas vezes de uma moldura provinciana, de um horizonte municipal. Assim, por exemplo, um historiador refere o plano secreto preparado para a tomada de Ulm, em 1701, por parte dos Bávaros, aliados de Luís XIV, alguns dos quais tinham conseguido infiltrar-se na cidade disfarçados de camponeses, e camponeses com a missão, de resto cumprida, de abrirem os portões da fortaleza às suas tropas: «O tenente Baertelmann levará debaixo do braço um cordeiro; o sargento Kerbler, dois frangos, o tenante Habbach, vestido de mulher, levará na mão uma cesta de ovos...»

As tropas bávaras, que graças a este golpe de mão se apoderaram de Ulm — hoje a cidade fica no limite entre Baden-Württemberg e a Baviera —, eram aliadas do Rei-Sol, mas a política de Luis XIV, com a sua modernização centralizadora e imperialista que destrói os poderes locais, faz parte de uma outra história, pertence a um capítulo que inclui Robespierre, Napoleão ou Estaline, ao passo que os aliados alemães dos autocratas franceses pertencem ao particularismo medieval, estreito e «idílico» que a história moderna, e especialmente a de França, depressa deixa para trás. [Cláudio Magris, Danúbio]

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Uma das coisas que me retém junto deste livro de Magris é a combinação entre vários tipos de género. Estamos perante uma narrativa que conta pequenas histórias, que faz crónica, apresenta reflexões de carácter filosófico, deixa entrever algumas perspectivas científicas, mobiliza a História. Esta contaminação, que de certa forma constitui o núcleo central do romance moderno, tem o seu antepassado, como bem viu Nietzsche, no diálogo platónico, também ele produto de outros géneros literários que o génio de Platão soube fundir. Isto serve-me para ir a um outro lado. O carácter central da narrativa na vida dos homens e no seu saber. Da poesia lírica às ciências da natureza, talvez mesmo à matemática e à lógica, aquilo que subjaz a todos esses campos é o aspecto narrativo, por estranho que isso possa parecer aos ouvidos de um físico, de um biólogo, ou, por maioria de razão, de um matemático. Em qualquer dos géneros, sejam literários, filosóficos ou científicos, alguém conta alguma coisa a alguém. A distinção entre els não residirá na sua hipotética incomensurabilidade. O que os distingue são as estratégias retóricas presentes em cada um deles, estratégias essas que se adequam a diferentes línguas e linguagens, para as configurar e obrigar a contar-nos uma história, seja a das realidades infra atómicas, seja a da aventura do ADN, seja a que se expressa num epigrama, ou num breve conto, ou mesmo na pequena anedota, mais ou menos pícara, que se conta no dia a dia. A narrativa de Magris é um símbolo de tudo isto, e por isso um prazer refinado para o leitor.

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