Na morte de Claude Lévy-Strauss
Foi hoje anunciada a morte do antropólogo Claude Lévy-Strauss. Tinha 100 anos. Foi uma das figurantes marcantes, no campo intelectual, do século XX. Como homenagem, deixo aqui os três últimos parágrafos de um texto de 1975, um texto que todos os professores, pais, pedagogos e gente interessada em educação, inclusive ministros socialistas, deveriam ler uma e outra vez até terem percebido a simples mensagem que ele contém. O texto denomina-se Palavras Retardatárias sobre a Criança Criadora. Perdoe-se-me a extensão da citação.
Os nossos filhos nascem e crescem num mundo feito por nós, que antecipa as suas necessidades, previne as suas perguntas, os encharca de soluções. A este respeito, não vejo diferença entre os produtos industriais que nos inundam e os «museus imaginários» que, sob a forma de colecções de livros de bolso, de álbuns de reproduções e de exposições temporárias em jacto contínuo desvitalizam e embotam o gosto, minimizam o esforço, baralham o saber: vãs tentativas para acalmar o apetite bulímico de um público sobre o qual desabam desordenadamente todas as produções espirituais da humanidade. Que, neste mundo de facilidades e desperdício, a escola continue a ser o único sítio em que é preciso ter trabalho, sofrer uma disciplina, passar por vexames, progredir passo a passo, viver, como se costuma dizer, «no duro», não é coisa que as crianças aceitem, pois já não a podem compreender. Daí a desmoralização que as invade, quando sofrem toda a espécie de coacções para as quais tanto a família como a sociedade não as prepararam e as consequências por vezes trágicas desta inadaptação.
Resta saber se é a escola que está errada, se é uma sociedade que perde cada vez mais e todos os dias o sentido da sua função. Ao pormos o problema da criança criadora, enganamo-nos no tema: porque somos nós próprios, tornados consumidores desenfreados, quem se mostra cada vez menos capaz de criar. Angustiados pela nossa carência, esperamos a vinda do homem criador. E como não nos apercebemos dele em parte alguma, viramo-nos, em desespero de causa, para os nossos filhos.
Temamos, no entanto, que, ao sacrificarmos as rudes necessidades da aprendizagem aos nossos sonhos egoístas, acabemos por lançar a escola pela borda fora, com tudo aquilo que ela ainda representa, e que venhamos a privar os nossos sucessores do pouco que ainda permanece sólido e substancial na herança que podemos deixar-lhes. Seria aberrante pretender iniciar os nossos filhos na criação pelas vias da arte, recorrendo a métodos pedagógicos inspirados pelos frutos ilusórios da nossa esterilidade. Reconheçamos ao menos que procuramos nisso uma consolação: ao fazermos da criança a medida do criador, damos a nós próprios uma desculpa por termos deixado a arte regredir ao estádio do jogo, mas sem termos tido o cuidado de não abrirmos a porta a confusões muito mais graves entre o jogo e os outros aspectos sérios da vida. Ai de nós, nem tudo na vida é jogo. É aos jovens espíritos que nos incumbe formar, que se fica a dever esta lição fundamental. Lição que nos convidam a calar para a satisfação, na verdade bem ingénua, de justificar aquilo a que ainda se chama arte pelos exercícios atraentes que, sob o colorido de reforma pedagógica, proporcionam às crianças; exercícios em que, no entanto, os próprios adultos podem encontrar — e nada mais — um muito vivo agrado. [Claude Lévy-Strauss, O Olhar Distanciado]
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