20/11/09

Ficções e exorcismos


Há um momento (61 b), logo no início do diálogo Fédon, de Platão, que Sócrates diz «que o poeta, para ser verdadeiramente poeta, deve criar ficções e não argumentos». Subentende-se que sendo ele filósofo criaria argumentos. Há nesta clivagem entre a produção de argumentos e a de ficções um equívoco que persiste há demasiados séculos. Os argumentos não passam de ficções, as ficções que os filósofos foram utilizando ao longo da história da filosofia. A filosofia faz parte da história da literatura e não passa de um longo e sofisticado exercício de retórica. Por vezes estamos perante boa literatura, outras perante algo insuportavelmente insípido. Platão acusava os poetas de serem mentirosos ao produzirem ficções. A verdade é que Platão dissimulava, mentia, enganava. Fazia-o genialmente, como Nietzsche, ou Hegel, ou qualquer filósofo que valha a pena ler. Quanto mais mente e ficcionaliza um filósofo, mais vale a pena ser lido (os outros, nem de mentir são capazes). Platão não enganava quando ficcionalizava o mundo inteligível, ou construía mitos, mas quando pretendia que os argumentos demonstravam o quer que fosse. Como é que a pobre razão humana tem a pretensão de que uma cadeia lógica entre teses e argumentos justifique alguma coisa? Devemos então deixar de argumentar? Não, por uma questão estética e de coexistência pacífica. É menos desagradável argumentar do que matar-nos uns aos outros, mas só isso. Para além da argumentação está a vida com a sua exuberância, o seu mistério, o seu carácter absolutamente insondável. Perante esse buraco negro, as pretensões da argumentação são um exercício absurdo de cobardia. O medo da escuridão leva-nos a exorcizá-la, a argumentação é a reza e o esconjuro usados.

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