16/10/08

Ressuscitar fantasmas

O juiz Baltasar Garzón ordenou uma investigação aos desaparecidos nos tempos do franquismo. Argumenta o magistrado que o caso se inscreve na esfera de competências da mais alta instância judicial espanhola e dá uma razão espantosa: na origem do conflito, em Julho de 1936, esteve um levantamento militar “ilegal”. A ser assim, se essa moda pega, em Portugal não faltarão julgamentos. A começar pelo levantamento ilegal do 25 de Abril de 1974, depois pelo 28 de Maio de 1926, pelo 5 de Outubro de 1910, pelas guerras liberais – também não estavam inscritas na ordenação jurídica do reino –, pelo 1.º de Dezembro de 1640 e, para encurtar razões, até ao 24 de Junho de 1128, quando Afonso Henriques, em S. Mamede, derrota as tropas de sua mãe. Por vezes, os juízes tentam julgar a história, mas o julgamento da história é apenas feito pela memória e pelos vencedores do momento. A história é uma soma de ilegalidades, a destruição da ordem vigente anterior e a instalação de uma nova ordem. Assim, até ao infinito. Se a justificação da legitimidade de abertura do processo é absolutamente risível, do ponto de vista histórico-político, esse não é ainda o seu maior problema. A democracia espanhola nasceu, cresceu e fortificou-se no silêncio dos cadáveres. Esse silêncio permitiu que as partes desavindas, há longas décadas, se aproximassem, que esquerda e direita convivessem no parlamento e na sociedade. Que esquerda e direita se sucedessem na governação. Toda a gente sabe que há muito ressentimento escondido, que o tempo diluirá. Mas também se sabe que não há ali ninguém que tenha as mãos limpas de sangue. Esquerda e direita mataram-se impiedosamente. As esquerdas (republicanos, socialistas, comunistas, trotskistas, anarquistas) mataram-se entre si. A direita terá assassinado mais, pois foi a vencedora. Mexer em cadáveres é ressuscitar fantasmas. E, nestas coisas, os nossos fantasmas são sempre melhores e mais vítimas do que os dos nossos adversários. Por vezes, é melhor para os vivos deixar os mortos em paz, mesmo injustiçados. Talvez eles próprios agradecessem.

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