31/03/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Seis

06 - Gustav Klimt - Der Birnbaum, 1903 [A Pereira]

Seis

Ali estão, suspensas da árvore da vida,
as peras que em teu regaço colherás.
Tão sérias e precisas elas são, na cor que lhe deram,
tão esquecidas da gravidade e do vento,
tão senhoras das alturas. Por vezes, sonham, oiço-as,
e são pássaros parados, suspensos no voo.

Que mão será a tua quando lhes tocares
e as inclinares para ti?
Ó perfeita mão lunar ilumina
de névoa os frutos e os ramos e as cores
que me fazem sonhar com pomares,
a mim que nada sei da vida dos campos.

Imaginei tantas e tantas vezes
o estar sentado na sombra destas árvores
e escutar o silvo dos deuses
ou o rufar das aves que passam. Ao longe,
apenas o silêncio vinha com o seu
vestido de cambraia lançar um véu

sobre o manto verde da erva.
Depois, enumerava os frutos e
entregava-me a uma contabilidade
de seiva a correr no papel. Se acordava,
erguia-me e amparado aos troncos
gritava pelo nome que te deram.

No céu, apenas as nuvens brancas sorriam
e passavam como passam todas as nuvens,
um risco, uma mancha, um ardor de vento.
Cansado de te aguardar, sento-me
e espero que dos ramos caia
o solícito fruto que me vais dar.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

A primavera de Praga

Dois blogues [Água Lisa e Entre as Brumas da Memória] falam hoje da Primavera de Praga. Eu ainda não tinha, na altura, 12 anos e lembro-me perfeitamente da crise, de a ver passar na televisão. É provável que a censura fosse, neste caso, muito mais branda do que noutros. Sempre se passava num país comunista. Lembro-me muito bem do estudante que se imolou pelo fogo aquando da chegada dos tanques soviéticos. Isso impressionou-me vivamente, por estranho que pareça. Não que eu tivesse uma especial propensão para a política, não deveria ter. Mas a agitação nas ruas e aquela imagem terrível da imolação foram absorvidas. Lembro-me também do nome do presidente checo, Dubcheck. O curioso desta história é que a brandura da censura, neste caso, não teve muitos efeitos. Nem em mim, nem em muitos da minha geração, pois o episódio não evitou que pessoas estruturalmente conservadores tivessem passado, no final da ditadura e no início da democracia, pelo marxismo. É provável que se em 1968 vivêssemos já em democracia, toda uma geração teria passado ao lado do marxismo e da aceitação do comunismo.

Contra-Informação e o estatuto do aluno

Via A Sinistra Ministra

Mário Crespo - Não houve braço-de-ferro nenhum

Acho espantoso que sobre a ocorrência na Carolina Michaelis várias opiniões insistam que a professora não devia ter entrado em "braço-de-ferro" com a aluna por causa do telemóvel. Não houve "braço-de-ferro" nenhum. A Professora recusou-se a capitular. Não deixou que lhe tirassem à força algo que, no exercício das competências em que está investida, tinha achado por bem confiscar. E não cedeu face a pressões selváticas. E não capitulou face a agressões verbais. E manteve-se digna no posto que lhe foi confiado pela sociedade, com elevação e consistência, cumprindo as expectativas depostas na sua missão. A Dra. Adozinda Cruz é um modelo de coragem que o país tem que aplaudir. Que a nossa confusa sociedade precisa de aplaudir porque é uma sociedade carente de pessoas como ela. A Professora de francês fez aquilo que tinha que ser feito. Sozinha. Porque trabalha numa escola onde o Conselho Directivo tolera que a placa com nome do estabelecimento, baptizado em honra de uma excepcional pedagoga que foi a primeira mulher portuguesa a conseguir leccionar numa universidade, esteja conspurcada, num muro com inenarráveis graffitis que mandam cá para fora a mensagem que lá dentro tolera-se a bandalheira. Numa escola onde durante minutos se ouviu a algazarra infernal dessa bandalheira, onde ela estava a ser agredida e nenhum colega ou funcionário ou aluno se atreveu a abrir a porta e ver se podia ajudar. Foi dessa cobardia geral e conformismo abúlico que a Dra. Adozinda Cruz se demarcou quando não deixou que a desautorizassem. É por isso funesto não lhe reconhecer a coragem e diminuí-la num bizarro processo de culpabilização da vítima. Estar a tentar encontrar fragilidades comportamentais num ambiente de tal hostilidade é injusto. E o facto é que não fora a louvável e pronta actuação do Procurador-geral da República a Dra Adozinda Cruz ficaria sozinha. Abandonada pelo Ministério que a tutela, porque entende que o seu calvário é resolúvel nas meias tintas do experimentalismo burocrático, distante das realidades do terreno e que os problemas de segurança da escola são questões menores que se decidem dentro dos muros cheios de graffitis ameaçadores, em ambientes onde circulam armas e drogas. Abandonada pelas organizações laborais porque não está filiada. Com assinalável candura Mário Nogueira confessou em entrevista que a Fenprof não tinha feito nenhuma intervenção nem a faria porque "a colega não está sindicalizada". Abandonada no arrazoado palavroso do Bastonário da Ordem dos Advogados que, desconhecedor da Lei, achava que tinha que haver queixa para que a Procuradoria iniciasse algum procedimento e que, como tal, a professora deveria ser deixada ao sabor das indecisões da desordem que reina dentro dos muros graffitados. Felizmente o Estado não se limita a estas entidades. O Procurador-geral actuou a tempo e o Presidente da República, ao chamá-lo a Belém, diz ao país e em particular ao governo que o caso não está nem resolvido nem o executivo conseguiu um vislumbre de solução. Talvez fosse importante reforçar esta mensagem de preocupação, solidariedade e cidadania recebendo em Belém a Professora que não se intimida e é capaz de ser firme no meio do caos em que se tornou a educação pública em Portugal. As famílias entenderiam que a tolerância cúmplice e desleixada do Ministério, das escolas, sindicatos e acratas irresponsáveis iria acabar e poderiam começar a mudar o seu próprio comportamento. [Jornal de Notícias, de 31 de Março de 2008]

O português na Venezuela

O Presidente brasileiro, Lula da Silva, e o seu homologo venezuelano, Hugo Chávez, acordaram, segundo o Sol, em “garantir a adopção da língua portuguesa como primeiro idioma estrangeiro no país (Venezuela), informou hoje à Lusa o Ministério brasileiro da Educação.” É nestas alturas que se percebe a importância do acordo ortográfico, por muito que ele nos desagrade. Quer queiramos, quer não, o Brasil é a primeira potência falante de língua portuguesa. Mais, o português do Brasil tem tido desenvolvimentos extraordinários e é servido por excepcionais escritores. Segundo diz o Sol, parece que o governo português não tem dinheiro para responder à solicitação dos venezuelanos, claro. Aliás, nem há nenhum emigrante português na Venezuela…

Wagner - Die Walküre: "The Ride of the Valkyries" (Boulez)

30/03/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Cinco


05 - Gustav Klimt - Malcesine am Gardasee, 1913 [Malcesine no Lago de Garda]

Cinco

Havia dias em que te sentavas na outra margem
e de lá vias-me, pelo cânone dos teus binóculos,
descer a leve encosta do castelo,
entre o casario silencioso, banhado pelas cores,
a madrugada esperançosa sempre as traz.
E eu era um ponto no teu olhar,
uma cabeça que despontava aqui e ali,
e por vezes ficava parada a olhar as arcadas
ou a conversar com quem logo aparecia.

Era um tempo tão lento
e a tua alma batia ao ritmo que o tempo
te trazia. Era uma alma branca
como o teu rosto e havia nela
um cansaço surdo que, mal te via,
os olhos se te fechavam e desfaleciam.
Se me sentava a teu lado,
nessa margem secreta que ninguém vê,
era para te falar das águas do lago
e do vasto mundo que não sei.

Depois, apanhávamos um barco
e navegávamos de margem a margem
e no ancoradouro, enquanto as velas
se recolhiam, olhávamos as casas
e nelas sonhávamos os passos a dar,
com o coração a bater e as mãos suadas.
Oiço vozes a cantar, dizias,
e eu levava-te ruas fora,
rumo à perfeita tarde
onde despias a solidão
que te cobria de perfume as faces.

Talvez fosses uma deusa ou uma ninfa disfarçada,
talvez uma sombra ou uma porta,
ou um rasto de luz a inclinar os meus olhos,
ou um segredo que, sob arcos, ali se escondia.
Talvez fosses a margem de onde me vias
ou o barco onde falávamos,
talvez uma casa, um pátio, a pequena rua,
talvez o lago que por mim então chamava.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

A face humana de Sócrates II

Estes «spin doctors» que orientam o discurso do primeiro-ministro por vezes até não se saem mal de todo. A ideia da “face humana” não é má. Vejamos, estivemos em tempo de Páscoa e o Cristo sofredor não era mais do que a “face humana” do Deus vivo. Assim, num passe de mágica, o pobre e mortal José Sócrates é elevado à condição divina e imortal. Já não somos governados por um qualquer sapateiro, como os espanhóis, nem por um imigrante irrequieto, como os franceses, ou por um senhor castanho qualquer, como os ingleses. Não, somos governados por Deus em pessoa e com “face humana”, não vamos nós não suportar olhar a verdadeira face divina. E que face de Deus era a anterior? Seria a face do Deus da ira? Seja como for, não compreendo o motivo pelo qual a Igreja anda em conflito com este governo. Então, não é que Portugal é governado, após a parusia, por Cristo, disfarçado sob o nome de Sócrates, em pessoa e em glória?

A face humana de Sócrates

Sócrates, ao fim de três anos de governação e a pouco mais de um das eleições, decidiu assumir uma governação de “face humana” (cf. Público). Então, até aqui tinha assumido que tipo de governação? E qual a face que apresentou? Será a do tal «animal feroz»? Mas os actos legislativos de um «animal feroz» e sem “face humana” serão válidos? Deus meu, a quanto obrigam as eleições, os «spin doctors» e a vacuidade de ideias…

António Barreto - A balbúdia na escola

As cenas de pancadaria na escola têm comovido a opinião. A última ocorreu numa escola do Porto e foi devidamente filmada por um colega. Em poucas horas, o clip correu mundo através do YouTube. A partir daí, choveram as análises e os comentários. Toda a gente procura responsáveis, culpados e causas. Os arguidos são tantos quanto se possa imaginar: os jovens, os professores, os pais, o ministério e os políticos. E a sociedade em geral, evidentemente. As causas são também as mais diversas: a democracia, os costumes contemporâneos, a cultura jovem, o dinheiro, a televisão, a publicidade, a Internet, a permissividade, a falta de valores, os "bairros", o rap, os imigrantes, a droga e o sexo. Para a oposição, a culpa é do Governo. Para o Governo, a culpa é do Governo anterior. O trivial.

Deve haver um pouco disso tudo, o que torna as coisas mais complicadas - sobretudo quando se pretende tomar medidas ou conter a vaga crescente de violência e balbúrdia. Se as causas são múltiplas, por onde começar? Mais repressão? Mais diálogo? Mais disciplina? Mais co-gestão? Há aqui matéria para a criação de várias comissões, a elaboração de um livro branco, a aprovação de novas leis e a realização de inúmeros estudos. Até às eleições, haverá debates parlamentares sobre o tema. Não tenho a certeza, nem sequer a esperança, que o problema se resolva a breve prazo.

De qualquer maneira, a ocasião era calhada para voltar a ver a obra-prima do esforço legislativo nacional, o famoso "estatuto do aluno". A sua última versão entrou em vigor em finais de Janeiro, sendo uma correcção de outro diploma, da mesma natureza, de 2002. Trata-se de uma espécie de carta constitucional de direitos e deveres, a que não falta um regulamento disciplinar. Não se pode dizer que fecha a abóbada do edifício legal educativo, porque simplesmente tal edifício não existe. É mais um produto da enxurrada permanente de leis, normas e regras que se abate sobre as escolas e a sociedade. É um dos mais monstruosos documentos jamais produzidos pela administração pública portuguesa. Mal escrito, por vezes incompreensível, repete-se na afirmação de virtudes. Faz afirmações absolutamente disparatadas, como, por exemplo, quando considera que "a assiduidade (...) implica uma atitude de empenho intelectual e comportamental adequada..."! Cria deveres inéditos aos alunos, tais como o de se "empenhar na sua formação integral"; o de "guardar lealdade para com todos os membros da comunidade educativa"; ou o de "contribuir para a harmonia da convivência escolar". E também os obriga a conhecer e cumprir este "estatuto do aluno", naquele que deve ser o pior castigo de todos! Quanto aos direitos dos alunos, são os mais abrangentes e absurdos que se possa imaginar, incluindo os de participar na elaboração de regulamentos e na gestão e administração da escola, assim como de serem informados sobre os critérios da avaliação, os objectivos dos programas, dos cursos e das disciplinas, o modo de organização do plano de estudos, a matrícula, o abono de família e tudo o que seja possível inventar, incluindo as normas de segurança dos equipamentos e os planos de emergência!

Trata-se de um estatuto burocrático, processual e confuso. O regime de faltas, que decreta, é infernal. Ninguém, normalmente constituído, o pode perceber ou aplicar. Os alunos que ultrapassem o número de faltas permitido podem recuperar tudo com uma prova. As faltas justificadas podem passar a injustificadas e vice-versa. As decisões sobre as faltas dos alunos e o seu comportamento sobem e descem do professor ao director de turma, deste ao conselho de turma, destes à direcção da escola e eventualmente ao conselho pedagógico. As decisões disciplinares são longas, morosas e processualmente complicadas, podendo sempre ser alteradas pelos sistemas de recurso ou de vaivém entre instâncias escolares. Concebem-se duas espécies de medidas disciplinares, as "correctivas" e as "sancionatórias". Por vezes, as diferenças são imperceptíveis. Mas a sua aplicação, em respeito pelas normas processuais, torna inútil qualquer esforço. As medidas disciplinares são quase todas precedidas ou acompanhadas de processos complicados, verdadeiros dissuasores de todo o esforço disciplinar. As medidas disciplinares dependem de várias instâncias, do professor aos órgãos da turma, destes aos vários órgãos da escola e desta às direcções regionais. Os procedimentos disciplinares são relativos ao que tradicionalmente se designa por mau comportamento, perturbação de aula, agressão, roubo ou destruição de material, isto é, o dia-a-dia na escola. Mas a sua sanção é de tal modo complexa que deixará simplesmente de haver disciplina ou sanção.

O estatuto cria um regime disciplinar em tudo semelhante ao que vigora, por exemplo, para a administração pública ou para as relações entre administração e cidadãos. Pior ainda, é criado um regime disciplinar e sancionatório decalcado sobre os sistemas e os processos judiciais. Os autores deste estatuto revelam uma total e absoluta ignorância do que se passa nas escolas, do que são as escolas. Oscilando entre a burocracia, a teoria integradora das ciências de educação, a ideia de que existe uma democracia na sala de aula e a convicção de que a disciplina é um mal, os legisladores do ministério (deste ministério e dos anteriores) produziram uma monstruosidade: senil na concepção burocrática, administrativa e judicial; adolescente na ideologia; infantil na ambição. O estatuto não é a causa dos males educativos, até porque nem sequer está em vigor na maior parte das escolas. Também não é por causa do estatuto que há, ou não há, pancadaria nas escolas. O estatuto é a consequência de uma longa caminhada e será, de futuro, o responsável imediato pela impossibilidade de administrar a disciplina nas escolas. O estatuto não retira a autoridade na escola (aos professores, aos directores, aos conselhos escolares). Não! Apenas confirma o facto de já não a terem e de assim perderem as veleidades de voltar a ter. O processo educativo, essencialmente humano e pessoal, é transformado num processo "científico", "técnico", desumanizado, burocrático e administrativo que dissolve a autoridade e esbate as responsabilidades. Se for lido com atenção, este estatuto revela que a sua principal inspiração é a desconfiança dos professores. Quem fez este estatuto tinha uma única ideia na cabeça: é preciso defender os alunos dos professores que os podem agredir e oprimir. Mesmo que nada resolva, a sua revogação é um gesto de saúde mental pública.
[Público, 30 de Março de 2008]

29/03/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Quatro

04 - Gustav Klimt - Schloß Kammer am Attersee I, um 1908 [Palácio de Kammer, no Lago de Atter I]

Quatro

É num espelho de água que o mundo se revê
e no leve ondulado que o vento traz
tudo se torna belo como num conto de fadas.
Aí, nessas águas imaculadas, desceu o senhor
e tomou das mãos da terra um baptismo de água.
Todos os pecados lhe foram perdoados
e as árvores, como anjos, entoaram
no musgo da tarde canções de júbilo.

Se havia um mistério, não o sei,
oiço, porém, a voz do sino; na torre,
branca torre de igreja, repica chamando os fiéis,
que abandonam os campos,
largam os animais ao vento
e seguram em suas mãos os chapéus,
velhos chapéus de camponeses,
para entrar no sussurro da igreja.

Lá fora, fica apenas a luz do sol
a incendiar as águas, a vestir de cor
os arbustos delicados que escondem do olhar
a vida furtiva de quem no palácio
vê os dias como um rio que corre.
Ao longe, tão ao longe,
já fora do universo que o quadro mostra,
ouve-se o grasnar rouco dos corvos.
Anuncia a tarde e depois o crepúsculo
até que a noite se abata sobre o lago
e as águas, agora um poço fundo e negro,
deixem de reflectir o mundo,
tão pobre que assim se apaga.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Cavaco Silva chocado

O Presidente da República parece que ficou chocado com o vídeo da escola Carolina Michaelis e vai de chamar, imagine-se, o Procurador-Geral da República. Muito bem. Mas Cavaco Silva tem uma larga responsabilidade em tudo o que se está a passar. Tem dado um apoio não muito discreto às políticas de Maria de Lurdes Rodrigues. O que não é de admirar, pois foi com Cavaco Silva como primeiro-ministro que o pesadelo das utopias escolares ganhou um peso intolerável. Não só a reforma Roberto Carneiro, mas tudo o que se passou, na Educação, durante os 10 anos de governação cavaquista, fazem do actual Presidente da República um cúmplice da situação da escola pública portuguesa. Não nos esqueçamos.

Jogo do aeroporto – continuação

A reacção de João Cravinho vem pôr a nu, mais uma vez, os jogos de interesses que se movem por detrás da questão do novo aeroporto. De aeroportos, como já disse aqui, não percebo nada. Mas também nada percebi da súbita transferência da Ota para Alcochete. Melhor, não percebi como é que a decisão política (pois a questão não é meramente técnica) foi tomada de forma tão rápida. Dá ideia de que foi feita para calar um foco de instabilidade na apreciação do governo. Se a Cravinho tiver razão, então toda a história do aeroporto deveria cair na cabeça de Sócrates. Veremos o que traz o futuro.

28/03/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Três

03 - Gustav Klimt - Oberösterreichisches Bauernhaus, 1911 [Casa Rural na Alta Áustria]

Três

Fora eu um velho lavrador
e a minha morada seria de madeira leve
com janelas a dar para os campos.
Haveria fumo a sair da chaminé
e um cheiro acre dentro de casa.

Cansado da jornada,
sentar-me-ia ao teu lado
e ouviria o rumor do vento,
a nítida voz dos pássaros,
o restolhar dos insectos
nos troncos infectados pelos anos.

Depois, comeria maçãs
descascadas pelas tuas mãos
e beberia água fria,
do poço a trouxeras, na concha
que o teu ventre
para mim logo faria.

Fora eu um lavrador
e todas as flores do mundo
haveria de cultivar,
para as olhar ao sair da porta
ou para te as dar
pelas tardes que cansado da terra
regressasse apenas para te olhar.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Editorial da revista Exame

Quem quiser ler um excelente editorial sobre a forma como se estão a fazer as reformas, nomeadamente na educação, vá até aqui. O interessante deste editorial reside no facto de ele pertencer ao número de Abril da revista Exame. Por norma, há nas revistas económicas pouca atenção a certas tropelias que os governos fazem, nomeadamente na educação. Uma perspectiva descentrada dos professores que acaba por lhes dar razão.

Jornal Torrejano, 28 de Março de 2008

Mais uma edição semanal do Jornal Torrejano on-line. Na primeira página virtual, referência para a vandalização das máquinas da antiga central eléctrica, uma perda para o património local. Nota também para a reportagem sobre o centro histórico de Torres Novas, o qual morre a cada dia que passa. Não se esqueça ainda a distinção dos concelhos de Torres Novas e Golegã em matéria de boas práticas ambientais.


Na opinião, comece-se com o cartoon de Hélder Dias. Depois, vem Dia Mundial da Despoesia, de José Ricardo Costa, Não sou português, de Santana-Maia Leonardo, Olímpicos, de Jorge Salgado Simões, O partido do bolso, de Carlos Nuno, Três breves notas sobre ambiente, de José Trincão Marques, Setúbal mereceu Taça da Liga, de Carlos Henriques e Professores, não se pode exterminá-los?, deste blogger.


Aqui ficou a notícia das notícias e das opiniões que habitam este pequeno, mas velho, burgo. Para a semana, assim o destino o destine, haverá mais. Bom fim-de-semana.

27/03/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Dois

02 - Gustav Klimt - Buchenwald I, um 1902 [Floresta de Faias I]

Dois

Não são frívolos os outonos quando,
pelo labor do vento, despem as faias
e juncam de folhas o chão.
Deixam pelos bosques uma promessa
que sob os nossos pés sucumbirá,
ao som do cric-crac das folhas a estalar.

Mas os olhos sentem o aconchego
das cores mais quentes que anunciam
invernos de cinza e neve,
invernos a nascer nos ventres outonados
pelo sol que no horizonte se esconde,
cansado de tanta dádiva.

Não são frívolos os outonos quando
abandonam os animais ao destino
que sobre eles o tempo traz.
Os homens deixam a floresta
e recolhem-se no calor das casas
para beber o vinho novo que virá.

Mas as mãos dos lenhadores
procuram o aconchego
entre os seios brancos das mulheres,
como se só agora, depois de um verão
de cardos e amoras silvestres,
o mel viesse tocar a pálida língua.

Não são frívolos os outonos quando
passas a tua mão nos troncos rugosos
das faias e contas, um a um, os nós,
as feridas abertas no corpo,
as gotas de seiva que a vida
inquieta germina na pele vegetal.

Mas a tua voz é como a fogueira
que arde no meu coração:
a lenha a crepitar entre labaredas
e a alma furtiva é um ramo de faia
escondido no bosque onde, pela manhã,
as folhas tocadas pelo vento caem.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Tom Jobim + Vinicius de Moraes + Toquinho + Miúcha

A cabeça dos governantes

O país está a acordar estupefacto para o que se passa nas escolas portuguesas. Trinta anos de facilidades, trinta anos de teorias pedagógicas erradas, trinta anos de complacência ministerial, mas também parental e escolar, estão a conduzir a escola portuguesa para um beco sem saída. O principal problema, porém, não está naquela rapariga que foi filmada ou noutras e noutros idênticos. O principal problema reside na inimputabilidade de quem gere a educação em Portugal. Melhor, o principal problema reside na cabeça dos governantes.

25/03/08

Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt - Um

Gustav Klimt - Allee im Park von Schloß Kammer, 1912 [Avenida no parque do palácio de Kammer]

Um

As janelas fechadas prenunciam o silêncio do Inverno
e sob os enlaçados ramos vejo-te caminhar
como uma promessa de primaveras, um dia chegarão;
e haverá crianças a correr pelo parque
e vendedoras de cerejas e pássaros poisados pela relva.
Até lá não saberei o teu nome nem aquele que me deste
quando me recostei no tronco carcomido,
abrigo de insectos e fungos e plantas parasitas,
e sonhei que te via passar na avenida
para entrar por aquela porta
e, no paraíso que então te cabia,
assomares à janela para agitar um lenço branco,
como se me despedisses antes de me saberes,
ou acenasses a alguém que fora do enquadramento
pelo olhar por ti chamasse.

Se me pudesses ouvir, ensinar-te-ia, um a um,
o rumor das cores, e deixar-te-ia aprender
em meus dedos o cálculo das horas,
a sombra a mim sempre o traz.
Por vezes, oiço ao longe pássaros, julgo,
mas apenas vejo cães de olhar raivoso,
presos em correntes de ferro, cães mutilados
que me entram pelos olhos
e me roubam a imagem que de ti
retenho, a branca imagem de um lenço
acenado à janela do paraíso.

Se o teu braço preso ao meu caminhasse
avenida fora, costas voltadas para a porta,
sairíamos os dois do quadro
e chegados ao mundo onde não há paraísos
nem janelas nem lenços brancos a acenar,
comprar-te-ia cerejas
para que na tua boca ficasse lento e
irremediável o sabor da minha.

Jorge Carreira Maia, Sobre pintura e desenho de Gustav Klimt, 2008

Gato Fedorento - Entrevista a José Sócrates

Via Abnóxio.

A degradação do corpo docente

Um das causas dos maus resultados em matemática apontadas por um especialista americano é a degradação do corpo docente (ver aqui). Os americanos há muito que fizeram aquilo que o governo português está a fazer: proletarizar os professores. O que é curioso é que os governantes querem por um lado pagar pouco aos professores e, por outro, atrair para a profissão gente com qualidade. Serão assim tão estultos que não percebem a contradição em que caem? Com o novo estatuto da carreira docente, quem com um mínimo de qualidade quer vir a ser professor?

Sobre o eduquês e as ciências da educação

Têm surgido, nos últimos tempos, alguns esboços, tímidos, de defesa dessa coisa que dá pelo nome de eduquês. Convém reflectir sobre o que se entende por eduquês e a relação deste com as ciências da educação.

O eduquês é um termo que, normalmente, designa um conjunto de atitudes perante a escola e apresenta uma linguagem que se pretende científica. Por norma, aqueles que se referem ao eduquês estão a referir-se à ideologia modernizadora da escola que, em Portugal, cresceu a partir da reforma de Roberto Carneiro, mas que já existia talvez desde os tempos de Veiga Simão.

O eduquês é fundamentalmente uma ideologia. Essa ideologia nasce de uma aplicação espúria de conceitos e teorias provenientes das chamadas ciências da educação à vida das escolas. Esses conceitos e essas teorias têm uma função cognitiva. Visam descrever realidades. O eduquês, porém, pretende que esse conjunto de instrumentos teóricos para estudos sobre a educação passem também a ser guias para a prática educativa. Eis o principal problema: a transferência de uma linguagem de um campo onde ela pode fazer sentido, para outro campo completamente diferente. O eduquês é, assim, uma ideologia que nasce por transfert.

Quais as consequências desse transfert? Aquilo que tem sentido no campo teórico-científico e que está sujeito a processos de revisão crítica, ao passar para o campo da prática pretende agora impor-se como verdade científica, à qual todos se devem submeter. De instrumentos científicos sujeitos ao jogo próprio da ciência, as teorias e os conceitos das ciências da educação são agora transformados em normas e prescrições universais de carácter prático a que os protagonistas são obrigados a obedecer. Note-se a natureza da transformação: conceitos e teorias que serviam para produzir conhecimento e sujeitas às regras críticas da ciência, tornam-se em prescrições práticas às quais não cabe criticar mas aplicar. E porque devem os professores aplicar as normas do eduquês? Porque elas são científicas. Veja-se a subtileza da transformação: o saber dá de imediato lugar ao poder, a um poder que se quer incontestado e incontestável. O eduquês não é outra coisa senão uma espécie de cientismo na área da educação, de um cientismo que se torna acção política e, assim, forma de coerção sobre quem age em educação.

Qual o conteúdo desta ideologia? O eduquês é, como todas as ideologias, um corpo difuso. É composto por conceitos vazios, axiomas não evidentes e teorias demasiado maleáveis e pouco articuladas. No fundo, é um linguajar que é utilizado em múltiplas situações, mas onde tudo é indefinido e impreciso. Esta indefinição teórico-conceptual faz parte da natureza do eduquês e da forma como ela se tenta impor enquanto ideologia de poder. A sua nebulosidade permite que ele se adapte às situações e evite responder pelas consequências da sua aplicação. O eduquês evita qualquer clarificação. As suas proposições não permitem qualquer tipo de falsificação popperiana. Isto mostra a natureza pseudo-científica do eduquês.

Como se difunde o eduquês? Esta ideologia tem, neste momento, dois difusores fundamentais. Em primeiro lugar, o ministério da educação – tanto o aparelho burocrático como o político. Através da normatividade legal é imposto às escolas e aos professores uma concepção de ensino absolutamente difusa, cujos traços fundamentais devem ser procurados nos objectivos que se quer atingir. Por exemplo, o direito ao sucesso escolar do aluno. Esta expressão equívoca remete para quê? Não está clarificado. Mas sabemos que esse direito ao sucesso significa que o aluno deve passar quer saiba, quer não, embora isto nunca seja dito. Um segundo corpo difusor do eduquês é o conjunto de professores com pós-graduações em ciências da educação. Mais uma vez, estamos perante um equívoco. Essas pós-graduações são feitas como trabalho científico, mas esse grupo de professores pretende depois aplicar na «prática» o conjunto de teorias que aprendeu. O que acontece, por norma, é que esse conjunto de conceitos, axiomas, princípios e teorias que os docentes transportam agora para a escola não pertence ao mundo da praxis escolar. São, do ponto de vista prático, conceitos vazios, axiomas não evidentes, princípios arbitrários e teorias desarticuladas e discutíveis. Tudo isto é lançado como bombas para dentro da escola. Como nada disto tem que ver com a realidade, a confusão instala-se nas escolas e a comunicação torna-se impossível. A única coisa que acontece é a destruição do velho senso comum escolar que é substituído pela mais ampla cacofonia. Por exemplo, o termo competência significa o quê? Este é um conceito vazio que cada professor preenche ou finge que preenche como pode. O eduquês difunde-se, assim, por cima e por baixo, mas alargando sempre o domínio onde se instala a confusão, onde as palavras, os conceitos e as práticas perdem sentido. A difusão do eduquês torna a vida nas escolas numa espécie de babélia.

As ciências da educação serão assim tão funestas? As ciências de educação terão um importante papel se deixarem de ser o suporte de uma ideologia e se fornecerem dados substantivos sobre a vida escolar. Por exemplo, o problema das aprendizagens da matemática. O que se passa? Os alunos não aprendem porquê? Mau ensino? Currículo desadequado? Atitude dos alunos? Problemas deste género deveriam ser estudados e, depois, discutidos pelos protagonistas escolares, para encontrarem caminhos adequados. O que não é admissível é que conceitos e teorias que servem para descrever o que é e o que acontece, sejam transformados em ideias e ideologia que prescrevem o que deve acontecer.

As ciências da educação, enquanto corpo teórico e praxis científica, estão sujeitas aos processos de crítica e de revisibilidades. Mas o eduquês apresenta-se como doutrina prática com fundamento científico e por isso a única que é verdadeira e que deve ser aplicada. Ora isto não é mais do que uma atitude totalitária. Nunca a investigação científica terá capacidade para dizer o que deve acontecer no plano da acção dos homens.

Thomas Bernhard - Correcção

E eu prossegui a descrição do nosso caminho para a escola, esse caminho comum tinha obviamente servido de fundamento à nossa amizade a três, disse eu, e ela tornara-se uma amizade para toda a vida, ainda que tivéssemos muitas vezes vivido muito afastados durante bastante tempo, a nossa amizade não fora nunca por isso afectada, nem ao passarmos por todas as oscilações da história que já tínhamos vivido, por exemplo pelo período da guerra, pelo contrário, essa nossa amizade a três tinha-se aprofundado de ano para ano e fora, eu assim o disse efectivamente, porque de repente tive a sensação de ser necessário dizer tudo, depois do longo e, por fim, angustiante silêncio, de repente dizer tudo, uma preciosa amizade. E fui levado a fazer mesmo a observação de que essas amizades como a nossa a três duravam para além da morte.

23/03/08

Olivier Messiaen - Louange à l'éternité de Jésus

BOM DOMINGO DE PÁSCOA.

Giotto di Bondone - La Resurrección

Siglos XIII y XIV. Gótico. Italia. Escuela de Florencia, 1302-1305. Fresco. 200 x 185 cm. Capilla de los Scrovegni. Padua. Italia.

22/03/08

Ricardo Reis - Odes - «A cada qual, como a 'statura, é dada»

A cada qual, como a 'statura, é dada
A justiça: uns faz altos
O fado, outros felizes.
Nada é prémio: sucede o que acontece.
Nada, Lídia, devemos
Ao fado, senão tê-lo.

Ricardo Reis, Odes

Leonard Cohen - Hallelujah

A melhor ofensa da semana

Vi, há pouco, numa caixa de comentários do Público, a melhor ofensa da semana, semana aliás recheada de muitas e boas ofensas: “Vai colar cartazes, pode ser que um dia chegues a Ministro.”

Heraclito, fr. 23

Se não houvesse injustiça, ignorar-se-ia até o nome da justiça.

Tudo acabará por se compor

É um tempo de trevas. A promessa da Primavera luta com denodo para se afirmar, mas os tempos de Inverno ainda se fazem sentir. Às vezes chove, outras surge aqui e ali a luz solar, a manchar de uma triste alegria as ruas que vejo da janela. A Primavera não o sabe, mas a sua precária vitória está já assegurada. O medo que ela sente dos tempos de Inverno são uma ilusão vinda de uma noite mal dormida. O seu inimigo, o único e real, ainda não o descobriu ela. Mas, nas manchas de luz, ele já se anuncia como o grande vitorioso, o Verão que virá. É nas garras agudas do calor que a Primavera entregará o espírito. Amanhã é dia de ressurreição e a natureza cantará esquecida da noite que acaba de atravessar, inconsciente daquilo que a espera. Permaneçamos em silêncio e olhemos da nossa quietude o rodar das folhas do calendário. No infinito que espreita, tudo acabará por se compor.

Javier Clavo - Piedad

Siglo XX. Transvanguardia/Figuración. Expresionismo Figurativo, 1964. Óleo sobre lienzo. 140 x 140 cm.

Vasco Pulido Valente - A lei da rua

Na Escola Carolina Michaëlis do Porto, uma escola da classe média e não uma escola "problema" de um bairro popular, a professora de Francês (altamente qualificada, por sinal) confiscou um telemóvel a uma aluna. Quase com certeza porque o telemóvel interferia com a aula (ou porque estava a ser usado, ou porque tocava, ou por uma razão qualquer igualmente grave). A dita aluna berrou e agrediu a professora. Não a deixou sair da sala. À volta, a turma ria e comentava: "Olha que a velha vai cair!", por exemplo. No fim, já havia um molho tumultuário e confuso, que outra criancinha prestavelmente filmava e que dali a pouco apareceu no YouTube e, a seguir, na televisão. Convém acrescentar que a professora era pequena e frágil e a aluna alta, anafada e forte. A brutalidade da coisa constrangia. Perante isto, os nossos comentadores descobriram logo um culpado: os pais. Toda a gente imagina a cantilena: pais que não se interessam pelos filhos; pais que não "educam" os filhos; pais que não lhes tramitem os "valores" do respeito, da dignidade e da convivência. Muito bem. Mas não me cheira que a aluna do telemóvel bata habitualmente nos pais como bateu na professora. Porquê? Porque não acredito que ela goze em casa a impunidade de que goza na escola. Na escola não lhe podem responder bofetada a bofetada. Não a podem em definitivo pôr fora do sistema de ensino (excepto com a aprovação pessoal do ministro). Não a podem sequer fazer perder o ano por faltas. Não há melhor ambiente para um tiranete. É a lei da rua. Em última análise, é a lei da violência.O Observatório da Segurança em Meio Escolar (reparem no nome) registou 185 agressões (físicas, como é óbvio) a professores nos 180 dias do ano lectivo. Tirando as que não foram "participadas" por medo ou por vergonha. Mesmo assim: mais de uma por dia. E não se trata, como provou a Escola Carolina Michaëlis, de um fenómeno marginal, atribuível ao analfabetismo e à pobreza. O que essa monstruosidade indica é a profunda corrupção da escola pública. O Governo pretende agora "avaliar" os professores. Se existisse justiça neste mundo, devia "avaliar" primeiro a longa linha de ministros que desde Veiga Simão (um homem nefasto), Roberto Carneiro e Marçal Grilo arrasaram no ensino do Estado a autoridade e a disciplina e o tornaram na trágica farsa que hoje temos. [Público, 22 de Março de 2008]

21/03/08

Ricardo Reis - Odes - «Vivem em nós inúmeros»

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

Ricardo Reis, Odes

Não contribuir para a diminuição da violência

Consta que o “PSD acusa Governo de não contribuir para diminuição da violência nas escolas”. Que coisa é esta de não contribuir para diminuição da violência? Este tipo de linguagem só pode vir de quem está tão comprometido no desastre educativo como o governo actual. Alguém esquece as responsabilidades do PSD na governação da educação? Aliás, tirando a firmeza da actual ministra na destruição dos professores e da escola pública, que diferença há entre o PS e o PSD na educação? E os outros não fiquem a rir. O CDS não participou também no regabofe? E o PCP e o BE não deram a sua ajudinha com a ideologia da facilidade que cultivaram? Por exemplo, quantas vezes não vi eu, mesmo à minha porta, cartazes da Juventude Comunista Portuguesa a pedir, para além da inevitável educação sexual, o fim dos exames? Na cena política pós 25 de Abril, não há um único partido que tenha as mãos limpas em matéria de educação. Mas PS e PSD então têm-nas manchadíssimas. Se esta gente tivesse um pingo de vergonha na cara, vinha, da direita à esquerda, descalça e com uma corda ao pescoço pedir perdão aos portugueses por aquilo que tem feito na educação.

Abnóxio - o melhor comentário ao estado da nação

Um diário fala de uma professora "brutalizada" por uma aluna de 15 anos; outro, de uma mulher exponencialmente alcoolizada. O Expresso exibe mulheres que preferem mulheres. O Sol continua a publicar as crónicas eróticas de Margarida Rebelo Pinto. Cristo morreu hoje, uma vez mais, na cruz... e já não há a certeza de que tenha vontade de ressuscitar. Para quê?... [Posted by Ademar Santos on March 21, 2008 06:37 PM, no Abnóxio]

Evangelho segundo João

[28] Depois sabendo Jesus que já todas as coisas estavam cumpridas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Sede tenho. [29] Estava pois ali um vaso cheio de vinagre, e uma esponja de vinagre encheram, e envolvendo-a com hissopo, chegaram-lha à boca. [30] Como pois Jesus tomou o vinagre, disse: Consumado é; e abaixando a cabeça, deu o Espírito. (Cap. XIX) Tradução de João Ferreira Annes d'Almeida.

O senhor Valter Lemos

Este senhor, secretário de estado da Educação e o ideólogo do descalabro em que está a cair a escola pública portuguesa, veio dizer que o novo estatuto do aluno ajuda a resolver o problema da indisciplina. Eu sei que o senhor é um daqueles especialistas formados em Bóston e, talvez por isso, não tenha uma grande capacidade de interpretação da realidade portuguesa. Por exemplo, não percebe a diferença entre a letra da lei e o espírito dessa mesma lei. Não percebe como o espírito da coisa anima a rapaziada que nas escolas não quer fazer nada. Por isso, diz coisas como as que disse aqui. A melhor coisa a fazer seria enviar esse senhor, que até teve 20 valores no estágio para professor, para a escola Carolina Michaelis. Um talento desses não se deve desperdiçar na burocracia do ministério. Deve ir para a escola aplicar e viver os seus ideais.

Jordi Pallarés - Crucifixión

Siglos XX y XXI. Arte Último/Abstracción, 1985. Técnica mixta sobre lienzo. 130 x 98 cm.

Gregorian Chant - et lux in tenebris...

Manuel António Pina - O elo mais fraco

O vídeo ontem divulgado (disponível em http//videos.sapo.pt/va7Bw3jUosBvQQGTBYWD) é um retrato dramático da situação a que chegou o Ensino entre nós. Numa escola do Porto, uma professora é agredida em plena sala de aula, agarrada, empurrada e perseguida por uma aluna a quem tirara o telemóvel, no meio de gritos e palmas do resto da turma. Impotente, a professora tenta, em vão, dirigir-se à porta para sair, acossada por um magote de adolescentes que a puxam violentamente, enquanto, em "off", uma voz exulta: "Sai da frente, ó gorda!", "Altamente" "Ela vai cair!". Sabe-se (só o Ministério o ignora) que muitas escolas são hoje um campo de batalha onde ninguém está a salvo, e que ser professor ou aluno deveria dar direito a pagamento de subsídio de risco. Basta compulsar o número de docentes, funcionários e alunos que todos os anos recebem assistência hospitalar. A permanente campanha de desprestígio e desautorização dos professores promovida pelo actual Ministério tornou-os o elo mais frágil e desrespeitado da cadeia educativa. O resultado está à vista. Seria interessante ver como (com que leis ou com que Estatuto do Aluno ou da Carreira Docente) reagiriam a ministra e os seus secretários de Estado na situação da professora da Escola Carolina Michaëlis. [Manuel António Pina, Jornal de Notícias, 21 de Março de 2008]

20/03/08

Ricardo Reis - Odes - «Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.»

Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

Ricardo Reis, Odes

A professora de francês

Terrível é a fragilidade dos homens. Este é o primeiro comentário que faço ao vídeo que corre pela Internet (pode ser consultado no Público ou no Expresso) e onde se vê o massacre de uma professora de Francês, de uma escola secundária do Porto. A disputa corre em torno de um telemóvel. Li muitos comentários. No Público, no Expresso, em blogues. Há comentários de apoio à professora. Há comentários de reprovação à sua conduta. Mas o essencial não está nesses comentários. O que é o essencial?

Que coisa é uma escola para que os alunos se sintam legitimados a ter estes comportamentos? O caso desta professora não é único, nem tão pouco é raro. Estes casos, os que se vêem e os que não se vêem, são o sintoma de uma doença larvar que, já existindo há muito, talvez desde que há escola pública, as políticas educativas têm vindo a acentuar. Há muito que os vários ministérios da educação se têm entretido a enfraquecer a posição dos professores. Em vez de dar ordens claras e distintas às direcções escolares para exigir e manter, com empenho dos dirigentes escolares, uma disciplina que permita o normal funcionamento das aulas, a tutela, nas suas várias encarnações, tem vindo a construir um emaranhado de «direitos» e de «defesas» dos alunos, que lhes tem permitido fazer quase tudo nas escolas, menos estudar.

A escola pública portuguesa está doente, muito doente. Mas a doença não reside onde julga a actual equipa ministerial. A doença reside na cultura bastarda que vem da sociedade e que é absorvida pelos alunos e propagada pelas medidas ministeriais. Introduzir as famílias e a comunidade na escola não vai evitar acontecimentos como estes. Pelo contrário, vai multiplicá-los.

Uma escola decente tem de funcionar mesmo com professores frágeis fisicamente. Não pode ser critério para admissão como professor possuir carisma e poder físico para enfrentar os alunos. Pelo contrário, se um professor for científica e tecnicamente bom, tem o direito a ensinar. Para que ele o possa fazer é que existe um Ministério da Educação e uma direcção escolar. Sempre que um professor, devido à sua natureza física, é impedido de leccionar por este tipo de comportamentos, então o Ministério da Educação e a direcção da escola estão a falhar na sua missão. A sala de aula é um espaço público de formação. A ordem deve ser o normal e aquilo que qualquer aluno deve esperar encontrar. Se o professor é frágil, cabe à direcção escolar dar-lhe o apoio necessário e criar, na escola que dirige, o ambiente para que estas coisas não se passem. Mas a direcção escolar só o fará se sentir que é isso o que o Ministério da Educação quer. Mas será isso que ele quer? Terrível é a fragilidade dos homens.

Jornal Torrejano, 20 de Março de 2008

Esta coisa da gripe dá para o esquecimento. Foi isso que aconteceu na semana passada e, pronto, lá me esqueci de dar notícia das notícias e das opiniões que fazem o Jornal Torrejano. As minhas desculpas àqueles leitores, não serão muitos, que se habituram a clicar daqui para o JT. Deixemo-nos de conversa e, antes de novo esquecimento, vamos ao assunto. Na primeira página, referência para a amizade do governo socialista por Torres Novas. No novo mapa judicial, o governo lá nos leva a comarca. É em nome da modernização do interior. Nota, também, para o I Encontro de Imigrantes da APAI.


Na opinião, comece-se pelo cartoon de Hélder Dias. O José Ricardo Costa, cansado do urinol de Duchamp, escreve DA DA DA. Como eu compreendo a perturbação da fala. Santana-Maia Leonardo, que já não é há uns tempos professor, escreve A avaliação dos professores e as aulas de substituição. Jorge Salgado Simões, apressado, escreve Um minuto. Carlos Henriques, sempre na área do futubolês, escreve A seis pontos do título. Por fim, este baralhado blogger dá-lhe para cristianizar na esquerda baixa e escreve Tempo de Páscoa.

Acabou-se por hoje. Para a semana, se tudo decorrer em conformidade, haverá mais notícias do Jornal Torrejano. Boa Páscoa.

Andy Warhol - La Última Cena

Siglo XX. Transvanguardia/Figuración, Pop-Art, 1984. Pintura acrílica y liquitex sobre lienzo. 101.5 x 101.5 cm. Colección Spiegel. Nueva York. USA.

A prudência do PCP

Prudência é o que aconselha o secretário-geral do PCP sobre a questão tibetana. Acha o líder comunista que estes protestos têm o “objectivo político comprometer os Jogos Olímpicos”. Talvez e depois? Não serão por isso menos legítimos. Que os tibetanos possuam uma cultura e uma identidade específicas e que pouco ou nada tenham que ver com os chineses, isso conta pouco ou mesmo nada. Que o direito internacional seja apenas o resultado da relação de forças entre as potências isso não espanta ninguém. Que a prudência do PCP seja, no mínimo, veneradora da posição chinesa, isso também não. Azar, azar é ser tibetano no Tibete, a esses não há prudência que lhes valha.

Santana Castilho - Força Ministra

No meio de tudo isto, a avaliação do desempenho está longe de ter o impacto que muitos lhe atribuem. A central de propaganda do Governo vinha trabalhando com incontestável êxito no sentido de forjar uma opinião pública desfavorável aos professores. Mas os cem mil que desceram a Avenida da Liberdade alteraram os dados desse jogo sujo e puseram muitos portugueses a pensar. É a esta luz, em minha opinião, que se deve entender a forma suicida escolhida pelo poder para gerir a crise e a insensatez de artigos e declarações públicas que se sucederam.

Como o problema era complexo, alguém puxou pela cabeça e... chamou a polícia. Seguiram-se as profissões piedosas de Rui Pereira e o inquérito da ordem.

Em Chaves, Santos Silva perdeu (uma vez mais) o controlo e disse coisas que só não surpreenderam porque já o tínhamos ouvido, na última campanha para a Presidência da República, referir que a eventual eleição de Cavaco Silva corresponderia a um golpe de Estado.

No dia em que se recordavam os 199 assassinados na barbárie de Atocha, Jorge Pedreira chamou terrorista a Mário Nogueira, quando falava da abertura e da flexibilidade do Ministério da Educação, a poucas horas de se sentar à mesa com o dirigente sindical, para negociar. Nada mais coerente e apropriado ao diálogo e à concertação!

Maria de Lurdes Rodrigues, dada a números como ninguém, desprezou os cem mil! Irrelevante, disse. E lá foi, independente, rir (coisa rara nela) e desagravar para o comício do PS, onde alguns, na sua lógica maniqueísta, foram relevantes.

Os professores que se manifestaram em Lisboa não me lembraram "os hooligans", como o senhor do berbequim sugeriu. Não me incomodaram "os cabelos desalinhados, as senhoras a fazerem tristes figuras". Fico antes perplexo com os bem penteados que confundem velocidade com toucinho e não cuidam de estudar aquilo de que falam. São para eles as linhas que se seguem.

A qualidade do desempenho profissional dos professores é uma das variáveis que contribuem para a qualidade da formação dos jovens e que, por isso, deve ser seriamente considerada na gestão educativa. Mas antes dela abundam muitas outras, que nem a escola nem os professores podem controlar. Lembro algumas, sem as esgotar: baixos níveis de literacia dos progenitores, com a consequente impossibilidade de continuarem em casa o trabalho da escola; empobrecimento das famílias (dois milhões de pobres, dois milhões de assistidos), num cenário de crescente aumento das desigualdades económicas e sociais, que favorecem o abandono precoce do estudo em busca de trabalho, ainda que mal pago; desvalorização do papel social da escola, numa sociedade onde a posse de uma formação longa é cada vez menos garantia de acesso ao trabalho remunerado (fala-se sempre da escola formar para o desemprego, nunca se fala de o mercado não gerar empregos suficientes para todos); universalização do emprego precário e aumento do desemprego; políticas urbanísticas inadequadas, geradoras de guetos étnicos e sócio-económicos propiciadores da exclusão e da marginalidade; aceitação e promoção de um paradigma de vida em que a escola deve substituir os pais (as crianças do básico já passam 39 horas por semana na escola e a medida moderna proposta é estender o estranho conceito de "escola a tempo inteiro" ao secundário, guardando os jovens na escola 55 horas em cada semana).

Outras variáveis, directamente actuáveis pela gestão educacional, permanecem intocáveis ou sofreram intervenções degradantes: planos curriculares e programas disciplinares; orientações metodológicas; prestações exigíveis aos alunos e seu estatuto disciplinar; modelo de gestão das escolas; políticas de formação inicial e contínua dos professores; estruturas de supervisão; políticas de rede escolar e de modernização de equipamentos.


No meio de tudo isto, a avaliação do desempenho está longe de ter o impacto que muitos lhe atribuem. Mas vamos a ela e falemos dos erros que subjazem ao decreto que a regulamenta, sob a forma de perguntas que endereço aos que apoiam a ministra da Educação:

Onde está a evidência mínima, a simples presunção fundamentada, ao menos em experiências similares, que, cumprido o proposto, os resultados dos alunos melhorariam? Que países, daqueles que servem habitualmente de modelo aos arautos da modernidade, ou outros, puseram em prática modelos similares e que resultados foram obtidos? Que análise custo-benefício fizeram os arquitectos do monstro, antes de o parir? Quanto custa observar três aulas por ano (pelo menos, como manda a lei) multiplicadas pelo número de professores a avaliar? Surpreendem-se se adiantar que, só para isso, estaremos a falar de qualquer coisa como 700 salários anuais de professores de topo de carreira? Quanto tempo e quanto custa preencher a loucura de fichas e papéis que o sistema supõe? Não é verdade que, entre outras, sublinho, entre outras, teremos uma ficha de objectivos individuais, uma ficha de auto-avaliação do avaliado, uma ficha de avaliação de um avaliador (coordenador do departamento), outra ficha de avaliação de outro avaliador (presidente do conselho executivo), uma ficha de observação de aulas, uma ficha de avaliação do portefólio do avaliado e o próprio portefólio do avaliado? Poderão e deverão as escolas dedicar um tempo desproporcionado à avaliação dos professores, tempo que retirarão ao ensino, missão primeira da escola? Não é verdade que poderemos ter licenciados a avaliar doutorados? Não estamos, por essa via, a envenenar irremediavelmente o clima relacional entre os docentes, já perigosamente aviltado pela grosseira injustiça que dividiu professores em titulares e outros? Não é verdade que se reduziu ao ridículo a tradicional lógica dos saberes instituídos, quando poderemos ter um professor de Biologia a avaliar um colega de Matemática ou um de Física a perorar sobre o desempenho doutro de Informática? Não será aberrante um biólogo ir observar a aula de um matemático? Não é inaceitável que a ministra argumente que todos os professores avaliadores estão preparados para avaliar colegas, já que toda a vida avaliaram alunos, como se a supervisão pedagógica fosse simples diletância de universitários lunáticos? Não teremos um conflito insanável de interesses, quando avaliando e avaliador podem ser concorrentes a uma mesma menção de "excelente" e o segundo pode driblar o primeiro, esgueirando-se pela porta estreita das quotas?
Não é certo que o sucesso dos alunos é muito mais provável numas disciplinas que noutras? Não é verdade que a avaliação externa não se aplica a todas as disciplinas? Como aceitar que a inteligência diferente dos alunos, a sua aplicação e interesse, as deficiências transitadas de anos anteriores, etc., possam rotular o trabalho dos professores, ao menos sem um acurado mecanismo ponderador? Como indexar, assim, parte da classificação dos docentes a critérios tão vulneráveis? Como negar que a curta história do diploma em apreço seja a macabra história de comportamentos continuados de desrespeito da própria lei por parte dos seus autores, como a insensatez das datas, a não regulamentação do essencial e a trapalhice continuada para salvar a face suja? As perguntas que ficam não são mera retórica. São a evidência de um sinistro disparate. Mas tiveram uma resposta, igualmente sinistra: força, ministra!
[Santana Castilho, Público de 20 de Março de 2008]

19/03/08

Ricardo Reis - Odes - «Nada fica de nada. Nada somos»

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

Ricardo Reis, Odes

Oiseau Rare - Hector Zazou

Mère Geneviève Gallois - Après le reniement, Jésus regarde Pierre

Siglo XX. Vanguardias Históricas/Expresionismo. Gouache sur papier. 43 x 15 cm. Coll. Côme Alexandre. Offranville.

A virtude americana (II)

Mas virtuoso, virtuoso é o presidente George W. Bush. Depois de cinco anos de ofensiva militar no Iraque é preciso ser virtuosamente original par dizer coisas como esta: «Êxito que está a ser vivido no Iraque é inegável». Inegável, claro. Para quem? Para os 4 000 soldados americanos mortos ou as dezenas de milhares de feridos? Talvez para os mais de 100 000 iraquianos que morreram? Façamos lá todos um esforço. Quem, para além dos grupos de terroristas, ganha com a guerra? É aí que está a virtude e a inegabilidade do êxito.

A virtude americana

A vida na América é assim, uma espécie de reality show permanente. Não bastava o pobre Eliot Spitzer se ter demitido do cargo de governador de Nova Iorque, tudo por causa de ter ido às meninas, agora o novo governador, um dia depois da tomada de posse, vem reconhecer que também ele traiu a mulher. Para alegrar a coisa, ainda ficámos a saber que ela o traiu primeiro e, ele pobre e desgostoso David Paterson, não teve outro consolo para a dor senão… Cada vez gosto mais dos velhos vícios europeus e declino a virtude americana. Parece que na América se vive no Afeganistão taliban. Consta que há quem goste.

Esquerda e direita

Medeiros Ferreira diz: «Primeiro foi Freitas do Amaral, depois José Miguel Júdice e Maria José Nogueira Pinto. Agora chegou a vez de Proença de Carvalho prestar vassalagem a José Sócrates. E ainda se admiram que a direita esteja em crise...» Equívoco seu, porém. Não é a direita que está em crise, mas a esquerda. A direita, essa, está no governo e recomenda-se. A esquerda é que se tornou pura e simplesmente marginal no sistema político português.

18/03/08

Ricardo Reis - Odes - «Para ser grande, sê inteiro»

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a Lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis, Odes

O debate sobre a educação

Consta que hoje o PCP agendou um debate parlamentar com a ministra da educação. Queixa-se a oposição, de direita e de esquerda, da senhora não ter respondido às suas perguntas. Mas ainda não compreenderam que a senhora é compulsiva e responde sempre com umas frases feitas sobre os resultados e melhorias e outros delírios que infestam o discurso governamental. No fundo, no fundo, a senhora ministra sabe que o seu trabalho já está feito. Assegurou que os professores pagariam uma parte substancial do défice financeiro do Estado. O resto, a melhoria do sistema, é absolutamente irrelevante. Quem quiser uma educação decente que entregue os filhos aos jesuítas.

The English Patient - Trailer

O realizador de O Paciente Inglês, Anthony Minghella, morreu hoje.

Do excesso e da carência (II)

Há um excesso de China no Tibete e um excesso de violência e um excesso de silêncios cúmplices, mesmo em Portugal. A China é excessivamente capitalista ou excessivamente comunista para que certa direita fale ou certa esquerda se recorde que os tibetanos formam um povo. Depois, há uma carência de liberdade na China, uma carência de poder entre os tibetanos, uma carência de vontade no mundo. Há povos que têm um destino terrível.

Do excesso e da carência

Espera-se demasiado da vida, mas esta está longe de poder satisfazer aquilo que o desejo ou a imaginação lhe propõem como objectivos. O mal-estar difuso, aquele de que nós portugueses padecemos, talvez não seja mais do que um sintoma do excesso. Excesso? Sim, excesso de desejo, excesso de imaginação. Mas não será quando o desejo e a imaginação se mancomunam no excesso que o grito da carência se torna mais agudo?

Antón van Dyck - Cristo en la cruz

Siglos XVI y XVII. Barroco. Escuela flamenca. Óleo sobre lienzo. Sint-Jacobskerk, Antwerp.

17/03/08

Ricardo Reis - Odes - «Não consentem os deuses mais que a vida»

Não consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespiráveis píncaros,
Perenes sem ter flores.
Só de aceitar tenhamos a ciência,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha connosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, às luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
Só mornos ao sol quente,
E reflectindo um pouco.

Ricardo Reis, Odes

Manuel António Pina - Cinco anos depois

Foi há cinco anos, feitos ontem, a "cimeira dos Açores" em que, à margem da ONU e do Direito Internacional, Bush, Blair e Aznar (com Durão Barroso no triste papel de mestre de cerimónias) declararam guerra ao Iraque. Uma guerra longamente preparada a partir de mentiras e provas forjadas. Segundo estudos independentes, só entre 2001 e 2003, Bush, Powell, Rumsfeld, Cheney, Condoleezza Rice e mais membros da Administração americana proferiram um total de 935 declarações falsas (incluindo fotos forjadas e informações fabricadas) sobre a existência de armas biológicas no Iraque. Cinco anos e três biliões de dólares depois (a estimativa é de Joseph Stiglitz, Nobel da Economia em 2001), o Iraque continua mergulhado numa sangrenta carnificina civil, a Democracia está mais longe que nunca e a corrupção e o terrorismo campeiam. A invasão, que fez soltar "lágrimas furtivas" de emoção a alguns, traduziu-se na maior catástrofe de sempre da política externa americana. Mas o saldo de vidas iraquianas é ainda mais devastador centenas de milhares de mortos e um número inimaginável de exilados. Neste quadro de terror e mentira impunes, não deixa de ser chocante que, nos Estados Unidos, um governador seja forçado a demitir-se por ter mentido sobre a sua vida sexual. [Manuel António Pina, Jornal de Notícias de 17 de Março de 2008]

Joan Baez Bob Dylan - Blowin'in the Wind


Joan Baez Bob Dylan - Blowin'in the Wind
Colocado por slzaza

Educação, o tempo das citações

Hoje estamos em tempo de citações. David Justino, um ex-ministro da educação e um homem que enquanto ministro não se esqueceu de lançar a sua confusão no sistema, cita o velho Oliveira Martins que escreve a 24 de Agosto de 1888: «O grande defeito do ensino oficial português está em que os compêndios são maus, os professores piores, e os programas, trasladados das escolas europeias, seriam excelentes por vezes, se não fossem puras hipóteses burocráticas.» Paulo Guinote responde com uma citação das Farpas de Ramalho Ortigão, uns anos mais velhas: «Para que o Liceu operasse ao cabo de um ano de exercício a reforma completa ou a aniquilação absoluta de todos os colégios de Lisboa, bastaria simplesmente, quaisquer que fossem os programas de ensino, que no liceu se estabelecesse a seguinte ordem interna. Isto é: Que se prefixasse a hora da entrada às 8 horas da manhã e a saída ás 5 da tarde. Que uma parte do pessoal docente fosse revezadamente obrigado a permanecer no edifício durante esse espaço de tempo. Que desde o momento da primeira chamada, até ao momento da saída, nunca mais o aluno fosse abandonado pela vigilância dos seus pedagogos.»

Como se vê, os problemas não são de hoje e as soluções também não. Andamos neste imbróglio desde o século XIX e, aposto, não é no próximo que sairemos de lá. Há uma coisa, porém, que ressalta: a ideia de que a escola deve moldar e criar as pessoas que as nossas elites gostariam de ter como povo. Desde Ramalho Ortigão até à Ministra da Educação actual que as elites portuguesas vivem no devaneio de alterar a herança genética do pobre português através da educação. Mais de um século de desmentidos práticos não foram suficientes para tornar patente a inanidade do projecto. Se a prova empírica não é suficiente, resta-nos a constatação de que as nossas elites têm a mesma pouca capacidade de aprendizagem que a ignara massa popular que elas tentam, com desespero e sem proveito, educar.

Joan Ponç - Sin título


Siglo XX. Vanguardias Históricas/Surrealismo, 1946. Gouache y óleo sobre papel. 31.5 x 21.5 cm. Colección L.D. Barcelona. España.

A parolice tecnológica

Sócrates torna a anunciar uma revolução tecnológica nas escolas. Banda Larga a 100 megabytes e quadros interactivos. É evidente que estas medidas servem para embasbacar os parolos tecnológicos, mas quem se debruça sobre os sistemas de ensino sabe perfeitamente que os problemas não estão na tecnologia utilizada, mas na concepção do sistema de ensino e na forma como o poder político dispõe os vários actores em presença. Portugal prepara-se, assim, para ter o ensino tecnologicamente mais avançado do mundo e no qual os alunos mal saberão ler, escrever ou contar. A tecnologia de Sócrates é a nova versão das especiarias do oriente, do ouro do Brasil ou dos fundos comunitários.