Têm surgido, nos últimos tempos, alguns esboços, tímidos, de defesa dessa coisa que dá pelo nome de eduquês. Convém reflectir sobre o que se entende por eduquês e a relação deste com as ciências da educação.
O eduquês é um termo que, normalmente, designa um conjunto de atitudes perante a escola e apresenta uma linguagem que se pretende científica. Por norma, aqueles que se referem ao eduquês estão a referir-se à ideologia modernizadora da escola que, em Portugal, cresceu a partir da reforma de Roberto Carneiro, mas que já existia talvez desde os tempos de Veiga Simão.
O eduquês é fundamentalmente uma ideologia. Essa ideologia nasce de uma aplicação espúria de conceitos e teorias provenientes das chamadas ciências da educação à vida das escolas. Esses conceitos e essas teorias têm uma função cognitiva. Visam descrever realidades. O eduquês, porém, pretende que esse conjunto de instrumentos teóricos para estudos sobre a educação passem também a ser guias para a prática educativa. Eis o principal problema: a transferência de uma linguagem de um campo onde ela pode fazer sentido, para outro campo completamente diferente. O eduquês é, assim, uma ideologia que nasce por
transfert.
Quais as consequências desse
transfert? Aquilo que tem sentido no campo teórico-científico e que está sujeito a processos de revisão crítica, ao passar para o campo da prática pretende agora impor-se como verdade científica, à qual todos se devem submeter. De instrumentos científicos sujeitos ao jogo próprio da ciência, as teorias e os conceitos das ciências da educação são agora transformados em normas e prescrições universais de carácter prático a que os protagonistas são obrigados a obedecer. Note-se a natureza da transformação: conceitos e teorias que serviam para produzir conhecimento e sujeitas às regras críticas da ciência, tornam-se em prescrições práticas às quais não cabe criticar mas aplicar. E porque devem os professores aplicar as normas do eduquês? Porque elas são científicas. Veja-se a subtileza da transformação: o saber dá de imediato lugar ao poder, a um poder que se quer incontestado e incontestável. O eduquês não é outra coisa senão uma espécie de cientismo na área da educação, de um cientismo que se torna acção política e, assim, forma de coerção sobre quem age em educação.
Qual o conteúdo desta ideologia? O eduquês é, como todas as ideologias, um corpo difuso. É composto por conceitos vazios, axiomas não evidentes e teorias demasiado maleáveis e pouco articuladas. No fundo, é um linguajar que é utilizado em múltiplas situações, mas onde tudo é indefinido e impreciso. Esta indefinição teórico-conceptual faz parte da natureza do eduquês e da forma como ela se tenta impor enquanto ideologia de poder. A sua nebulosidade permite que ele se adapte às situações e evite responder pelas consequências da sua aplicação. O eduquês evita qualquer clarificação. As suas proposições não permitem qualquer tipo de falsificação popperiana. Isto mostra a natureza pseudo-científica do eduquês.
Como se difunde o eduquês? Esta ideologia tem, neste momento, dois difusores fundamentais. Em primeiro lugar, o ministério da educação – tanto o aparelho burocrático como o político. Através da normatividade legal é imposto às escolas e aos professores uma concepção de ensino absolutamente difusa, cujos traços fundamentais devem ser procurados nos objectivos que se quer atingir. Por exemplo, o direito ao sucesso escolar do aluno. Esta expressão equívoca remete para quê? Não está clarificado. Mas sabemos que esse direito ao sucesso significa que o aluno deve passar quer saiba, quer não, embora isto nunca seja dito. Um segundo corpo difusor do eduquês é o conjunto de professores com pós-graduações em ciências da educação. Mais uma vez, estamos perante um equívoco. Essas pós-graduações são feitas como trabalho científico, mas esse grupo de professores pretende depois aplicar na «prática» o conjunto de teorias que aprendeu. O que acontece, por norma, é que esse conjunto de conceitos, axiomas, princípios e teorias que os docentes transportam agora para a escola não pertence ao mundo da praxis escolar. São, do ponto de vista prático, conceitos vazios, axiomas não evidentes, princípios arbitrários e teorias desarticuladas e discutíveis. Tudo isto é lançado como bombas para dentro da escola. Como nada disto tem que ver com a realidade, a confusão instala-se nas escolas e a comunicação torna-se impossível. A única coisa que acontece é a destruição do velho senso comum escolar que é substituído pela mais ampla cacofonia. Por exemplo, o termo competência significa o quê? Este é um conceito vazio que cada professor preenche ou finge que preenche como pode. O eduquês difunde-se, assim, por cima e por baixo, mas alargando sempre o domínio onde se instala a confusão, onde as palavras, os conceitos e as práticas perdem sentido. A difusão do eduquês torna a vida nas escolas numa espécie de babélia.
As ciências da educação serão assim tão funestas? As ciências de educação terão um importante papel se deixarem de ser o suporte de uma ideologia e se fornecerem dados substantivos sobre a vida escolar. Por exemplo, o problema das aprendizagens da matemática. O que se passa? Os alunos não aprendem porquê? Mau ensino? Currículo desadequado? Atitude dos alunos? Problemas deste género deveriam ser estudados e, depois, discutidos pelos protagonistas escolares, para encontrarem caminhos adequados. O que não é admissível é que conceitos e teorias que servem para descrever o que é e o que acontece, sejam transformados em ideias e ideologia que prescrevem o que deve acontecer.
As ciências da educação, enquanto corpo teórico e praxis científica, estão sujeitas aos processos de crítica e de revisibilidades. Mas o eduquês apresenta-se como doutrina prática com fundamento científico e por isso a única que é verdadeira e que deve ser aplicada. Ora isto não é mais do que uma atitude totalitária. Nunca a investigação científica terá capacidade para dizer o que deve acontecer no plano da acção dos homens.