17/08/09

Vida, sociedade, prestação de provas

No De Rerum Natura encontrei este texto de Francesco Alberoni sobre os exames:

A vida, na sua essência, na sua estrutura, é projecto e risco. Há sempre um momento em que ficamos suspensos à espera (...). Não compreendo os pedagogos que pretendem acabar com os exames nas escolas. O exame é parte integrante da educação. Não compreendo os pais que pretendem evitar esse stress aos filhos. Viver significa prever, calcular, dominar o stress.

Só quando temos que enfrentar um exame é que nós nos apercebemos do que podíamos e devíamos ter feito. Antes tendemos a deixar-nos embalar pelas ilusões, a imaginar o mundo como gostaríamos que fosse (...). Em todas as alturas, devemos procurar adquirir sempre o estado de espírito próprio do dia que antecede a batalha, para ver se não nos enganámos em nada, se não nos esquecemos de um pormenor importante (...) Devemos reproduzir o melhor possível a realidade, a angústia da realidade, a incerteza da realidade (...). Só (...) aceitando até ao fim o difícil exame, nós podemos correr o risco do futuro.” [Francesco Alberoni (1995). O Optimismo. Lisboa: Bertrand, pp. 84-85]
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Aquilo que o sociólogo italiano escreve já foi o mais puro senso comum. Era uma evidência que iluminava o comportamento de uma comunidade. O que merece meditação, antes de mais, é a forma como essa evidência foi corroída e se dissolveu. Uma grande guerra ideológica foi lançada contra o bom senso comunitário, tornou incerto o que é uma experiência estruturante da humanidade, seja nas sociedades modernas, seja nas sociedades tradicionais, seja nas sociedades arcaicas. Prestar provas (sejam exames ou provas iniciáticas) é o fundamento da integração das novas gerações nas respectivas sociedades. Mas a prestação de provas é também uma demarcação. Prestar provas e ficar aprovado significa que se deixou qualquer coisa para trás, que se saltou um obstáculo, que se cresceu. A destruição dos exames foi uma, entre outras, estratégias para a contínua infantilização das sociedades ocidentais. Na ideologia que certos pedagogos e muitas famílias ostentam, descobre-se uma resistência ao tornar-se adulto, ao crescer, como se a criança e o jovem pudessem viver eternamente na despreocupação e na irresponsabilidade. Este impulso da irresponsabilização emana directamente das novas formas de capitalismo, as quais exigem uma massa amorfa de consumidores, de gente que se relaciona com os artefactos, pertençam eles ao mundo material ou ao imaterial, como as crianças se relacionam com os brinquedos.

Contrariamente ao que pensa a esquerda sobre a educação, o fim dos exames, o fim da prestação de provas, não significa uma maior facilidade na produção da igualdade social. Pelo contrário, este tipo de ideologia não é emancipatório, mas propício a uma reestruturação dos sistemas de ensino, onde os filhos das elites têm acesso, através dos colégios privados e confessionais, a um ensino exigente e rigoroso, e os filhos da plebe democrática têm a escola pública como lugar de gozo e de prazer, lugar de irresponsabilidade social e pessoal. A política educativa seguida nos últimos quatro anos, pela mão dos socialistas, teve como finalidade impor este modelo profundamente classista, o qual começou a ganhar forma com a Reforma Roberto Carneiro, nos tempos em que Cavaco Silva era primeiro-ministro. Não por acaso, Cavaco Silva cobriu todos os desmandos da equipa de Lurdes Rodrigues. Por detrás da retórica da sociedade do conhecimento, por detrás do incenso às novas tecnologias, o que está em jogo é uma brutal divisão social, cujo núcleo central reside na negação aos alunos das escolas públicas o direito a um ensino exigente, rigoroso, de alta qualidade. E isso exige, concomitantemente, se não o fim dos exames, a sua irrelevância.

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