02/12/09

Convívio com monstros


Não foi um acaso que, durante o seu primeiro período, quando praticava explicitamente a introdução à filosofia como uma iniciação, ele [Heidegger] invocasse o medo e o aborrecimento: o primeiro por que ele tira, pela perda do mundo, o sujeito ordinário da sua vulgaridade, o segundo porque ele atinge um resultado similar pela perda de si, e ambos porque fazem resvalar a existência quotidiana e incitam a meditar sobre o lado monstruoso da situação fundamental, o ser-no-mundo enquanto tal. É a razão pela qual o caminho do pensamento, no sentido forte do termo, passa unicamente por aquilo que a tradição religiosa denomina como temor e tremor, ou aquilo que a linguagem política do século XX chama estado de excepção. A filosofia, concebida como meditação do estado de excepção, tem na sua consequência última uma dimensão anti-escolar. Visto que a escola encarna o interesse pelos estados normais, ela possui mesmo, e justamente, uma orientação anti-filosófica, quando pratica a filosofia como disciplina. [Peter Sloterdijk (2000), La Domestication de l'Être. Paris: Mille et Une Nuits, pp. 8/9]


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Retomar esta citação aqui postada há muito, mas não comentada. O interesse não reside tanto na constatação de que a escola, ou a universidade, quando pratica a filosofia enquanto disciplina é essencialmente anti-filosófica. Isso decorre da natureza indisciplinar, para não dizer indisciplinada, da filosofia. O seu uso na escola, ou mesmo na academia, tem que ver com razões extrínsecas à própria filosofia. Resulta de um tributo que a sofística reinante desde sempre - é ela que determina a escola - sente necessidade para apaziguar a sua velha inimiga. A filosofia na escola e na universidade é uma espécie de concessão e uma forma de disciplinar socialmente o indisciplinar que a filosofia potencialmente representa.

Esta natureza indisciplinar da filosofia reside, e é isso que me interessa, no estado de excepção, no temor e tremor que a desencadeia. A filosofia não é assim uma forma de raciocinar melhor, de cumprir as regras lógicas e as normas retóricas da argumentação. Ela é um adentrar-se no perigo, no "lado monstruoso da situação fundamental". Esse perigo e esse monstruoso são o impensado. O impensado é aquilo que não foi reduzido à dimensão do conceito, não foi submetido à luz da razão. Quando se pensa que a filosofia tem esta ou aquela finalidade social ou política, já não se está no âmbito da filosofia.

Aproximar-se do impensado significa, em primeiro lugar, um trabalho de destruição. Destruição do pensado. A filosofia é um enorme estaleiro que visa um deitar abaixo. Nesse ponto, não se separa da poesia, onde o metaforizar é destruição da significância vulgar da linguagem. A metáfora mostra, por efeito comparativo, a insignificância da linguagem submetida à usura do uso (assim mesmo). Este destruir efectivado pela filosofia é, porém, apenas o primeiro passo para o essencial. O essencial é aprender a conviver com o monstruoso. Muitos pensam que o pensar filosófico é uma espécie de domesticação de monstros. Reduz-se o  monstro a conceitos e ele deixa de ser monstro. O filósofo seria então um domador. Mas aqui já se está no campo da sofística, o campo dos monstros amestrados para exibição nas grandes feiras anuais, isto é, nas escolas e nas universidades, bem como na retórica política. A filosofia não dá tamanho consolo nem contribui para a paz pela redução do monstro ao animal amestrado. A filosofia é um espreitar os monstros (eis a sua dimensão teórico-contemplativa, o filósofo é um voyeur consumado, pese a 11.ª tese de Marx ad Feuerbach) e um aprender a conviver com esses mesmos monstro (eis a sua dimensão prática, uma espécie de manual de sobrevivência do indivíduo na terra dos monstros). A filosofia é um convívio com as trevas. Todo o resto que se lhe atribui é literatura da má.

1 comentário:

jotabil disse...

Claro...a filosofia é um pairar, para sempre inquieto sobre o vento abrasador que vem de fora de nós...inconsolados de absoluto.
Nem neste entendimento deixo de sentir a solidão e a necessidadede um apoio que me console....serei sempre o Sísifo que so vou feliz quando penso que subo a encosta....sabendo que talvez mais acima, retorne ao desconsolo do vale e do peso da pedra absurda...que tentarei, indefinidamente, levar para cima...e quando morrer nem sei se estou mais perto ou mais longe da verdade...uma ideia estéril ...é o que é....ou talvez não...traço um caminho...que sendo um caminho...vai levar a algum lado....talvez no fim da sucessão de desertos haja uma porta que dê para um deserto menos deserto....já próximo de òmega....perto da verdade ou de Deus....se eles existirem.

Ficamos a morar na nossa revolta..inquietos e voltamos mais uma vez a vibrar....num retorno sem fim...numa vibação eterna.

cumps