A ilusão do progresso foi, algumas vezes, benigna. Inspirou alguns avanços sociais genuínos, como a abolição da tortura nos processos judiciais. (Ironicamente, como refiro no Capítulo 15, alguns liberais americanos argumentam, agora, a favor da sua reintrodução.) Mesmo assim, acredito que ela [a ilusão do progresso] se tornou perniciosa. Qualquer que tenha sido o seu papel no passado, a crença no progresso tornou-se num mecanismo de auto-decepção que apenas serve para bloquear a percepção dos males que vêm com o crescimento do conhecimento. Em contraste, os mitos da religião são cifras que contém a verdade da condição humana. [John Gray (2004). Heresies Against Progress and Other Illusions. London: Granta Books, pp. 5]
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Como o próprio Gray esclarece, a questão da ilusão na crença do progresso refere-se ao progresso ético e político da humanidade. A ciência e a técnica progridem efectivamente. Há um acumular de conhecimentos científicos e um acréscimo do poder técnico da humanidade. Não há, concomitantemente a este progresso do conhecimento da natureza e dos mecanismos sociais, uma transformação da natureza humana. A realidade humana mantém-se inalterada bem como a sua conduta moral e política. A grande ilusão dos séculos XIX e XX residiu na ideia de uma transformação política da qualidade moral dos homens. Tanto o marxismo como o liberalismo, esses dois irmãos inimigos nascidos das entranhas do Iluminismo, propagaram essa fé, com os resultados que se conhecem.
Parece-me, no entanto, que está a emergir, de forma insidiosa mas nem por isso menos ameaçadora, uma nova abordagem do problema. Gray refere que a crença no progresso [moral e político] bloqueia a percepção dos males que provêm do acréscimo do conhecimento científico, com o poder desmesurado que esse conhecimento confere à capacidade de violência da humanidade. Mas o que se está a passar é algo mais perigoso. O próprio mal moral, e posteriormente o mal político, irão ser colonizados pela ciência. Não uma ciência do mal, mas uma ciência dos comportamentos patológicos. O mal não derivará da liberdade humana e da responsabilidade do agente (uma perspectiva de claro pendor cristão, coisa fora de moda, como tudo o que tenha a ver com a liberdade), mas de uma falta de sanidade.
Ao transformar o mal numa questão de saúde pública, está a legitimar-se a intervenção da ciência. Isso começou já há muito, nomeadamente nas áreas da psicologia e da psiquiatria. A psicanálise, por exemplo, é um momento singularmente importante na escalada da transformação do mal moral em problema de saúde mental ou comportamental. Mas como já está a descobrir-se, este tipo de intervenção é apenas o prenúncio de uma intervenção mais radical e decisiva. A lobotomização, que valeu o único prémio Nobel a um cientista português, é um antepassado remoto do que se prepara. A chave reside no domíno do código genético. Mais tarde ou mais cedo, emergirão projectos de determinação da estrutura genética que, por exemplo, determina comportamentos violentos ou comportamentos socialmente reprováveis.
A tentação subliminar é então a seguinte: fazer com a ciência aquilo que a política não conseguiu: gerar por intervenção científica um progresso moral e político da humanidade. Isso já pode ser pensado e aquilo que é pensado, mais tarde ou mais cedo, é tentado. Por muito rudimentar que ainda seja o saber genético, é já posível surpreender no Zeitgeist a ideia de uma metamorfose da espécie humana. Esta metamorfose não é, nem de perto nem de longe, semelhante àquela que as doutrinas místicas, ou mesmo a filosofia platónica, propõem. Estas são conversões pessoais radicadas na auto-descoberta e num processo de libertação pessoal do egoísmo. Aquilo que está em jogo, porém, não tem este carácter benigno. Visa uma intervenção na própria natureza humana para a alterar radicalmente, visa o desenho efectivo de uma pós-humanidade, numa espécie que se liberta definitivamente do mito da criação, e dos que lhe estão associados, para uma espécie auto-concebida, isto é, auto-produzida, auto-criada.