31/07/07

Cesário Verde - I. De Tarde

Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandeza,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde, Obra Poética Integral

Evanescência e fragmentação

Se tudo se resume a experiências evanescentes, se as grandes totalidades éticas desapareceram, então a vida dos homens é como seria a das palavras se estas existissem independentes umas das outras, sem as totalidades lexicais e contextuais que lhes conferem sentido. Mas não será assim, na evanescência e na fragmentação, que os animais não racionais apreendem e relacionam-se com a realidade?

Miss Pearls

Para esta semana um blogue no feminino: Miss Pearls. A epígrafe reza assim: “um blog com seriedades, muitas banalidades, algumas frivolidades, pechisbeque, chá e torradas. Que me diverte.” E é assim, com esta leveza, não a insustentável leveza do ser, mas pelo contrário com uma leveza sustentável, educada num certo Zeitgeist, aquele que em certos círculos é de bom tom pertencer, mas mesmo assim a merecer a visita, diária visita no périplo pelo caminhos blogosféricos.

Há música, museus, livros, pequenas reflexões, isto e aquilo, como o mundo que nos coube em sorte nos dias de hoje, um mundo disto e daquilo.

Michelangelo Antonioni, o eclipse definitivo

Dias negros para os grandes cineastas europeus. Ontem foi anunciada a morte de Ingmar Bergman, hoje a de Michelangelo Antonioni. Tanto um como outro fazem parte do grande cinema europeu, de um cinema que é muito mais do que entretenimento, como agora se chama à indústria que produz irrelevâncias. O cinema americano tem grandes, enormes realizadores. Mas há sempre nos filmes norte-americanos um toque industrial, algo que os remete para além da pura obra de autor. No cinema europeu, e foi através dele que comecei a amar o cinema, o conceito está mais próximo da literatura. A indústria está, pelo menos, dissimulada. São obras de autores, mais próximas do trabaho de artista do que de gestor de filmagens. Michelangelo Antonioni é um desses grandes autores do cinema europeu. Centrado no neo-realismo italiano, o cinema de Antonioni marcou múltiplas gerações de europeus, com filmes como Profissão: Repórter, A Aventura, Eclipse, O Mistério de Oberwald ou Blowup.

No vídeo, um excerto de Profissão: Repórter. Observe-se o processo de revelação presente neste take. Desde a câmara que se fixa até ao seu lento mover-se, como se a verdade fosse um longo processo de revelação sensorial, mas de uma revelação que necessita de confirmação.


Rendimento social de inserção

Em Portugal, segundo o Público, 106 570 famílias recebem o rendimento social de inserção. No Porto, assiste-se ao crescimento exponencial de famílias dependentes deste tipo de subsídio, enquanto em Lisboa o número de famílias em situação de extrema dificuldade vem diminuindo consistentemente. Portugal é um país onde existe um número assinalável de pessoas em situação de difícil integração. Mas o que se torna claro é o mito que rodeia o norte trabalhador. O norte viveu durante muito tempo de mão-de-obra barata, assente em baixíssimas qualificações. Num momento de reorientação da economia, estes sectores mostram a sua fragilidade e tecem uma teia de pobreza que só admira aos mais distraídos.

Sulcos IX

30/07/07

Amor - VI. No corpo

No corpo,
o fogo e a senda.

Na pele,
sede a incendiar a contenda.

Micropoemas, Amor

De "Amor" a Cesário Verde

Com Do Corpo termina a publicação de mais uma série de micropoemas, esta intitulada Amor. Amanhã iniciar-se-á uma viagem pela poesia de Cesário Verde.

Pinóquio

Os primeiros livros que li, pelo menos de que tenho memória, são os do Pinóquio. Nestas investigações de Verão, encontrei esta capa editado pela Agência Portuguesa de Revistas. Ora a minha memória remetia para outra editora, a Romano Torres, julgo que publicava os livros de Walter Scott. Procurei pela Internet e lá encontrei referência a diversas aventuras de Pinóquio, mas não as originais de Carlo Collodi, entre elas uma de que me lembro muito bem de ter lido: Pinóquio no México, de um tal José Rosado (não consegui encontrar capa na Internet e esses livros há muito se foram).

O curioso é que estes livros eram, em Torres Novas, comprados numa mercearia, o Machado & Lopes, era assim mesmo que se dizia, no singular e no masculino, que além das mercearias propriamente ditas, vendia fazendas e ainda fazia de livraria, à qual dedicava uma das suas montras, perante a qual passei longos instantes a projectar os livros a comprar e a ler, nesse Portugal de província no final dos anos 60 e início dos 70. Atesto que tudo isto é verdade, pois, agora que olho o espelho, vejo que o nariz não me cresceu.

Ingmar Bergman, A Flauta Mágica

Ainda Ingmar Bergman. Uma pequena visita à Flauta Mágica, de Mozart. Birgit Nordin, a Rainha da Noite, canta a ária Der Hölle Rache.



Ingmar Bergman, a vinda do sétimo selo

Foi anunciada hoje a morte do realizador sueco Ingmar Bergman. Tomei contacto com a sua obra naqueles festivais de cinema que se realizaram no Cine-Teatro Virgínia, em Torres Novas, nos anos 70, talvez logo a seguir ao 25 de Abril. Julgo mesmo, embora a memória já não ofereça uma imagem nítida, ter havido um desses festivais dedicado à filmografia do realizador sueco. Talvez tenha sido aí que vi pela primeira vez a Flauta Mágica, de Mozart, filmada por Bergman.

Há dias, num post aqui fez-se referência a um dos seus grandes filmes, Morangos Silvestres. Hoje fica um vídeo de Saraband. O confronto entre pai e filho levado até ao extremo. Não é um cena da vida conjugal, é pior, muito pior…

Agora restam os filmes e a certeza de que Bergman não mais os fará. Saraband é um excelente testamento estético.


Sulcos VIII

29/07/07

Amor - V. Dos seios

Dos seios,
o som e a cor.

Deles, sei
a luz, a vida, o sabor.

Micropoemas, Amor

São Alberto João e Mendes, o pastorinho

Toda a gente sabe o que se passa na Madeira. Quem melhor sabe é o PSD, mas por estranho que pareça, nos dias que correm, quem quiser liderar o PSD precisa de Alberto João Jardim. Por isso, lá está Mendes de joelhos perante S. Alberto João, no espectáculo do Chão da Lagoa. Os votinhos são uma grande coisa.

Títulos de Poupança e Cartões de Crédito

A modernidade exaltou a moratória da satisfação na esperança de a ver continuar a satisfazer depois de expirada a moratória; o mundo pós-moderno em que as autoridades só aparecem, onde quer que sem aviso apareçam, para melhor desaparecerem instantaneamente, recomenda a moratória do pagamento. Se os títulos de poupança eram a quintessência da vida moderna, o cartão de crédito é o paradigma da vida pós-moderna.

Zygmunt Bauman, A Vida Fragmentada – Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna

Jacques Anquetil - Tour de France

Terminou o Tour de France, a mais importante prova de ciclismo do mundo. Depois de múltiplos escândalos e percalços, ganhou um espanhol, um tal Alberto Contador, da Discovery Channel Team. Para hoje, uma pequena homenagem a uma das primeiras memórias que tenho do ciclismo internacional, mais por ouvir dizer do que por me lembrar dele a correr, Jacques Anquetil. Este francês ganhou 5 vezes o Tour (1957, 61, 62, 63, 64). Graças ao YouTube há hoje direito a um pequeno vídeo com uma vitória de Anquetil, em 1962.

Sulcos VII

28/07/07

Amor - IV. No ventre

No ventre,
o fogo e a língua.

Na ausência,
a morte, a dor e a míngua.

Micropoemas, Amor

Uma questão de elasticidade

Pertenço a uma geração que nasceu numa época quase pré-moderna, foi educada nos valores da modernidade, vive num mundo pós-moderno. Em 50 anos quase viveu mil. Não há elasticidade que chegue para tal estiramento.

Música para o fim-de-semana: Mark Feldman - What Exit

Para este fim-de-semana, já um pouco tarde, propõe-se o CD What Exit, de Mark Feldman. Este é um violinista de formação clássica, mas conhecido fundamentalmente nos meios do Jazz de vanguarda. Traduz-se o que se diz, a propósito deste CD, no sítio da Amazon.fr: “Mark Feldman tocou nos discos «Open Land», «Cat'n'Mouse» e «Class Trip» de John Abercombrie e no «Abaton» de Sylvie Courvoisier. Este violinista excepcional, que cresceu em Chicago e reside em Nova Iorque, diriga aqui o seu próprio projecto para a ECM, sob a forma de um grupo transatlântico pouco ortodoxo – com o inglês John Taylor [piano], o sueco Anders Jomin [contrabaixo] e o baterista americano Tom Rainey.

As composições precisas de Mark Feldman exigem uma grande implicação dos músicos, que neste contexto devem mobilizar ao máximo o seu potencial. Este disco evidencia o percurso singular deste violinista sobredotado, que toca tanto jazz (do swing ao free) como música erudita (do barroco ao contemporânea) e que faz sessões de gravação de música country de Nashville!»

CD da ECM, de 2006. Faixas: 1. Arcade; 2. Father Demo Square; 3. Everafter; 4. Ink Pin; 5. Elegy; 6. Maria Nuñes; 7. Cadence; 8. What Exit.

No vídeo, proveniente do YouTube, Mark Feldman aparece integrado no Quartet de John Abercombrie, num concerto ao vivo.


Jornal Torrejano, 27 de Julho de 2007

Desde ontem on-line, a edição do Jornal Torrejano puxa para primeira página a visita a Torres Novas da deputada do BE, Helena Pinto, no âmbito da política de integração dos deficientes no mercado de trabalho. Ainda em destaque a Festa da Juventude em Riachos.

No âmbito da opinião, há uma certa tentação de alguns cronistas por títulos em línguas estranhas. José Ricardo Costa escreve Engenharia gramatical, Jorge Salgado Simões prossegue com os seus Paralelos inusitados, Victor Lúcio Freire publica Y viva España, A. Pinto Correia, Preocupante e este blogger, The show must go on.

Esperemos que na próxima semana a referência ao JT saia na própria 6.ª feira. Desta vez não foi possível por ausência do blogger em parte incerta, o que quer dizer: sítio onde não tinha acesso à Internet.

Sulcos VI

26/07/07

Amor - III. A boca

A boca,
terra e água.

Embriagado,
morro de sangue e mágoa.

Micropoemas, Amor

O videoclip e a cassete

Na entrevista de ontem, o primeiro-ministro instado a falar da educação veio, de novo, com a cassete das aulas de substituição. Perante o descalabro global do sector, descalabro fomentado pelo próprio governo, as aulas de substituição são agora a esfarrapada bandeira que Sócrates tem para propaganda. Mas não há aulas de substituição nem plano tecnológico que valham ao governo: na educação, as coisas pioraram drasticamente e cresceu uma cultura aberrante fundada na facilidade. A escola de Sócrates e de Lurdes Rodrigues é uma escola de faz de conta, um cenário de videoclip publicitário. Entre uns videoclips, vamos ter direito à repetição infinita da cassete.

Medeiros Ferreira - Os heróis da liberdade

Medeiros Ferreiro no post que se reproduz, sem referir o governo do seu partido, foi mais acutilante do que Manuel Alegre no artigo do Público. Post com várias camadas para ler aqui ou no Bicho Carpinteiro, que mereça visita diária. Há em Medeiros Ferreira uma inteligência serena e uma enorme honestidade intelectual. Que pena não haver muitos como ele na vida política.

"Sou partidário do recomeço das celebrações políticas do 24 de Julho de 1834, data da entrada em Lisboa das tropas liberais. Abraço a génese do liberalismo político em Portugal, independentemente da forma monárquica que subsistiu, por a considerar heróica e libertadora num país de castiços e de trauliteiros. De certa maneira a implantação da República em 1910 é uma espécie de novo impulso dessa soberania que residia em a Nação, e o regime nascido com o 25 de Abril um renascimento de ideais que foram perseguidos e enterrados pela «política do espírito» e pelos esbirros do Estado Novo. Esse renascimento permitiu a salutar reacção contra o processo disciplinar ao professor Charrua. Mas os heróis da liberdade de expressão foram esses que reagiram ao processo, nomeadamente na blogosfera, não o professor Charrua, mais perto dos castiços e dos trauliteiros pelos seus dizeres..."

Fantômas

Há um tempo na vida onde a eternidade parece ser a própria natureza das coisas. Esse tempo é aquele em que vivemos no país encantado da infância e da primeira adolescência. O Verão, por esses dias, era se não a própria eternidade, pelo menos uma imagem dela. Aí quando o espírito ainda não estava inquieto, havia tempo para as leituras, enormes leituras, estivais. A passear pela Internet, em escavação arqueológica, descobri uma dessas leituras. As obras de Pierre Souvestre e Marcel Allain que possuíam por protagonista um anti-herói, Fantomas (Fantômas, na tradução portuguesa), criminoso genial, em luta contra o comissário Juve, sob o olhar de Fandor, o jornalista. Quase 100 anos depois da saída do primeiro Fantômas, ainda esta trilogia – malfeitor, polícia, jornalista – mantém um papel central na vida das sociedades contemporâneas. Vejam-se os telejornais. Aqui em baixo fica uma das capas do primeiro volume da série Fantômas.

Na altura em que surgiu a série (1911 – 1913), despertou o entusiasmo da grande intelectualidade de língua francesa. Blaise Cendras chegou a considerá-la, não sem amplo exagero, “a moderna Eneida”. Appolinaire considerou que “Fantômas, do ponto de vista imaginativo, é uma das obras mais ricas que existe”. Mesmo Jean Cocteau afirmou: “lirismo absurdo e magnífico”. Mas naqueles tempos em que li algumas, mas não muitas, aventuras de Fantômas, não fazia a mínima ideia da existência de Cendras, ou de Apollinaire, ou de Cocteau. Lia. Era isso que se fazia, aqueles que o faziam, no calor do Verão. Para concluir o post um vídeo. Louis de Funès, no papel de comissaire Juve, com a pouca graça que sempre lhe achei. Excelente o DS de Fantomas.

Sulcos V

25/07/07

Amor - II. Dos olhos

Dos olhos,
a luz e o halo.

Da seda,
o cetim e o segredo que calo.

Micropoemas, Amor

O Partido Socialista

Há três momentos fundamentais na história do Partido Socialista. O de Mário Soares, o de António Guterres e o de José Sócrates. Com Mário Soares, o PS era um partido caloroso e de grandes ideais, a liberdade, a Europa e o equilíbrio social. Com Sócrates, o PS é um partido frio, destituído de qualquer ideal ou de princípio. É uma agência de luta pelo poder e de distribuição de cargos pela rapaziada. E com António Guterres? Com Guterres foi o pântano onde os nobres ideais se afundaram e cálculo frio e sem princípios começou a borbulhar, antes de ver a luz do dia. Nada distingue, hoje em dia, o PS do pior PSD. Infelizmente.

Coerência


A incoerência contumaz é a única coerência em que acredito.

Música às quartas - 10 Virgínia Rodrigues - Sol Negro

Para hoje uma voz extraordinária vinda do Brasil. A música popular brasileira, de múltiplos matizes, é um filão inesgotável de grandes vozes. Virgínia Rodrigues foi descoberta por Caetano Veloso que, numa entrevista dada em 1998, diz: “escutar uma canção na voz celestial que sai de um corpo roliço de uma robusta mulher negra comoveu-me muito. A sua voz transcende a distinção entre o erudito e o popular. Fiquei profundamente impressionado com o seu timbre único e a sua profunda sensibilidade.” De facto, a voz extraordinária, repito e sublinho, de Virgínia Rodrigues ultrapassa dicotomias e impõe-se criando um novo horizonte para a audição da música popular.

Há momentos como, por exemplo, a faixa Verónica do álbum de hoje – Sol Negro – em que a imaginação me conduz directamente de Virgínia Rodrigues para o contratenor René Jacobs, numa das interpretações do Stabat Mater, de Pergolesi, que mais gosto. O que mostra claramente que a cantora está para além dos géneros. Isto tem tanto mais significado quanto a infância de cantora, passada em S. Salvador, foi pobre e sem escolas de música erudita.

O CD Sol Negro data de 1997, é o CD de estreia, editado pela etiqueta Hannibal. Faixas: 1. Negrume da Noite; 2. Lua, Lua, Lua, Lua; 3. Adeus, Batucada; 4. Manha de Carnaval; 5. Verónica; 6. Noite de Temporal; 7. Terra Seca; 8. Nobreza; 9. Sol Negro; 10. Querubim; 11. Israfel.

A canção Sol Negro é de Caetano Veloso, e é cantada por Virgínia Rodrigues e Milton Nascimento.

O vídeo, proveniente do YouTube onde há muito pouco de Virgínia Rodrigues, junta-a com Naná Vasconcelos, numa interpretação de Canto de Xangô.


Tralha grotesca

Helena Matos, Antropofobia, no Público de hoje. Nem vale a pena comentar. Claro e distinto. O artigo completo só na última página do Público. Os "bold", para além de surgirem mais gordos, como lhes competia, surgem a preto, como não era esperado, são nossos. Fica um pouco multicores, mas está de acordo com o Zeitgeist.

"Contudo, o quadro interactivo agora anunciado pelo Governo é muito mais patético do que a caixa electrónica [dos CTT] que os interessados têm de activar através duns procedimentos contemporâneos do papel selado. É mais patético porque, ao escutar-se Sócrates a explicar as maravilhas do dito quadro, se percebe como ele acha que tudo se resume aos adereços. Ao contrário do que afirmou o nosso primeiro-ministro, a relação professor-aluno não muda por causa dum brinquedo que desenha de forma perfeita os ângulos dos losangos. O quadro interactivo não faz falta alguma ou melhor dizendo faz tanta falta quanto antes deles fizeram os ainda recentes acetatos ou já os desaparecidos flanelógrafos: se o professor for bom e se a turma estiver motivada, esses objectos ajudam a tornar mais interessante aquilo que já o é. Caso contrário, ou seja, se o professor for mau e se os alunos não estiverem interessados, então todas essas apregoadas maravilhas se transformam numa tralha grotesca.

Mais do que os edifícios e do que os equipamentos, as escolas são as pessoas. E não apenas os professores e os alunos. Por exemplo, muitas das mais graves agressões registadas nas escolas acontecem porque existem espaços e horários em que não se avista um funcionário, vulgo contínuo. Quando agora se anuncia a instalação de sistemas de alarme e de videovigilância nas escolas "para protecção externa e salvaguarda do investimento de que os estabelecimentos têm sido alvo", não faria mais sentido optar-se por reforçar a componente humana dessa vigilância? O principal objectivo da vigilância, acreditava eu, era a segurança dos alunos, professores e funcionários e só depois a dos equipamentos. Mas ao optar-se pela videovigilância e pelos sistemas de alarme opta-se claramente por defender o quadro elecrónico e não as pessoas.

A escola do futuro anunciada por Sócrates é um local onde as figuras de autoridade como o professor e os funcionários são cada vez mais menorizadas e substituídas, nas aulas, pelos quadros interactivos e, nos pátios, pelas câmaras de videovigilância. Esta escola é o resultado dum governo que sofre duma variante da antropofobia aplicada especialmente aos portugueses. Não há interactividade que nos valha
."

Sulcos IV

24/07/07

Amor - I. A Noite

A noite,
relâmpago breve.

Saber o fruto,
os gestos e o sono leve.

Micropoemas, Amor

Abre-se o mercado, aumentam os preços…

Grande cavalo-de-batalha do governo, a venda livre, fora das farmácias, de medicamentos não sujeitos a receita médicas. Resultado: os preços aumentaram, segundo um estudo da DECO. Eis o liberalismo em Portugal. Ainda há gente que acredita num mercado puro, onde só existam as leis da concorrência, e na bondade de tudo isso para o consumidor. Eu, por mim e à falta de melhor, acredito no Pai Natal.

500 Years of Women Art

Graças ao Zé Ricardo cheguei a este vídeo. Quinhentos anos de representação do rosto feminino na pintura ocidental. Tudo o que uma mulher é está ali. Sem que nos apercebamos, fomos educados a olhar as mulheres a partir destas imagens. Imagens? Não, arquétipos, modelos que enquadram a experiência do feminino, do enigma que se esconde sob a face de cada mulher que, naquela representação, se apresenta. O conceito que suporta o vídeo é o de metamorfose. Cada uma está fixa, para toda a eternidade e, no entanto, ela move-se, elas movem-se, elas mudam de forma, elas mudam... Retomemos então a ária de Verdi, do Rigoletto: “La donna è mobile / qual piuma al vento / muta d’accento // e di pensiero.” O Duque de Mântua era um cínico…

Charrua, a DREN e a Ministra da Educação

A Ministra da Educação arquivou o processo a F. Charrua. Reconhece que uma qualquer sanção poderia configurar “uma limitação do direito de opinião e de crítica política”. Perante isto cabe pensar o seguinte: ou havia já um amor prévio à liberdade de expressão e então não se percebe por que razão a senhora Ministra deixou chegar o caso onde chegou; ou houve uma súbita conversão ao direito de opinião e crítica, o que só poderia ter sido motivado pela indignação que percorreu a esfera pública e a blogosfera, em particular. Seja como for, a senhora Ministra só pode demitir a senhora da DREN, que anda a gastar dinheiro público com processos que visam a liberdade de opinião. Veremos até onde vai o amor à liberdade.

El Solitário venceu a etapa...

Acabo de assistir na SIC a esse memorável momento em que um tal “El Solitário” chegou ao tribunal da Figueira da Foz, julgo, para ser ouvido pelo juiz. Foi num sprint vigoroso, a multidão correu para o vencedor da etapa, e o repórter, coitado, entre a multidão, ofegava, ofegava. Estava contente, feliz pelo dever cumprido. Eu também, zapping…

Portugal dos Pequeninos

Tem em epígrafe o seguinte escrito “O que me interessa é chamar a atenção para o estado de crise moral em que nos encontramos, aquilo a que chamo a ‘ciganização do país’.” A frase é de António José Saraiva, o blogue, porém, é de António Gonçalves. Tem o feliz nome Portugal dos Pequeninos. Não se trata de reflexões sobre a altura física dos portugueses, mas da estatura política dos agentes de poder. É um dos blogues mais bem escritos da blogosfera nacional. Um português vivo, ácido, talvez com um grau de acidez superior à das crónicas de Vasco Pulido Valente.

Orientação? Conservadora, com nostalgia de algumas virtudes políticas vindas de Salazar e da elite do Estado Novo. Inimigos a abater? A desmedida estultícia com que as actuais elites no poder, ou a que ele aspiram, exibem na praça pública a supina vaidade e a não inferior ignorância. A ler aqui todos os dias, mesmo que se tenha dificuldade em ver virtude no salazarismo e não se acompanhe a ilusão da emergência de uma direita impoluta. Por que motivo haveria de ser diferente da esquerda?

Sulcos III

23/07/07

Eugénio de Andrade - X. Nocturno

Noite,
noite velha
nos caminhos.
A lua no alto
fingindo-se cega.
Estrelas. Algumas
caíram ao rio.
As rãs
e as águas
estremecem de frio.

Eugénio de Andrade, Primeiros Poemas

De Eugénio Andrade a "Amor"

Com o poema Nocturno termina um ciclo dedicado a Eugénio de Andrade. Amanhã retomar-se-á o ciclo Micropoemas, agora com um conjunto de seis poemas, intitulado Amor.

Sentado à porta



O olhar vira-se para fora para que o mundo venha para dentro. Quando adormeço, o mundo espera sentado à porta.

Paolo Conte - Via con me

Uma viagem a Itália, para visitar não as vedetas de rádio dos anos 60, como a Gigliola Cinqueti ou o Gianni Morandi, coisa aliás que já mostrei ser capaz de fazer, mas para ouvir a voz rugosa, quase granito, de Paolo Conte (1937). Nota-se a influência da canção francesa – Brel, Brassens, Ferré, etc. – num universo pessoal, por vezes frenético, outras melancólico. O primeiro disco, Paolo Conte, data de 1974. Não faz parte das minhas investigações arqueológicas, descobri-o já bem adulto e ainda hoje oiço Paolo Conte. No ano passado, saiu uma recolha, espécie de best of, de 50 das suas canções, num triplo álbum denominado Wonderful.

Via con me - Paolo Conte
Colocado por osmose-

Plano Tecnológico para a Educação

Vamos ter Plano Tecnológico para a Educação. Inclui computadores, impressoras, projectores de vídeo, câmaras de videovigilância, quadros interactivos e cartões electrónicos. Inclui, como qualquer plano que se preze, objectivos e metas, isto é, toda a panóplia inerente à razão projectista, que de há uns anos para cá se tornou a ideologia oficial da escola. Tudo isto pode contribuir para melhorar as condições que se oferecem a alunos e professores. Mas nada disto garante que os alunos aprendam ou que os maus professores ensinem. Isto faz parte da velha estratégia portuguesa: há problemas graves, então deita-se dinheiro sobre eles e talvez as coisas melhorem. Nunca melhoraram.

As eleições turcas

A vitória expressiva, com um substancial reforço de votação, de Erdogan, nas eleições turcas, reflecte a natureza ambígua da própria Turquia. Há a promessa de respeitar os valores republicanos e laicos, mas também há a mensagem de que o islamismo, entendido como ideologia pré-moderna, está vivo, mesmo aqui ao lado. A bola foi devolvida para o campo europeu.

Sulcos II

22/07/07

Eugénio de Andrade - IX. XXIX

As imprecações haviam-no despido
tem a cabeça inclinada sobre o rio
a sombra desatada
os lábios hábeis para o silêncio
onde o sangue onde a noite onde o frio…

Eugénio de Andrade, Limiar dos Pássaros

Contradizer-me


Há pessoas que nunca se contradizem, afirmam. Deprimo-me nos dias em que não me contradigo pelo menos três vezes. Por isso, de todos os apóstolos, de quem mais gosto é de Simão Pedro. E não foi ele o escolhido?





Burhan Öçal & Basar Dikici

Entrei em contacto com a música de Burhan Öçal através do álbum Caravanserai, do Istanbul Oriental Ensemble, onde Öçal era líder. Hoje, em dia de importantes eleições na Turquia, aqui fica, graças ao YouTube, um vídeo de um dos seus músicos mais representativos. Acompanhado pelo Basar Dickici. No vídeo está todo o enigma turco: uma música oriental num cenário ocidental.

O enigma turco

Eleições na Turquia. Mais uma vez o enigma turco. Que ventos conduzirão, no futuro próximo, a sua política?Aqueles que sopram do Irão e do mundo muçulmano ou os que vêm da Europa. Seja qual for o resultado, seja qual for a inclinação dos turcos, a Turquia será sempre uma peça fundamental do xadrez político europeu. Desde o século XV que é assim.

Vestígios VI

21/07/07

Eugénio de Andrade - VIII. Os Lábios

Na música que é tua,
meus lábios torrenciais
caem pesados, duros.
E nunca mais.

Despenham-se a prumo:
vidros ou punhais.
Arrastam-se ao fundo.
E nunca mais.

Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio

Percy Sledge - When A Man Loves A Woman

Pronto, pronto, desculpem lá, mas estamos no Verão. Quantos bailes de Verão, país fora, não terá havido em que um grupo de rapazes lá se esforçava por imitar o Percy Sledge, isto para não falar nos bailes privados, iluminados pela sombra do gira-discos. Se há música para constituir família, era assim que há 30 anos se falava, então esta canção está no top-ten, ou mesmo no top-five. Seja como for, o artista é um bom artista e a cançoneta, uma boa cançoneta. Divirtam-se. Grande coisa é o YouTube. Para ver a letra clicar aqui.

O animal feroz

Há um tema – e só um, viu-se ontem – que solta o animal feroz que Sócrates diz ter dentro dele: o autoritarismo do Governo, a claustrofobia democrática, a ameaça às liberdades. Usar uma destas expressões com o primeiro-ministro é como uma profecia que se auto-realiza: diz-se ‘autoritarismo’, Sócrates irrita-se; pronuncia-se ‘arrogância’, Sócrates diz que não recebe lições; fala-se em ‘intimidação’, Sócrates lança um olhar furioso. [Filipe Costa Santos, Expresso, 21/07/2007]

O problema da natalidade

A quebra de natalidade não é um mero problema financeiro. É uma questão civilizacional. Está associada à capacidade de gestão da actividade reprodutiva e à forma como as pessoas vivem. Cada vez que vejo estados europeus a tomar medidas de apoio à natalidade, interrogo-me se elas não terão, pelo menos nos países onde existem comunidades emigrantes com altas taxas de reprodução, um efeito dissolvente dos precários equilíbrios sociais existentes. Estas políticas ocultam uma coisa: o nosso estilo de vida está a revelar-se contrário à existência da própria humanidade, ele é o sintoma de uma pulsão de morte existente no Ocidente.

A nova política de natalidade

A nova política de natalidade do governo reconhece a existência de um problema, mas transforma-o numa questão assistencialista: fomenta o apoio aos pobres, como quem precisa de mais mão-de-obra disponível para os que o não são.

Vestígios V

20/07/07

Eugénio de Andrade - VII. Ecos de Verão

Quando todo o brilho da cidade
me escorre pelas mãos, que já não são
mais que fugidio ecos de verão,
a música dos dias sem idade
subitamente como fonte ou ave
rompe dentro de mim - e nem eu sei,
neste rumor de tudo quanto amei,
se a luz madrugou ou chegou tarde.

Eugénio de Andrade, Até Amanhã

Música para o fim-de-semana: John Cage - A Firenze

A etiqueta Materiali Sonori editou, em 1993, o CD de hoje, John Cage – a firenze. O CD apresenta uma pequena entrevista com o compositor, e uma amostragem da sua música, tocada por diversos intérpretes (ver mais abaixo as faixas).

O compositor americano John Cage (1912 - 1982) é um dos mais importantes da vanguarda do século XX. Foi aluno de Arnold Schoenberg e, a partir da inspiração deste, Cage desenha o seu próprio caminho artístico, o qual vai muito para além da música, tocando a poesia e as artes plásticas. Enquanto músico, parte de uma ideia central: a música é som e silêncio. O silêncio não está para além da música, mas no seu núcleo central. A peça 4’ 33 (embora a duração da interpretação seja livre) é composta apenas pelo silêncio.

Inventor do piano preparado, muitas das suas peças para este instrumento remetem para a influência de Erik Satie, embora a linguagem seja, pelo menos em aparência, menos irónica do que a de Satie e marcadamente mais mecânica. O mundo, e aqui refiro-me ao mundo sonoro ou à sonoridade do mundo, em que viveu Cage é muito diferente daquele em que viveu Satie. Há toda uma sonoridade trágica em Cage que não encontramos em Satie.

Faixas: 1 - Interview With John Cage (edited by Michele Porzio); 2 - Solo For Voice 2: With Simultaneous Performance Of Solo For Piano; 3 - Winter Music: Two Pianos Version; 4 - Ryoanji: for double bass and tape; 5 - Variations 1: bass flute version; 6 - Two: for flute and piano; 7 - Music For Amplified Toy Pianos

Graças ao YouTube, aqui fica a composição 4’ 33, com os seus 3 movimentos. Não faz parte do CD. Será a influência da ironia de Satie? Ou apenas a manifestação da vanguarda ocidental, na sua máxima expressão? O silêncio ainda é, para Cage, uma nota, como dizia Yoko Ono.

Jornal Torrejano, 20 de Julho de 2007

Sexta-feira é dia de Jornal Torrejano. Nas bancas e on-line. Nas notícias, pode ler o “rótulo ecológico” concedido pela União Europeia à Renova. Pode ainda ler, entre outras coisas da terra e da região, a perspectiva da CDU sobre o desenvolvimento concelhio.

Na opinião, Hélder Dias e o seu cartoon voltam ao ataque. José Ricardo Costa escreve O laboratório de Química, Jorge Salgado Simões, os Paralelos inusitados, Carlos Nuno, Cartas de amor, Pinto Correia, Burro velho não aprende línguas, e este decaído blogger perora sobre Saúde, catástrofe financeira e soberania.

Se o mundo continuar a não sair em demasia dos eixos, sexta-feira que vem haverá mais Jornal Torrejano.

O objectivo da educação

A educação, bem longe de ter o indivíduo e os seus interesses como único e principal objectivo, é, antes de mais, o meio pelo qual a sociedade renova continuamente as condições da sua própria existência. A sociedade só pode viver se entre os seus membros existir suficiente homogeneidade. A educação perpetua e reforça tal homogeneidade, começando por fixar no espírito da criança as semelhanças essenciais que a vida colectiva requer.

Émile Durkheim, Educação e Sociologia

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Retome-se um dos grandes nomes da Sociologia, um dos seus pais fundadores, Émile Durkheim. No extracto citado expõe-se, ainda que de forma implícita, o paradoxo subjacente à educação. Quando se lê que a educação é “o meio pelo qual a sociedade renova continuamente as condições da sua própria existência”, poder-se-á pensar, devido à presença do verbo renovar, que a educação é o lugar de inovação – seja esta entendida de forma revolucionária socialista, seja de forma revolucionária liberal.

Mas a renovação, no caso concreto, significa conservação. A sociedade conserva-se porque renova as “condições de possibilidade da sua existência”. E que condições são essas? São “a suficiente homogeneidade” entre os seus membros. A educação ao perpetuar e reforçar essa homogeneidade mostra-se, na sua essência, avessa aos ditames de um liberalismo que assenta, pura e simplesmente, na gestão racional dos interesses do indivíduo.

Não foi por acaso que, em muitas sociedades modernas, o Estado foi assumindo um papel central na Educação. Fê-lo para assegurar aquela homogeneização, para evitar a disseminação de visões idiossincráticas.

O que subjaz ao desejo corrente de privatização da educação? Subjacente encontra-se uma pulsão de destruição da própria comunidade. Entregar a educação aos interesses particulares é o primeiro passo para fazer emergir uma multiplicidade de idiossincrasias em confronto, a que se seguirá o fim da “suficiente homogeneidade”, até que os laços que ligam os indivíduos uns aos outros se rompam. Em muitas sociedades isso já se passa. A sua desagregação está em curso, devido ao afastamento entre os indivíduos e à ideologia individualista triunfante.

Vestígios IV

19/07/07

Eugénio de Andrade - VI. As Palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade, Coração do Dia

Bill Evans - Nardis

Nardis, o tema deste vídeo, foi composto por Miles Davis. Há dezenas de gravações pelos mais diversos músicos de Jazz. Esta é uma, de entre muitas interpretações, feita pelo pianista Bill Evans. É acompanhado por Marc Johnson, em baixo, e Joe LaBarbera, na bateria. Vídeo encontrado no dailymotion.

Bill Evans - Nardis
Colocado por MrDrive

Que fazer?

Os spin-doctors que engendraram e fomentaram a política educativa deste governo, já terão percebido que ela não é só má para a educação portuguesa (ver post infra) [isso pouco lhes interessa], mas é fonte, a cada hora que passa, de descrédito para o governo? Já lá vai o tempo em que a demagogia contra os professores animava o circo. Que fazer com os chefes políticos daquele ministério?

Mal haja, senhora ministra

Com a devida vénia, transcreve-se o excelente e informativo, sublinho informativo, artigo de opinião, no Público, de hoje, de Santana Castilho, professor do ensino superior. Quem for assinante do Público on-line, pode ler o artigo na íntegra aqui. Quem não for, terá de procurar no Público em papel.


“Analiso as políticas educativas, na imprensa portuguesa, de forma permanente e regular, desde 1981. Digo, pesando o que digo, que este é o pior Governo para a área educativa não superior de que guardo memória. Tudo o que seria importante para promover a qualidade do sistema de ensino ou não foi realizado ou foi objecto de medidas que degradaram ainda mais o que já era mau. A ministra da Educação e os respectivos secretários de Estado foram tecnicamente incompetentes e politicamente irresponsáveis. Transportando para o mundo do ensino a cultura dominante da governação de Sócrates, actuaram como pequenos ditadores e 2006/2007 cola-se-lhes à acção como o ano da chibata. (…)

1. As políticas para o ensino foram boçais e destituídas de visão estratégica. A ministra e os seus ajudantes mostraram ter cabeças tayloristas, convencidas de que gerir passa por fazer, pela força e pelo medo, com que os professores executem as suas ideias inconsistentes. Qualquer mudança, desde que reduzisse, economizasse e afrontasse os professores, foi considerada moderna e progressista. (…)

Governo privilegiava com isso: diminuir o salário dos professores; piorar as condições em que exercem a profissão; cortar-lhes direitos protegidos pela lei que os próprios carrascos produziram (vide as decisões dos tribunais sobre as remunerações das aulas de substituição); tornar cada vez mais precárias as condições contratuais, em obediência aos cânones da liberalização selvagem; fechar escolas (900 a somar às 1400 do ano transacto). (…)

2. O recente concurso de "professor titular", a que foram opositores os docentes dos anteriores 8.º, 9.º e 10.º escalões, é bem o paradigma da trapalhada, da injustiça e do improviso em que se afunda a 5 de Outubro: duma vida inteira de profissão, iluminados decidiram que só uns anos contam; dos cargos, os mesmos deram preferência aos administrativos; durante a semana em que o concurso decorreu, pôde o país verificar, atónito, que consoante os dias assim a posse do grau de mestre somava ou retirava pontos ao número necessário, como o exercício de cargos políticos equivalia ou deixava de equivaler a serviço docente; concorrentes ao concurso integraram órgãos de verificação e validação de dados, ou seja, foram juízes em causa própria, com um quadro referencial de confusão e bagunça, o que faz prever uma bela caldeirada conflitual final. Imaginar-se-ia pior?

3. Se do lado dos professores o ano foi mau, do lado dos alunos só podia ser pior. Os exames, fundamentais como sempre tenho defendido, mas longe de tudo resolverem ou serem o mais importante de todo o processo, são o motivo, por via dos respectivos resultados, para que o país acorde, embora só por escassos dias. (…)

Há semanas, depois de múltiplas decisões judiciais contra o Governo, o Tribunal Constitucional decretou a inconstitucionalidade de um despacho do secretário de Estado Valter Lemos, sobre os exames, que prejudicou 10.000 alunos e beneficiou 5000, em violação da igualdade que deve presidir ao tratamento dos cidadãos num Estado de direito. Que aconteceu? Nada! Nem a ele nem à ministra que defendeu, contra tudo e contra todos, com a arrogância que lhe conhecemos, o indefensável. (…)


Sem contenção de linguagem e sem o mínimo rigor pedagógico e científico, a ministra ligou o Plano da Matemática, com escassos meses de acção, incompleta, mesmo assim, por incumprimento seu, aos resultados dos exames que estariam para vir. Quando apareceram os primeiros, do 12.º ano, que nada têm com o famigerado plano, que apenas contempla o ensino básico, embandeirou em arco e insinuou uma relação que não existe. Finalmente, deve ter mordido a língua quando foram conhecidos os do básico, os piores de sempre, que reduziram ao ridículo as declarações que produziu antes. (…)

No ano que ora finda, nada do que pode mudar o desastre foi realizado. A trapalhada do edifício curricular permaneceu incólume, assim como a incoerência dos programas de estudo. Aumentou o facilitismo e a idiotização do ensino. Subalternizou-se ainda mais a Literatura no ensino do Português. Empurrou-se para debaixo da mesa a trapalhada da TLEBS. Liquidou-se a Filosofia. Manteve-se uma dispersão assassina e ignorante de solicitações aos alunos (12 disciplinas no 3.º ciclo do básico e mais tempo de permanência na escola que os operários nas fábricas, não é de loucos?). (…)

Promoveu-se o clientelismo e premiou-se a delação e o servilismo. Mudou-se a legislação disciplinar, mas continua a ser mais fácil falsificar uma nota de 50 que actuar com eficácia sobre os pequenos delinquentes, que tornam a vida dos colegas e dos professores um martírio diário. Nada mexeu quanto ao anacronismo da gestão das escolas. Professores, vítimas de cancros em fase terminal, foram indignamente chibatados para morrerem no posto, em nome duma lógica economicista que rejeita aquisições civilizacionais básicas. Mal haja, senhora ministra."

Os filhos do Iluminismo

O Iluminismo gerou dois monstros, o liberalismo e o socialismo. Quando, no ódio visceral que por vezes existe entre irmãos, se vigiam um ao outro, as pessoas podem respirar e viver no sonho de um mundo decente. Quando um triunfa pelo esmagamento do outro, chega então o tempo dos pesadelos mais atrozes.

A Natureza do Poeta

Milan Kundera, numa entrevista concedida, há muito, a Christian Salmon, para The Paris Review, ao falar do seu romance La Vie est Ailleurs, afirma que partiu da hipótese de trabalho seguinte: «o poeta é um jovem que a mãe leva a exibir-se perante o mundo no qual ele não é capaz de entrar». O que Kundera pretende mostrar é que esta definição não é sociológica, nem estética, nem psicológica. Ela tem, segundo ele, uma especificidade própria, a de ser romanesca. A sua pretensão, no referido romance, foi a de explorar o casamento do lirismo, da revolução e da juventude, sendo aquela definição de poeta o ponto de partida, para a exploração de um modo de existência perverso.

O que Kundera não notou foi a impossibilidade de dar uma definição de «poeta» que não fosse puramente poética e metafórica. O que talvez, sublinho o talvez, nos permita dizer que o núcleo central de toda a actividade romanesca está fora do romance, com as suas categorias da narrativa e da acção, e centra-se na poesia. Se olharmos para a definição dada como um exercício metafórico, o que se descobre?

Descobrimos que a definição de poeta não é dada por conceitos, mas por 4 metáforas. Quais? O jovem, a mãe, o exibir-se e o mundo. É no cruzamento destas 4 metáforas que emerge o sentido do poeta.

A metáfora mais pregnante é a da mãe. A mãe é a metáfora que ilumina a própria poesia. Assim como não há filhos sem mãe, também não há poetas sem poesia. Todas as funções maternais podem ser transferidas para explicar o que é a poesia. A mãe como a geradora, doadora de vida, aquela que alimenta, a que cuida, a que vela, a que vê o filho crescer. A poesia é a fonte originária de todos os poetas, é a matriz onde cada poeta se inscreve, é o que alimenta os poetas.

A metáfora do «jovem» vem de imediato, embora seja a primeira a surgir no texto. «O poeta é um jovem…» Então não há poetas que não são jovens? Claro que há, há poetas que não têm mãe, a não ser a poesia. O «jovem» não deve ser entendido como alguém que é biológica ou psicologicamente novo, mas o estado essencial do poeta relativamente à linguagem, a sua matéria de trabalho. O trabalho do poeta é a renovação constante da linguagem. De certo forma, o trabalho poético é um roubo. O poeta rouba à linguagem o seu valor quotidiano, baseado no hábito, na palavra que se degradou pelo uso comum. O trabalho do poeta é devolver sempre uma linguagem nova e pura. Ao ser nova essa linguagem aumenta as capacidades de ser explorada e trabalhada por todos aqueles que falam ou que escrevem. Um poeta enquanto poeta, mesmo em avançado estado de senectude, é sempre jovem, pois é essa a natureza da sua linguagem.

A metáfora do mundo é a mais perigosa, pois surge de forma equívoca. Nesse «mundo» o poeta não é capaz de entrar. Há aqui uma sugestão subliminar de timidez. O poeta seria apenas um tímido incapaz de entrar e, por certo, de conquistar o mundo, visto como o conjunto das relações sociais. Perante essa timidez e impotência ele torna-se poeta. Mas se lermos o «mundo» como a metáfora para a linguagem e as relações mundanas como metáfora para o uso relacional da língua, o que descobrimos? Descobrimos o uso depauperado da língua, a desvalorização, isto é, a perda de valor da comunicação, o triunfo da rotina e do hábito. É neste mundo que o poeta não consegue entrar. Mas esta incapacidade não é impotência, pelo contrário. Perante a usura da língua o poeta toma a cargo a sua renovação, a salvação, o encontrar das fontes de onde a própria linguagem mana. Estas fontes não são religiosas, nem metafísicas. Elas são físicas. A poesia é um trabalho físico, onde o poeta trabalha para que as palavras, descativadas da rotina, possam exprimir de forma sempre nova aquilo que é (a realidade) sempre em metamorfose.

Sim, é verdade, a poesia leva o poeta a exibir-se no campo da linguagem. Exibir-se é a metáfora para a oposição entre a linguagem poética e a linguagem quotidiana. Mas esta oposição é o ponto de partida para que a linguagem quotidiana seja fecundada pela poética. A exibição é a revelação ou manifestação [há aqui todo um campo de metáforas que fizeram a fortuna da religião, da filosofia e da ciência] da linguagem renovada, no palco da poesia, perante a plateia dos usos quotidianos da linguagem. Como se pode compreender, nada assegura que a plateia tenha espectadores ou que estes prestem atenção ao espectáculo, ao que se exibe.

O poeta é apenas aquele que trabalha sobre a linguagem, na tentativa de mantê-la viva e de não deixar esmorecer a fonte que assegura a expressão daquilo que é e da comunicação inter-humana. Kundera, preso à sua tradição romanesca, aliás excelente, não consegue perceber a essência do poético, apesar de, sem o querer, a revelar na sua natureza metafórica, a única onde o poético se pode dizer. Não será que por trás do romanesco se encontra o poético, nesse conflito eterno entre o épico e o lírico?