A Cidade Flutuante - 40. Desfiava as contas pelos dedos
Desfiava as contas pelos dedos
e via a cidade, colecção
de naturezas mortas,
o trabalho de um construtor
de herbários
a juntar pétalas e fetos,
um caule apodrecido
no suor,
dos dedos se desprendia.
Não eram borboletas
nem aves de rapina,
o que no céu então subia.
No alto, nas nuvens opacas,
quase translúcida, vogava
a serra, plácido barco
num mar encapelado,
a cortar ventos,
a esconder segredos,
pequenos desígnios
a arder no cálice do horizonte.
Coração impenitente,
onde te escondes que não te sinto?
Constróis cidades de ervas e flores
e pedras vindas do alto
dessa serra onde fomos,
na verdura dos anos,
olhar de soslaio
e descobrir entre matos
o rosmaninho bravio
da cidade a conquistar.
Coração errante,
Para que queres tu habitar
a morada que te dou?
Já não te chegam os herbários,
nem a natureza morta,
nem as aves de rapina
a fingir borboletas.
Não te chega os anos
que vieram,
o enfraquecer do pulso,
a combustão que diminui,
a água que se solta do poço
e pelas ruas ébria
se vai.
Não te chega a pele que tocaste,
o arfar silencioso
com que os corpos
se davam à tarde,
ceifados de cansaço,
a tremer como se de Deus
então fugissem.
Ó sombra,
velho verdugo,
caíste sobre
as lajes onde caminhei,
de coração
incendiado,
errante,
impenitente,
a desfiar contas,
a coleccionar naturezas mortas,
abismos de pedra
em ruas de cal.
Sombra,
que te desfias em trevas,
onde perdeste
o gosto pela luz?
Se uma rede
ainda houvesse,
deitar-me-ia nela
e aconchegado
pelo vento da avenida
esperaria a noite
até os olhos,
de tão abertos,
se esquecerem da vida
e no abrigo
das pálpebras
desenharem
o herbário húmido
onde a morte se tece.
[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]
1 comentário:
A segunda estrofe e as sextilhas da
quinta e sexta estância agradaram-me particularmente...
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