A Cidade Flutuante - 39. Se balbuciasses as palavras
Se balbuciasses as palavras
que nas tardes quentes
te ensinei,
o Verão sempre as trazia,
se as soletrasses
naquelas horas
onde o dia para a morte resvala,
se as soubesses
no sítio a que chamas
o meu coração,
haveria um rumor
de plantas a caminhar,
a deixar pegadas sobre a água,
e uma luz de cristal
na manhã que vai.
Vejo as bocas emudecidas
nos gritos que delas saem
e o olhar vítreo
é um espinho,
na alma o enterras,
um cavalo abandonado
à porta de quem foi
e não torna mais.
Porque emudece o mundo?
Palavras flutuantes,
azedas,
palavras mortais,
as sílabas desfeitas,
letras quebradas,
um resto de sílica
na penumbra onde
os deuses para nós
as sonharam.
Tudo fala e grita
e um bando de aves
traz da minha surdez
o sinal.
Paro, as casas são uma pústula
e a vida a tudo infecta,
contamina
como um vício de cerejas
sobre a largura da mesa.
São assim as palavras,
se da boca saem,
uma ilha perdida
no mar azul do silêncio.
Gritas?
Ó balbuciasses apenas
as palavras
que há sombra
destas árvores te dei…
[JCM. A Cidade Flutuante. 1993/2007]
1 comentário:
Verdadeiramente belo, este poema.
Sem dúvida que a "poesia em si" revela muita sensibilidade e uma grande qualidade.
Venha mais!
Enviar um comentário