12/06/07

Não me levar a sério

A única coisa positiva que tirava daquela forma de viver era o que ia aprendendo nos cursos da universidade. Possivelmente não me valeria de nada para viver no mundo, mas ao menos ajudava-me a entendê-lo. Pode-se estar no mundo metido nele, comprometido com ele: o que tem uma família, o que luta pelo seu trabalho, o que tenta modificá-lo; mas há outro modo de estar: situar-se de fora, contemplá-lo e fazer uma ideia do que se passa. Esta ideia não tem por que ser certa, basta que o pareça. Se se tiver talen­to, acaba-se por se ser filósofo, das muitas maneiras que a realidade oferece a es­te exercício; se não se tiver, tanto faz, porque a ninguém interessa nem ninguém o impede de ter ilusões. Há-os que escrevem as suas reflexões em jornais e revis­tas, letra morta que se esquece. Se o fazem em verso, e o verso é bom, podem durar um pouco mais. De uns e de outros conheci vários exemplares. Mostravam o seu poema ou o seu artigo como solução do mundo e seguiam pelas ruas como iluminados: uma luz que só eles viam. Eu tinha sobre muitos a vantagem de não me levar a sério, de considerar as minhas ideias como erros ou meras fantasias sem consistência, sem nunca esperar que acertassem em cheio. Nos meus estudos literários tinha aprendido o que é uma função: as minhas ideias cumpriam a sua, que não era a de me enganar a mim próprio porque nem mesmo isso me era da­do, o enganar-me.

Gonzalo Torrente Ballester, Filomeno para meu pesar, Publicações Dom Quixote

Caricatura de Ballester: www.gonzalotorrenteballester.com/obra.html

Sem comentários: