01/08/08

Reflexão sobre um comentário

A prezada leitora Maria Correia faz um comentário (cuja leitura recomendo vivamente antes de se olhar para este texto) ao meu post Um ódio popular aos professores. Aproveito a sua intervenção para esclarecer alguns pontos sobre o mundo do ensino. Não é bem uma resposta, mas uma reflexão sobre os problemas que levanta.

1. O respeito aos professores. É um facto que houve e há, ainda, um certo respeito pelos professores. Mas há também uma cultura popular com acolhimento nas elites, nomeadamente nas elites políticas, que não compreende o papel do professorado na sociedade e tende a um disparar contínuo sobre esse estrato. Este governo é um claro exemplo disso. Mas este governo só fez o que fez porque sentiu que isso era bem acolhido por uma parte substancial da população. Mas contrariamente ao que se possa pensar, o problema do respeito (o único sentimento racional, no dizer de Kant) não é essencialmente um problema que afecte os professores enquanto pessoas (nunca por nunca ser, nos muitos anos de professorado, me senti desrespeitado enquanto pessoa). É um problema que afecta a sociedade e a transmissão dos valores fundamentais que cabe legar às novas gerações. O professor precisa de uma certa aura para que os valores escolhidos pela sociedade possam ser veiculados por ele e apreendidos pelos alunos. Sem essa aura, o seu trabalho perde eficácia e sentido. Entendamo-nos, o problema do respeito pelos professores, não tem a ver com as suas pessoas, nem com a corporação, mas apenas e só com a sociedade e o futuro das novas gerações.

2. A consciência de classe. Pessoalmente não possuo qualquer consciência de classe enquanto professor. A minha visão do que deve ser o professorado aproxima-o mais das profissões liberais do que de uma profissão em que faça sentido a consciência de classe. Portugal não precisa de professores com consciência de classe, mas de professores com uma elevada consciência individual e uma percepção profunda da sua missão. Esta missão radica no problema da natalidade, isto é, no facto de haver novas gerações que precisam de ser integradas na comunidade pela compreensão dos seus valores fundamentais transmitidos pela instrução. O papel dos professores, fundamentalmente os do ensino não superior, é o de criar continuamente as bases do consenso comunitário que permite que todos nós queiramos viver uns com os outros sob as mesmas instituições. Os professores são nas sociedades modernas, pelo seu papel, os construtores da soberania. Não é a consciência de classe que me move nos comentários, por vezes muito duros, que faço sobre a realidade educativa, mas uma consciência de um papel insubstituível da instrução e dos professores, papel esse que vem sendo degradado e distorcido pelo poder político com o apoio de amplos sectores da população.

3. O problema dos maus professores. É um facto que existem professores, não sei em que percentagem, que não deveriam sequer aparecer diante de uma turma. Mas essa foi uma escolha feita pelo poder político. Durante muito tempo precisou desesperadamente de gente nas escolas que fizesse o papel de professor, mesmo que para tal não tivesse a mínima capacidade. O problema, porém, é que, depois de um amplo bombardeamento da opinião pública contra os professores baseado no facto de haver maus profissionais, o governo actual acabou por promover muitos desses professores. Introduziu métodos de avaliação dos docentes que, pela sua natureza, vão reforçar a mediocridade e penalizar aqueles que tradicionalmente se reconhecem como sendo bons professores. Basta ver os critérios de avaliação propostos. Há um claro perigo para a sociedade portuguesa na actual política educativa, a qual, apesar de tudo, tem merecido um apoio generoso na opinião pública e até do representante máximo dos portugueses, o Presidente da República. Os maus professores vieram para ficar com o apoio prático não apenas do poder político, mas também da população. Eu sei que ninguém gosta de ter maus professores para os seus filhos. Mas o problema é que muitas dessas pessoas acabaram por reforçar opções políticas que promovem a mediocridade geral dos docentes.

4. A questão dos instrumentos de trabalho. Esta é uma questão prática. Refiro-a apenas porque foi ela que desencadeou o meu post anteriormente citado. Utilizo computadores para o trabalho escolar há muitos anos. Terei pago uma boa meia dúzia. A única coisa que faço é leccionar. Também tenho uma boa biblioteca da minha área paga por mim. Só serve para apoio do meu trabalho. O grande problema é que as bibliotecas escolares são pobres e as escolas também têm sido pobres ao nível tecnológico. Os professores mais interessados fazem como eu tenho feito: pagam do seu bolso a auto-formação e os computadores (pode crer que representa uma despesa significativa). Isto pode ser muito louvável, mas está longe de ser justo. O melhor seria, por um lado, existir em cada escola, ou num conjunto de escolas da mesma área, uma boa biblioteca científica para as várias áreas de leccionação e, por outro, cada escola disponibilizar aos seus professores um computador portátil para o trabalho escolar, o qual seria devolvido pelo professor se saísse da escola. Aliás, é isso que se faz em certas universidades. Isto seria a forma profissional de trabalhar.

5. O meu ódio aos portugueses. Não há ódio aos portugueses. Há, porém, uma contestação radical da forma como se olha – tanto ao nível popular como ao nível político – para o papel da instrução e dos professores. Essa visão é uma das causas do chamado atraso português. Há uma cultura – que não é de toda a sociedade, mas de uma parte significativa – que não compreende a especificidade da instituição escola nem da missão do professor. Só isso. O meu conflito não é com os portugueses em abstracto, mas com uma cultura. Também aquilo que me move não tem um carácter corporativo ou sindical, nem propriamente educativo, mas político: o que é o melhor, ao nível da instituição escola, para a comunidade a que pertenço.

1 comentário:

maria correia disse...

Obrigada pela sua reflexão, JCM. Mas permita-me dizer que o problema do respeito (ou falta dele) pelos professores é algo que percorre quase toda a Europa, com excepção dos países ditos nórdicos,não constituindo apenas um mal específico dos portugueses.

A consciência de classe: por vezes, é o que JCM demonstra quando escreve sobre os problemas do ensino. É o género de retórica que usa, sabe, que o faz parecer um acérrimo defensor da consciência de classe--com todos os perigos que isso implica. Obrigada pela simpatia para com os profissionais liberais. E concordo consigo quando diz que o que falta é uma consciência individual. Mas, mais uma vez, o problema não é só nosso.
Os maus professores: já afirmei váris vezes que sou completamente a favor do ensino público. Por mim, acabaria com tudo o que é privado, dos infantários à praga das universidades privadas (acabam por ir fechando, por males óbvios). São muitas vezes ninhos onde os maus professores se encostam à «privacidade». Claro que também existem no ensino oficial e são muitos. Mas a razão por que lá estão não é apenas devido a políticas governamentais e a apoio mais ou menos condescendente da população. O mal também está dentro da própria instituição do ensino oficial, conivente com essas políticas e com o laxismo. (não me esqueço de alguém que constà vontade. antemente recorria ao artigo 4, nem ds greves que batiam sempre certo com os fins de semana e os feriados, até os miúdos viam isso com toda a clareza. Mais uma vez, o mal não é só nosso, nem de uma «cultura» portuguesa. Passa-se em Espanha, em França...em Itália...
O material escolar: pois muito bem, se é para uso escolar exclusivamente. Mas permita que diga que acho um exagero toda essa história de computadores para os meninos todos...qualquer dia, já não sabem olhar para um bom globo, onde é muito mais fácil ensinar onde fica a Austrália ou o Chile, do que andar em caminhadas virtuais pelo Google Earth.
O ódio aos portugueses: pois fico feliz por o não ter, JCM, mas é o que muitas vezes transparece dos seus textos, em que a corrosividade é dirigida aos portugueses quase constantemente, esquecendo-se de que essa «cultura» contra o ensino e os professores não é um mal apenas nosso. Por exemplo, saia da Europa e dê um pulo às escolas americanas para ver o que se passa. As políticas de ensino implementadas cá vêm de fora, como sabe. São políticas que servem corporações e interesses que visam atacar o ensino público como instituição ideal, tornando-o num mero redil para os pobres e desfavorecidos ( o que até há relativamente poucos anos não se passava cá, acolhendo os estabelecimentos de ensino privado como «fábricas» de construção de elites dirigentes. O nosso atraso não se prende com uma «cultura» que desrespeita o ensino e o saber. Prende-se a conjunturas várias, territoriais e políticas, prende-se a alguma «submissão» por nossa parte a políticas e estratégias estrangeiras. Concordo em que há um mal, mas o mal não é apenas nosso nem específico da nossa cultura e sociedade. O problema do «funcionalismo público», no sentido do desempenho laxista e dependentista do estado, por exemplo, não é apenas nosso. No mundo que melhor conhecemos, começa nos Estados Unidos, atravessa o oceano e passa por quase toda a Europa. E até conheço funcionários públicos exemplares, tanto cá como fora do país!
E permita que acabe com uma pergunta: o que é o « nosso atraso»? Se é não ter uma nuvem de poluição por cima da cabeça, como existe em várias cidades ditas «avançadas» do mundo, então, prefiro assim.
E mais uma coisa: os portugueses têm uma capacidade espantosa de, com pouco, fazer muito. Multiplacamos os pães à boa maneira de Cristo...e não sigo religião alguma, apesar de ser profundamente religiosa, no sentido de re-ligare o profano ao divino. tenho dito. Obrigada.