21/08/08

O rosto humano

Ecce Homo

No editorial de hoje, do Público, José Manuel Fernandes, escreve, a propósito da Primavera de Praga, o seguinte: «Porque a partir de então se tornou claro que não havia forma de reformar o comunismo por dentro, que nunca haveria "um socialismo de rosto humano", como notou o historiador Tony Judt. Mais: é nessa altura que, num quadro intelectual já tocado pelas obras de Alexandre Soljenitsin (cujos livros mostravam o rosto inumano do regime soviético), a repressão da revolta estudantil polaca e, sobretudo, a brutal invasão da Checoslováquia, se desencadeou entre os intelectuais pró-comunistas do Ocidente um movimento de ruptura com os partidos comunistas.»

Deixemos de lado a questão política, e meditemos no par conceptual que estrutura a posição de JM Fernandes: rosto humano/rosto inumano. Há uma ideia perigosa neste tipo de abordagem, ideia essa corrente e que satisfaz o senso-comum e a autocomplacência com que os seres humanos se encaram a si-mesmos. Essa ideia reside em associar o que há de bárbaro no comportamento humano a qualquer coisa inumana. Este artifício tem como consequência iludir a realidade. Parece dizer: não, não foram homens que fizeram o gulag soviético, os campos de concentração nazis, a exploração desenfreada de certas fases do capitalismo, a deflagração das bombas atómicas em Hiroshima e Nagasáqui, a inquisição da Igreja Romana, as mil tropelias que ao longo de milénios têm entretido a espécie humana.

A violência, porém, é um traço decisivo do homo sapiens sapiens e nunca deixou de o acompanhar. Não apenas uma violência contra aquilo que na natureza o rodeia, mas uma violência contra a sua própria espécie. Mais, esta violência poderá estar relacionada com a sua espectacular capacidade de adaptação ao ambiente terrestre e ao triunfo e dominação sobre outras espécies. Ora, dizer que o gulag ou os campos de concentração são inumanos é transformar a violência produzida pelos homens na sua relação com os outros em qualquer coisa de metafísico, que está para além do homem e da qual, em última análise, a humanidade não seria responsável.

Por muito chocante que seja para as boas consciências, o gulag, a inquisação, os campos de concentração, as perseguições xenófobas, a violência racial, etc. são profundamente humanas. Qual a vantagem de pintar um quadro tão negro da humanidade? Numa primeiro momento, é não nos iludirmos sobre a nossa própria espécie e estarmos sempre prontos para perceber os sintomas da violência que se prepara – a retórica humanista criou um véu que impediu que muita gente percebesse a tempo os crimes dos campos de concentração nazis ou do gulag soviético – e, num segundo momento, tentar precaver a irrupção do irracional nas relações inter-humanas.

A retórica assente na oposição rosto humano/rosto inumano representa um pensamento preguiçoso, um pensamento que, por motivações ideológicas, se demite de pensar a natureza do próprio Homem. Há uma violência que nos constitui, uma violência que, a qualquer momento se poderá manifestar, e que se pode congregar nas próprias instituições humanas e tornar-se numa máquina de liquidação em série do próximo. Mas esta retórica elide também a verdadeira vantagem dos regimes democráticos. Estes regimes políticos não são regimes de «rosto humano», uma espécie de coro angélico da política. Como quaisquer outros regimes políticos, também os democráticos assentam na violência. Esta violência não é apenas aquela que se diz ser a violência legítima, da qual o Estado deve possuir o monopólio. Existe uma outra violência que se esconde sob o verniz civilizado das facções que se confrontam no espaço público. A sabedoria política da democracia reside no equilíbrio das potências violentas que se confrontam na sociedade. Dito de outra maneira, o respeito pela opinião e pelas decisões dos outros, bem como o Estado de direito, estão fundados no medo. Mesmo os partidos democráticos mais civilizados possuem na sua matriz um gene demasiado humano ligado à violência, ao terror e à irracionalidade. Deixados à solta, isto é, sem o terror da retaliação de outros, logo produziriam os seus gulags, os seus campos de concentração e os seus progroms.

Sem comentários: