04/08/08

O deslizar da linguagem

A Visão da semana passada trazia uma entrevista com a ginecologista-obstreta Maria do Céu Santo, especialista em medicina sexual. A uma pergunta sobre as práticas sexuais dos portugueses, dá uma resposta que, a certo momento, apresenta determinada informação codificada linguisticamente assim: «Há também as independentes, que não querem parceiro fixo, embora chegue um momento em que entram em conflito – nas férias, eles acabam por estar com as parceiras fixas e isso deixa-as numa enorme insegurança. (Visão n.º 804, pp. 84)».

Eis como a linguagem desliza e sub-repticiamente parece apresentar um mundo absolutamente amoral. Os termos parceiro/parceiras são utilizados como forma de des-moralizar as situações amorosas e de torná-las num problema meramente técnico, que, eventualmente, dirá respeito a um conjunto de práticas terapêuticas, mas não ao mundo onde os seres humanos se confrontam com os valores que presidem aos seus comportamentos.

Todavia, a formulação da especialista em medicina sexual está cheia de valorações morais. Assim, as “que não querem um parceiro fixo” surgem com uma etiqueta que indicia um alto valor moral. Elas são «as independentes». Meditar sobre a significação do conceito de «independente» remete imediatamente para a dimensão da autonomia e da submissão a uma lei que se dá a si-mesmo, deixando a sugestão que as outras, as que possuem um parceiro fixo, são dependentes, o que, em linguagem moral, significa que são menores, que não atingiram a autonomia e, assim, se recolhem à protecção desse parceiro fixo.

Observe-se como uma linguagem pretensamente técnica e descritiva opera uma mutação na apresentação dos valores morais. Na tentativa de uma descrição moralmente neutra das relações amorosas, acaba por se manifestar um conjunto de perspectivas morais, que, agora, valorizam de facto um outro tipo de comportamento e um outro código de valores morais, diferentes dos habituais. Por muito que a linguagem pretensamente técnico-científica, seja ela proveniente das áreas da medicina ou da psicologia, queira retirar conteúdo moral à sexualidade humana, isso é manifestamente impossível. A própria linguagem acaba por trair estas estratégias e tornar evidente essa impossibilidade.

O mundo que emerge deste tipo de discurso não deixa de ser bizarro. Parece que o único problema destes novos modelos da moralidade sexual, «as independentes», é as férias. Não houvesse férias, e nada no seu comportamento faria bulir a sua consciência independente. Embora não se perceba bem porquê. Não são as férias, na mitologia das sociedades ocidentais, esse tempo feliz para os amores descomprometidos e sem parceiro fixo? Maldita linguagem que tantas armadilhas trazes aos advogados do Zeitgeist.

1 comentário:

maria correia disse...

Tem absoluta razão. Urgiria um novo romantismo, não um neo-romantismo, mas um novo romantismo. Que se passasse de novo pela «prova de fogo» que foi o romantismo, como dizia Natália Correia. Só faria bem a esta corja toda que quer reduzir o ser humano a um rato de laboratório. E mais, urgiria um romantismo político também. Acabar de vez com a tirania do número e do capital.