02/08/08

A questão do regime

Continuam os ecos da comunicação presidencial. Apesar do conteúdo da comunicação ter importância, continuo a pensar que a forma era dispensável. Mais, que a comunicação se insere numa estratégia política do Presidente que visa o aumento da sua intervenção. Mas não é isso que agora importa. Para além luta política mais evidente, aquela que opõe os diversos actores políticos, existe um conflito surdo sobre a concepção de regime democrático. Quem está atento à esfera pública e à blogosfera percebe que uma certa opinião julga que seria útil alterar a estrutura do regime democrático. Do actual regime semi-parlamentar, dever-se-ia passar para um regime presidencial, concentrando na mão do Presidente da República o poder executivo, um pouco como se passa nos Estados Unidos. Segundo os defensores da tese, isso poderia obstar ao papel preponderante de gente medíocre instalada nos aparelhos partidários. De certa maneira, a comunicação presidencial inscreve-se nesse conflito. Por um lado, as forças políticas, todas elas, tenderam a reforçar o papel dos parlamentos e indiciaram uma certa vontade de limitar os poderes presidenciais. O Presidente, que parece aspirar a um maior controlo da governação, sentiu-se coagido a defender os seus poderes putativamente ameaçados.

O que estamos a assistir é a mais uma recidiva do antiparlamentarismo português, encabeçada, como é hábito, de forma oblíqua pelo Presidente. Há um pressentimento em certos sectores de que o actual regime está gasto. Como não se vive em tempos – por enquanto – que permitam um regime de democracia muito limitada, a esperança do antiparlamentarismo português vira-se para a solução presidencialista. Por detrás destas posições está uma crença arreigada nas soluções providencialistas. É mais fácil um homem providencial salvar o país do que este encontrar o equilíbrio através do conflito parlamentar. O que me deixa perplexo, neste tipo de convicções, é a crença de que esse homem providencial estaria aí ao virar da esquina. O problema de Portugal, porém, não é do regime, seja parlamentar, semi-parlamentar ou presidencial. O problema é a cultura cívica instalada tanto na população como nas elites políticas. Não consigo perceber por que razão um presidente seria melhor governante do que um primeiro-ministro. Toda a retórica sobre a alteração do regime que por aí se desenvolve assenta num jogo de aparências que distorce a realidade política do país. Não será pelo facto de sermos governados por um presidente que deixaremos de ser quem somos e que esse presidente deixará de ser quem é. Não nos iludamos, com presidente ou com primeiro-ministro o espírito do tempo não deixa de ser o que é, nem as pessoas se converterão a uma espécie de santidade cívica. Se aquilo que está desagrada a muitos, pode haver dois caminhos diferenciados. O primeiro será o do retorno ao paternalismo; o segundo radicará numa atitude mais autónoma e exigente dos indivíduos que constituem a comunidade. Talvez a democracia portuguesa precise menos de uma alteração de regime e mais de um maior controlo por parte de cidadãos exigentes.

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