31/08/08

O que é a metafísica?

[Fotografia de Claudia Daut/Reuters no Público -
sobre os efeitos do furacão Gustavo em Cuba ]
O que é a metafísica? É a resposta que o Homem dá ao sentimento que se desprende desta fotografia.

Vasco Pulido Valente - Só nos resta esperar...

O Presidente da República promulgou a Lei de Segurança Interna, que, como já se sabe, cria um "secretário--geral de segurança", nomeado pelo primeiro-ministro e perante ele directamente responsável. Em princípio, o secretário-geral de segurança, com a categoria de secretário de Estado, tem uma autoridade eminente sobre a PJ, a GNR e a PSP e acesso à informação que, por acaso ou desígnio, elas recolherem. Este sistema, em si próprio confuso e manifestamente perigoso, põe o primeiro-ministro na posição ambígua de um superpolícia, que ninguém vigia e a que ninguém pede contas. Mesmo assim, o prof. Cavaco não viu nisto qualquer perigo para a liberdade dos portugueses. Nem - é bom dizer - o dr. Mário Soares, para quem, hoje em dia, Sócrates nunca erra.Pior do que isso: depois do cartão "1 em 4" (ou "1 em 5", não sei ao certo), uma ingerência inadmissível na privacidade do cidadão, que foi um fiasco prático, mas não deixa de ser um abuso político, o Governo resolveu agora introduzir, obrigatoriamente, um chip em cada automóvel. Não se conhece ainda em pormenor a capacidade do chip e o que se pretende dele. O chip tanto pode servir para um fim inócuo, identificar um carro in situ, por exemplo, como para seguir esse carro por Portugal inteiro, coisa que permitiria ao secretário-geral da segurança e, por consequência, ao primeiro-ministro, averiguar em profundidade e pormenor a nossa suspeitíssima vida. Cavaco acha o assunto "melindroso". E a Comissão Nacional de Protecção de Dados, num gesto de uma futilidade, pede que o "alcance" do chip não passe de um "alcance local". Estará a pensar em Vizela ou na Grande Lisboa e no Grande Porto?

A vontade de controlar o cidadão não é original, nem uma invenção autoritária do Governo Sócrates. A Inglaterra é o país do mundo com mais câmaras de vigilância por habitante. E é público o assalto aos direitos do indivíduo na América (e também em Inglaterra) depois do 11 de Setembro. A existência de meios leva inevitavelmente o Estado (esteja nas mãos de quem estiver) a pretender regular e dirigir a sociedade. A "pessoa humana", de que a ortodoxia ocidental não pára de falar, é crescentemente definida, limitada e fiscalizada em nome de benefícios a que não aspira e de valores que não subscreveu. Só nos resta esperar que o desleixo indígena atenue, ou demore, o inferno que se prepara.

30/08/08

Se a moda pega...

Parece que a Itália decidiu pagar 5 mil milhões de dólares à Líbia, como compensação do período colonial. Se a moda pega, bem nos podemos esfalfar para pagar muitos milhões de milhões de dólares às nossas inúmeras ex-colónias. Talvez a melhor solução seja mesmo tornarmo-nos colónia das nossas antigas colónias.

O empata Benfica

O Benfica empatou na primeira jornada, empatou hoje, em casa, com o FC Porto. Enfim, o clube tornou-se um verdadeiro empata-f…. Faz lembrar aqueles tipos que nem coiso e tal, nem saem de cima.

O silêncio socrático

Sócrates decidiu remeter-se ao silêncio, talvez por efeito mimético. Se a principal líder da oposição faz voto de silêncio, por que razão o chefe do governo não deveria imitá-la? Do ponto de vista táctico o jogo pode parecer virtuoso. Mas os problemas políticos do país, como a questão da segurança, não derivam do confronto entre as personalidades que apascentam os principais partidos. Eles afectam, efectivamente, os cidadãos. O chefe do governo está calado, mas toda a gente já falou, incluindo o Presidente da República e o dirigente comunista, Jerónimo Sousa. Se Sócrates não se cuida, até o secretário-geral do PCP parecerá, ao pé dele, um securitário.

29/08/08

Sinais dos tempos

Alguma coisa está a mudar na correlação de forças, para falar ao gosto de uma certa época, entre as potências europeias. É necessária a confirmação? Não se pense no conflito entre a Rússia e a Geórgia, a vitória do Zenith de São Petersburgo sobre o Manchester United é sinal mais seguro. Talvez não fosse má ideia retornar à leitura dos grandes clássicos russos. Que tal começar pela Guerra e Paz de Leo Tolstoy?

Segurança e outros equívocos sociologizantes

Segundo o Jornal de Notícias, a criminalidade violenta, no primeiro semestre deste ano, aumentou 15% relativamente a igual período do ano passado. O problema fundamental da política de segurança encontra-se, todavia, na concepção antropológica que funda as políticas do governo. Um optimismo iluminista que acredita na bondade intrínseca do homem gerou uma série de equívocos que acabaram por dar uma real confiança aos criminosos e que têm sido lidos pela opinião pública como defesa dos que cometem crimes e desprotecção das vítimas, reais ou potenciais. Os acontecimentos deste mês e as alterações que vários protagonistas estão a exigir mostram bem a falência dos princípios antropológicos em que assentou a política governamental. Porém, o problema é mais amplo: os mesmos princípios erróneos estão a ser aplicados noutras áreas, nomeadamente na educação. E se na segurança a reacção da opinião pública tem o condão de travar o delírio das hostes governamentais, na educação a repercussão do erro só será visível daqui a alguns anos. É o que dá o sociologismo, essa obscura ideologia para-totalitária, que tomou conta do Partido Socialista.

Jornal Torrejano, 29 de Agosto de 2008

On-line já está a nova edição do Jornal Torrejano. Destaque para o festival Bons Sons em Cem Soldos. Também relevante é a entrevista a Vítor Ferreira, Presidente do “Ferroviários” do Entroncamento. Considere-se ainda a confirmação de que Torres Novas deixará de ser comarca judicial.

Na opinião, comece-se com o cartoon de Hélder Dias. Depois, leia-se de Carlos Henriques, 1.ª jornada sem surpresas. Francisco Almeida bisa com Hérnan Flores e Naufrágios, Miguel Sentieiro escreve Torcer o nariz e Santana-Maia Leonardo, Direita e esquerda.

Enquanto não vem a nova edição, vá vendo as últimas da região actualizadas no site do Jornal Torrejano. Bom fim-de-semana.

25/08/08

O Presidente e a liberdade

Cavaco Silva tem uma difícil relação com a liberdade. Por exemplo, não hesita em promulgar uma lei de Segurança que inventa um secretário-geral nomeado pelo primeiro-ministro, sob proposta dos ministros da Administração Interna e da Justiça. Esse secretário-geral de segurança, de nomeação e confiança políticas, poderá aceder a informação criminal que apenas deveria ser conhecida pelo Ministério Pública e pela polícia de investigação criminal. Que esta possibilidade de intromissão do poder político na esfera da justiça – e a ameaça às liberdades públicas que isso pode significar – não incomode o Presidente mostra bem a consideração que Cavaco tem pela liberdade.

Independências

A Rússia continua a jogar ao gato e ao rato com o Ocidente. Agora, é o Senado russo a pedir ao Presidente Medvedev que reconheça a independência da Ossétia do Sul e da Abcásia. A Duma não tardará a fazer o mesmo. Quem pensou que o reconhecimento da independência do Kosovo não tinha contrapartidas políticas deve estar a abrir a boca como peixe fora de água.

Viva o padre Rungi

Até hoje nunca tinha ouvido falar do padre Rungi, mas já está no top das minhas preferências eclesiásticas. Mas quem é o padre Rungi? Não faço a mínima ideia, mas sei que ele está a organizar o concurso Sister Itália 2008, que há-de escolher a mais bonita das freiras italianas (Público). Se fico indignado cada vez que oiço falar em eleição de uma miss escola, no caso vertente só posso dar largas ao meu contentamento. Não é que a sedução de freiras é, desde há muito, um dos topos essenciais do erotismo ocidental? O padre Rungi parece apenas querer fornecer o catálogo das mais interessantes, espiritualmente falando, claro. Qual Diderot, qual Sade… No vazio espiritual e hedonista em que vivemos, não há facho luminoso maior e mais criativo que o padre Rungi.

Contabilidades olímpicas

Há sempre múltiplas maneiras de fazer as contas das vitórias e derrotas nos Jogos Olímpicos. A China foi o país que mais medalhas de ouro ganhou, cinquenta e uma. Mas é fácil demonstrar que Portugal ganhou muito mais do que a China. Basta estabelecer a relação entre o número de medalhas e o número de habitantes. Portugal ganhou uma medalha de ouro por cada 10 milhões de habitantes, enquanto a China, com cerca de 1 500 milhões, apenas obteve 0,34 medalhas de ouro por cada 10 milhões de habitantes. É uma questão de proporção.

24/08/08

O triunfo de uma nação

Os Jogos Olímpicos de Pequim, terminados hoje, são uma espécie de retorno a uma época que parecia terminada com o fim da Guerra Fria. Se durante décadas a Europa de Leste e o Ocidente se defrontaram politicamente através dos resultados dos seus atletas, esse espírito parecia ter acabado. Mas Pequim foi o momento do seu retorno. A China fez dos Jogos uma exibição marcadamente ideológica da sua presença no mundo. Por ideologia não se deve entender, porém, o comunismo, mas o nacionalismo chinês. O comunismo, entendido como ideologia proveniente do marxismo, parece não ter qualquer influência por aqueles lados e o Partido Comunista representa apenas uma forma de congregação de uma elite política que segura ferreamente um poder autocrático.

Assim, o que esteve em causa não foi a disputa sobre a superioridade de um regime político-económico (socialismo versus capitalismo), mas a afirmação de uma potência ascendente na cena internacional. Desde a organização até à competição propriamente dita, a China nada descurou e obteve um triunfo em toda a linha. Mas que mensagens deixou a China ao mundo? Por entre a racionalidade que caracteriza os dirigentes chineses, ficou claro que a China quer ser mais do que uma potência de segunda ordem. Ela aspira ao papel de hiperpotência e mesmo ao de potência hegemónica. Em segundo lugar, tornou-se evidente que o horizonte para onde a China pretende caminhar não é o de continuar a ser eternamente o lugar da mão-de-obra barata. Quem aspira a hegemonia política mundial só o pode fazer se aspirar a ser também uma hiperpotência científico-tecnológica. Os jogos serviram para sublinhar este aspecto.

O mais curioso, todavia, é que o caminho que está a ser seguido não é, como aconteceu no Ocidente, o corte radical com a tradição. Pelo contrário, o que assistimos foi a uma subtil montagem onde tradição e modernidade se fundiram escoradas na afirmação do poder do Estado-Nação. Os Jogos Olímpicos foram o triunfo de uma nação, num tempo em que os políticos europeus não sabem que fazer com os seus próprios estados-nação.

O caminho do nuclear

A crise dos preços da energia tem sido propícia para abrir caminho à opção nuclear. A tendência é para falar dessa energia de forma angelical, como se ela não contivesse ameaças efectivas que, pela sua natureza, não podem ser colocadas lado a lado com os perigos contidos noutras energias. Vale a pena meditar numa notícia do Sol sobre um incêndio de uma central na Catalunha. Refere-se também aí a um acidente ocorrido em Novembro do ano passado, “sem perigos significativos (sic) para a população”, mas que geraram a recomendação de uma multa para os gestores da central entre 9 e 22,5 milhões de euros.

23/08/08

O novo drama do PSD

Como é hábito, o PSD vive dilacerado por um drama: o silêncio de Manuela Ferreira Leite. Menezes escreveu um texto indescritível no Jornal de Notícias, o novo génio da política, o jovem Pedro Passos Coelho, também não ficou calado, bem como essa mole imensa de descamisados que vai do poeta Mendes Bota ao incansável Jardim, passando por Ângelo Correia. É verdade que o eleitorado foi educado sob o signo da berraria. Em Portugal não há sítio onde não se berre, seja na televisão, seja no espaço público, seja por causa da política ou do futebol. Por isso, é possível que a estratégia de Ferreira Leite seja pouco eficaz. No entanto, pode ser que, no meio da poluição sonora em que se vive, o silêncio seja mais audível que o grito e, caso não o seja, tem a enorme vantagem de não conspurcar mais o espaço público com a verborreia mentecapta que habita a generalidade dos políticos portugueses.

22/08/08

Medeiros Ferreira e as medalhas

Embora visando de forma subtil, como é o seu hábito, a política interna do clube, Medeiros Ferreira (aqui) não se eximiu de salientar que as medalhas de ouro e de prata portuguesas foram conseguidas por atletas do Benfica. É um facto, mas eu – benfiquista confesso – não consigo ver qualquer ligação entre as medalhas de Vanessa Fernandes e Nelson Évora e o Benfica. Aliás, como não via ligação entre o Carlos Lopes e o Sporting, a Fernanda Ribeiro e o Porto (julgo que era do Porto) ou a Rosa Mota e o clube dela (não faço ideia qual era). Essa ligação existirá certamente, mas no caso deste tipo de desportos não tem qualquer impacto na clubite nacional. O comentário de Medeiros Ferreira, intrigas à parte, só se compreende pela secura que se vive no futebol.

Volta a Portugal e Benfica

Dei hoje realmente conta que se está a correr a Volta a Portugal em bicicleta. Tomei também consciência que o Benfica tem uma equipa de ciclismo. Para além de fazer jus à roda de bicicleta do emblema do clube, ainda não compreendi o sentido do Benfica andar no ciclismo. Se o Sporting e o Porto lá estivessem, esse anacronismo ainda faria sentido. Assim, a competir contra marcas disto e daquilo, qualquer vitória ou derrota é irrelevante. O ciclismo há muito que é pasto do mercado publicitário e os grandes clubes só têm sentido na oposição entre si. Sem os seus grandes rivais, Benfica, Sporting ou Porto são meras irrelevâncias.

Um mestre-escola

Vi o ministro da Administração Interna, no jornal da noite da SIC, a dar explicações sobre os problemas de segurança que assolam o país. O homem, apesar do esforço, não passa de um pobre mestre-escola demasiado pequeno para o fato que lhe talharam. Depois de se saber que o responsável pelo observatório de segurança acha que a criminalidade organizada e violenta vai aumentar, está longe de ser tranquilizante ter na pasta do Interior, era assim que se chamava antigamente e que ainda se chama noutros países, um enfatuado e vazio mestre-escola de aldeia – não passam disso muito dos nossos académicos que chegam a ministros.

Jornal Torrejano, 22 de Agosto de 2008

Já on-line está a 633.ª edição do Jornal Torrejano. Destaque para uma entrevista telefónica com o nadador torrejano, Nuno Vicente, que no passado dia 15 atravessou o Canal da Mancha a nado. Destaque ainda para o trabalho com o arqueólogo João Zilhão sobre a Gruta do Almonda e a sua importância para o conhecimento pré-histórico.

Na opinião, comece-se com o cartoon de Hélder Dias. Depois, Carlos Henriques escreve Porto, defesa de papel!, Carlos Nuno, A menina que se segue, Francisco Almeida, Pegar no bisturi, Marco Liberato, Sobre o Leste, nada de novo e Santana-Maia Leonardo, O assalto ao BES e aos reformados.

Para a semana haverá mais Jornal Torrejano. Um bom fim-de-semana e umas boas férias para quem de férias estiver.

A deslocalização para Santo Tirso

A criação de 1200 postos de trabalho em Santo Tirso, numa parceria entre o governo, a câmara local e a PT, pode ter aspectos positivos, mas não deixa de ser um poderoso sintoma da falência da economia, da política e da própria sociedade portuguesa. Durante anos e anos andou-se a falar da economia do conhecimento, da estratégia de Lisboa, da opção por empresas de alta tecnologia. Quando um primeiro-ministro entoa loas ao seu próprio governo por ter deslocalizado para o norte 1200 postos de trabalho de mão-de-obra barata, estamos conversados sobre o êxito das opções e das práticas económicas portuguesas.

21/08/08

Floresta no Caramulo

Os olímpicos portugueses

Andava meio mundo abespinhado pela fraca prestação dos nossos atletas nas olimpíadas de Pequim. Talvez a pátria já possa descansar e recrear-se na prata da Vanessa ou no ouro do Évora. Há, contudo, que olhar para as lamúrias e as irritações sobre o desempenho dos atletas portugueses com alguma condescendência. Por que razão deveriam ser eles diferentes do país que representam. Foram pouco competitivos? Foram pouco briosos? Mas será que o espírito competitivo e o brio são as coisas que mais abundam por cá? Observe-se como são educados, na generalidade, em casa e na escola, os jovens portugueses. Alguém pensa em exigir-lhes o máximo que podem dar? A cultura social portuguesa está impregnada de condescendência com a mediocridade, de aprovação da negligência, de promoção do espírito do coitadinho. Depois, por um passe de mágica, uma nação de 10 milhões de habitantes deveria vir de Pequim carregada de medalhas. Haja paciência.

Sobre a segurança interna

Segundo a Lusa, o Procurador-Geral da República vai pronunciar-se na próxima semana sobre a onda de crimes violentos que se está a abater sobre o país. De facto, não há dia em que não se dê um assalto a um banco, ou a postos de abastecimentos de gasolina, ou a carrinhas de transporte de valores, para não falar do carjacking ou dos assaltos a comerciantes e a residências particulares. Estamos perante uma clara falência da política de segurança interna. Ora as questões políticas não são da responsabilidade do Procurador. Respondem por elas os ministros da Administração Interna e da Justiça. Em última análise, o primeiro-ministro. Seria curial que este, o responsável máximo pela governação do país, desse explicações aos cidadãos sobre o que se está a passar e delineasse uma política convincente que ajudasse a esbater o clima que, com a cumplicidade governamental, se foi criando. Ou será que Sócrates está à espera que seja Cavaco Silva a falar?

O rosto humano

Ecce Homo

No editorial de hoje, do Público, José Manuel Fernandes, escreve, a propósito da Primavera de Praga, o seguinte: «Porque a partir de então se tornou claro que não havia forma de reformar o comunismo por dentro, que nunca haveria "um socialismo de rosto humano", como notou o historiador Tony Judt. Mais: é nessa altura que, num quadro intelectual já tocado pelas obras de Alexandre Soljenitsin (cujos livros mostravam o rosto inumano do regime soviético), a repressão da revolta estudantil polaca e, sobretudo, a brutal invasão da Checoslováquia, se desencadeou entre os intelectuais pró-comunistas do Ocidente um movimento de ruptura com os partidos comunistas.»

Deixemos de lado a questão política, e meditemos no par conceptual que estrutura a posição de JM Fernandes: rosto humano/rosto inumano. Há uma ideia perigosa neste tipo de abordagem, ideia essa corrente e que satisfaz o senso-comum e a autocomplacência com que os seres humanos se encaram a si-mesmos. Essa ideia reside em associar o que há de bárbaro no comportamento humano a qualquer coisa inumana. Este artifício tem como consequência iludir a realidade. Parece dizer: não, não foram homens que fizeram o gulag soviético, os campos de concentração nazis, a exploração desenfreada de certas fases do capitalismo, a deflagração das bombas atómicas em Hiroshima e Nagasáqui, a inquisição da Igreja Romana, as mil tropelias que ao longo de milénios têm entretido a espécie humana.

A violência, porém, é um traço decisivo do homo sapiens sapiens e nunca deixou de o acompanhar. Não apenas uma violência contra aquilo que na natureza o rodeia, mas uma violência contra a sua própria espécie. Mais, esta violência poderá estar relacionada com a sua espectacular capacidade de adaptação ao ambiente terrestre e ao triunfo e dominação sobre outras espécies. Ora, dizer que o gulag ou os campos de concentração são inumanos é transformar a violência produzida pelos homens na sua relação com os outros em qualquer coisa de metafísico, que está para além do homem e da qual, em última análise, a humanidade não seria responsável.

Por muito chocante que seja para as boas consciências, o gulag, a inquisação, os campos de concentração, as perseguições xenófobas, a violência racial, etc. são profundamente humanas. Qual a vantagem de pintar um quadro tão negro da humanidade? Numa primeiro momento, é não nos iludirmos sobre a nossa própria espécie e estarmos sempre prontos para perceber os sintomas da violência que se prepara – a retórica humanista criou um véu que impediu que muita gente percebesse a tempo os crimes dos campos de concentração nazis ou do gulag soviético – e, num segundo momento, tentar precaver a irrupção do irracional nas relações inter-humanas.

A retórica assente na oposição rosto humano/rosto inumano representa um pensamento preguiçoso, um pensamento que, por motivações ideológicas, se demite de pensar a natureza do próprio Homem. Há uma violência que nos constitui, uma violência que, a qualquer momento se poderá manifestar, e que se pode congregar nas próprias instituições humanas e tornar-se numa máquina de liquidação em série do próximo. Mas esta retórica elide também a verdadeira vantagem dos regimes democráticos. Estes regimes políticos não são regimes de «rosto humano», uma espécie de coro angélico da política. Como quaisquer outros regimes políticos, também os democráticos assentam na violência. Esta violência não é apenas aquela que se diz ser a violência legítima, da qual o Estado deve possuir o monopólio. Existe uma outra violência que se esconde sob o verniz civilizado das facções que se confrontam no espaço público. A sabedoria política da democracia reside no equilíbrio das potências violentas que se confrontam na sociedade. Dito de outra maneira, o respeito pela opinião e pelas decisões dos outros, bem como o Estado de direito, estão fundados no medo. Mesmo os partidos democráticos mais civilizados possuem na sua matriz um gene demasiado humano ligado à violência, ao terror e à irracionalidade. Deixados à solta, isto é, sem o terror da retaliação de outros, logo produziriam os seus gulags, os seus campos de concentração e os seus progroms.

20/08/08

Cavaco Silva aumenta a pressão

Cavaco Silva acaba de vetar o novo regime jurídico do divórcio. Independentemente das razões do veto, e algumas são pertinentes (Público), assistimos a uma escalada do conflito entre Presidente da República e o governo socialista. Muita gente iludiu-se quando Cavaco afirmou que iria cooperar estrategicamente com o governo. Mas a afirmação é muito clara. Cooperar estrategicamente significa apenas e só que se cooperará enquanto isso for rentável para os interesses próprios. Desde o princípio que Cavaco não confia no governo. Lentamente foi tecendo uma teia e, confiante na má estrela de Sócrates e com gente de confiança pessoal à frente do PSD, começa a apertar o garrote. Agora foi a lei do divórcio, como ontem foi a questão da autonomia dos Açores, como amanhã será outra coisa qualquer. Sócrates tem o que merece.

12/08/08

Um pássaro sibila

Escuto!
O voo do pássaro,
a flecha ciciante vai sem defeito.

O pássaro sibila,
a flecha descansa no peito.

JCM. Poemas dispersos.

Conflito na Geórgia


Petróleo, hegemonia e neutralização da NATO. No Público, uma análise do conflito na Geórgia de Jorge Almeida Fernandes. Uma explicação das implicações geo-estratégicas do conflito, a sua conexão com as pretensões russas e os perigos para a Europa Ocidental.


11/08/08

A visita

Os presidentes da Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia e Ucrânia vão deslocar-se à capital da Geórgia com o objectivo de apoiar o presidente Mikhail Saakachvili (TSF). A deslocação da comitiva, porém, pouco tem a ver com um súbito acesso de amor pelos georgianos. É preciso não esquecer que os estados bálticos e a Ucrânia se desligaram da Rússia enquanto esta estava distraída, devido à queda do comunismo e à reorientação política da Europa de Lesta. Os polacos, por seu turno, não morrem de amor pelos russos, por razões históricas sobejamente conhecidas. O que estes presidentes vão à Geórgia fazer é mostrar ao mundo a sua pertença ao bloco ocidental. Vão dizer aos russos que não pensem fazer-lhes o que estão a fazer na Geórgia. O que nos interessa, agora, é perceber que estamos numa zona “sísmica” com uma alguma probabilidade de ocorrência de tragédia. A Rússia ainda não é suficientemente forte para desencadear operações que permitam controlar os países que a envolvem e que ela acha serem da sua influência natural. Mas o pensamento estratégico está lá – bem como o ressentimento pela perda da sua antiga influência – e é ele que operou na invasão da Ossétia do Sul, independentemente das razões aduzidas. A Europa já foi um sítio mais pacífico e seguro.

Rui Moreira - A cenoura da consolação

Tudo isto acontece a um ano das eleições. O Governo não melhorou a escola, mas vai distribuir dinheiro e computadores.

A decisão de atribuir, anualmente, no Dia do Diploma, um prémio monetário aos melhores alunos do secundário, é uma daquelas notícias em que o nonsense dos governantes consegue ofuscar o do Inimigo Público.

Não, não se trata de reeditar o Quadro de Honra, em que a distinção era o justo prémio, nem a dispensa aos exames do liceu, que nos permitia entrar em férias mais cedo, no tempo da "outra senhora". Também não se oferece uma bolsa ou viagem de estudo, nem sequer um computador, porque o Magalhães virá de borla e para todos. É dinheirinho vivo, quinhentos euros por premiado, para comprar um I-Phone ou gastar no que lhe aprouver.

É extraordinário que este ministério, que fomenta o facilitismo para melhorar notas e as estatísticas, que adopta o "ensino-vaselina" para agilizar e embaratecer a passagem do aluno pela escola, que tem fobia do elitismo, que desautoriza os professores face a pais e alunos e prefere avaliar os docentes a examinar os estudantes, que contemporiza com a indisciplina, tenha o topete de criar este prémio, que em nada contribui para a cultura de mérito, que deveria incutir às crianças, desde cedo, o sentido de responsabilidade, afirmando o estudo como um bom investimento e o conhecimento como um instrumento essencial para a realização e felicidade futuras. Não serve, sequer, como prémio de consolação para os melhores e mais esforçados, obrigados a marcar passo pela política oficial, que não permite organizar as turmas em função do mérito relativo dos alunos, nem que os professores penalizem os que não estão interessados em aprender. Será que algum bom estudante, empenhado em conseguir notas para entrar na universidade pública e gratuita, vai estudar mais por 500 euros? Alguém acredita que, por isso, um aluno mau e indisciplinado vai passar a ser bom? E se são os mais fracos que precisam de ajuda para não ficarem para trás, não seria este dinheiro mais útil para viabilizar aulas adicionais de recuperação?

A ideia do dinheiro como isco é como a da cenoura que se pendura à frente do burro. Um truque de quem, com a consciência pesada por pouco fazer pelos piores, e por nada mais ter feito pelos melhores, os trata como se fossem asnos.

São, afinal, meras alvíssaras, que servem para que a ministra descubra, e depois exiba em dia próprio, os parcos sucessos. E, claro, esconda e omita os insucessos criados pelo jacobinismo do sistema educativo, pelo igualitarismo que nivela por baixo, pela destruição metódica da autoridade do docente pela ideia de que a avaliação punitiva é socialmente discriminatória e reprodutora de exclusão.

Tudo isto acontece a um ano das eleições. O Governo não melhorou a escola, mas vai distribuir dinheiro e computadores. O que seria demagógico, à direita, é inteligente e inovador quando vem da esquerda. Lembram-se do escândalo que foi quando, há anos, um candidato ofereceu varinhas mágicas e electrodomésticos aos eleitores? Mudam-se os tempos e as sensibilidades, e agora ninguém reclama. Mas, há coisas que nunca mudam e, por acaso, esse tal político até ganhou as eleições...
[Rui Moreira, Presidente da Associação Comercial do Porto, Público de 11 de Agosto de 2008 - sem link]

10/08/08

Combustões – sobre a China

Como tudo o que se escreve no Combustões, também este post sobre a China, já com alguns dias, merece leitura meditada. O Combustões tem uma das melhores escritas da blogosfera portuguesa. Mas não é só a escrita, é também a acuidade do pensamento, de um certo pensamento que se inclina para aquela escrita. Interrogo-me, por vezes, se o autor escreve bem porque pensa bem ou se, pelo contrário, pensa bem porque escreve como escreve. Mas pensamento e escritura emergem de uma experiência do mundo que se transfigura e ganha sentido nesse escrever. Há ali mais do que discurso e mais do que pensamento. Há um princípio de sabedoria.

09/08/08

O castigo russo

A Rússia está a explicar ao mundo, nomeadamente ao ocidental, desde ontem, como entende e define os seus interesses e áreas de influência. Se a Geórgia se aventurou na tentativa de recuperação da Ossétia do Sul pensando que poderia contar com os ocidentais, bem pode esperar sentada. Ninguém vai mexer uma palha e muito menos enfrentar os russos por causa da propriedade de umas terras que ninguém sabe onde ficam. Mais uma vez fica claro, para os mais distraídos e dados a devaneios sobre a bondade humana, que o direito internacional – aliás, como todo o direito – assenta pura e simplesmente na correlação de forças existente. Os russos pararão quando entenderem que o castigo foi suficientemente demonstrativo do seu querer.

Ida à praia

Há cerca de quinze dias junto ao mar e ainda só duas vezes fui àquilo que é costume chamarem praia. Gosto de ver o mar em silêncio e na solidão, deixar-me envolver pelo ritmo das ondas, sentir o cheiro, olhar o horizonte, acompanhar o voo incerto das gaivotas. As praias, porém, têm pessoas e sol em demasia e tudo se torna inócuo perante essa presença. Aquilo que há de essencial não é a frescura nem o insuportável convívio com a humanidade. O essencial é esse encontro secreto entre a água e a terra, entre a volubilidade que a tudo se adapta e a solidez que tudo suporta. Entre uma e outra é o lugar do homem, mas este expulsou-se a si mesmo dessa fronteira e transformou-a, com a sua presença farisaica, num lupanar. Já não tenho idade para o frequentar.

08/08/08

Jornal Torrejano de 8 de Agosto de 2008

Hoje é dia de mais uma edição, a n.º 631, do Jornal Torrejano, a qual já se encontra on-line. Destaque para Projecto que leva promoção de leitura à prisão de Torres Novas. Refira-se, ainda, as Escavações arqueológicas que põem a descoberto antiga porta da muralha de Torres Novas e as novidades futebolísticas do Riachense: objectivos ambiciosos com plantel de luxo.

Na opinião, comece-se com Carlos Henriques que escreve Benfica ainda não ganhou!, Jorge Cordeiro Simões, Viver Torres Novas em 2008 e Santana-Maia Leonardo, De pés para a cova.

Acabou-se, que é tempo de férias. Para a semana haverá mais Jornal Torrejano e notícia dele por aqui, se tudo correr como o previsto. Bom fim-de-semana.

Poderes em ascensão II

Começam hoje os Jogos Olímpicos de Pequim. Mais uma vez estamos perante uma demonstração política. Se o mundo ocidental teve algumas veleidades sobre o efeito dos Jogos na abertura política da China, essas veleidades já devem ter desaparecido há muito. A China nunca leu a atribuição dos Jogos como uma forma de sedução do regime político visando uma maior democratização e respeito pelos direitos humanos. Para a China, a realização do evento é apenas a confirmação da sua força e do poderio que detém no mundo. Do Tibete às liberdades políticas, os dirigentes chineses comportaram-se sempre como se os Jogos não existissem. As olimpíadas deste ano servem para cultuar a China como uma novo deus na esfera do poder global. Devotos, convictos ou por interesse de momento, não lhe faltam.

Poderes em ascensão I

No post anterior referíamos a possibilidade de retaliação russa sobre a Geórgia. A resposta está dada. Tanques russos, segundo o DE, estão a atravessar a fronteira com a Geórgia, enquanto a aviação russa tem estado a bombardear algumas cidades. Os russos sentem que têm força suficiente para este acto, de tal forma que Putin se encontra pacificamente a assistir à abertura dos Jogos Olímpicos. Não sejamos ingénuos. O que se passa na Geórgia não é um confronto entre Tiblissi e Moscovo, causado pelos problemas da Ossétia do Sul, mas um afrontamento entre a Rússia e o mundo ocidental. Mais uma vez, os limites do ocidente estão a ser testados. Como diria Robert Kagan, a história veio para ficar e os sonhos pacifistas, com que o Ocidente se iludiu, estão a tornar-se um pesadelo.

A retaliação russa

O que se está a passar na Ossétia do Sul diz-nos respeito? Aparentemente não, mas se Putin levar adiante as medidas de retaliação contra a Geórgia e o seu governo pró-ocidental (aqui), o problema começa a bater-nos à porta. Há muito que a Rússia anda desejosa de meter na ordem alguns estados vizinhos que se bandearam para o lado ocidental. A Geórgia é um deles e parece que a oportunidade está a emergir a partir de um conflito regional já antigo. Caso a acompanhar com a devida atenção, pois mostrará como é que a Rússia interpreta os seus próprios poderes e capacidades, bem como os poderes e capacidades ocidentais.

07/08/08

A amargura da laranja

Parece que continua uma grande confusão para as bandas do PSD. A Dr.ª Ferreira Leite, pessoa estimável e com quem simpatizo, não vai à tradicional festa do povão social-democrata, que se realiza lá para o reino dos Algarves, num sítio chamado Pontal ou Pontão, ou seja lá o que for. Isto deixa indignado essa personagem superior que dá pelo nome de Mendes Bota e permite que o Engenheiro Ângelo Correia – outra pessoa com quem simpatizo, embora por motivos diferentes – faça o seu numerozinho circense. Esta gente anda toda afogueada, pois a senhora remeteu-se ao silêncio e, em vez de distribuir disparates a eito pelo país, decidiu eclipsar-se. Pensam os doutos estrategas de bancada do PSD que sem um chorrilho de parvoeiradas da boca para fora, não há eleições que se ganhem. É provável. Mas o problema, o verdadeiro problema do PSD e que este não pode reconhecer, é que não tem nada a oferecer que o PS não tenha já impingido. Os fervorosos adeptos da congregação laranja podem espumar de raiva e de amargura ao ouvir o nome do senhor Sócrates, mas convenhamos que ele fez aquilo que o PSD gostaria de ter feito e não deixou espaço à enorme criatividade da direita para nos pastorear. O PSD só se pode queixar de si-mesmo. Sócrates seria o seu chefe natural e até pertenceu à congregação, no tempo em que era jovem. Ninguém reparou na promessa e deixaram-na transferir-se, na mais importante transferência da democracia portuguesa, para o team cor-de-rosa. Fossem mais atentos, oferecessem-lhe um melhor contrato. Agora tinham um chefe que sabe encenar, tão ao gosto das gentes laranja, o sentido de estado e o espírito reformista. Tudo se paga nesta vida, portanto aguentem.

Caminhos que levam a nenhures - VI

Luso

Assaltos e outras diversões

É por causa destas e doutras que as pessoas se entregam ao primeiro Berlusconi que aparece. Não é que o caso, por si só, seja motivo de preocupação. O problema, porém, é que os assaltos isolados estão a tornar-se uma onde com uma dimensão apreciável. A sensação do cidadão comum é feita de percepções mais ou menos fiéis, mas o problema não está na fidelidade da percepção à realidade em si, mas no sentimento que se gera entre as pessoas. Este sentimento diz que é fácil assaltar e, mais do que isso, afirma a existência de uma certa impunidade. O que parece ser partilhado pelos assaltantes, que multiplicam as acções. Mesmo pessoas menos dadas a alarmismos, quando pensam que as pastas da Justiça e da Administração Interna estão entregues às eminências que as ocupam, não conseguem evitar uma sensação de profunda preocupação.

06/08/08

Hiroshima

Passa hoje mais um aniversário do lançamento da bomba atómica sobre a cidade japonesa de Hiroshima. Este é um acontecimento decisivo na história do homem. Não porque tenha, com o seu aparato e o infinito cortejo de mortos e doentes e segundo uma contabilidade ao mesmo tempo realista e macabra, poupado centenas de milhares de vítimas, nem porque tenha evidenciado a especial perversidade dos americanos. O que há de decisivo neste acontecimento é a constatação de que o homem, seja americano ou pigmeu, não hesitará em lançar mão daquilo que puder para alcançar os seus objectivos. Mas o acontecimento é ainda decisivo porque foi o dia em que a ciência-técnica ocidental perdeu a inocência e a aura em que estava envolvida desde a «santificação» de Galileu. Em Hiroshima, sobre um pântano de cadáveres, reinou como uma estrela brilhante essa profunda aliança entre saber e poder. Foi mais um passo, um passo decisivo, na construção do nosso admirável mundo novo.

Dinheiro para os melhores alunos

Quando é que o actual Ministério da Educação acertará uma? Agora decidiu atribuir prémios de 500€ ao melhor aluno do 12.º ano de cada escola. A medida custará meio milhão de euros. Será, no entanto, uma medida eficaz e educativamente acertada? Do ponto de vista da eficácia, este prémio de 500€ poderá estimular a concorrência e a emulação de um grupo muito restrito de alunos por escola. Esses alunos, porém, já estão altamente motivados para a obtenção de resultados excelentes. O prémio é, desse ponto de vista, uma redundância, pois não levará a estudar a grande massa de alunos que sabem que nunca estarão em condições de obter essa recompensa. Por outro lado, introduzir um arremedo de vida empresarial na escola é um erro estratégico. A escola é uma instituição específica com regras e códigos muito diferentes dos das empresas. O que move os bons alunos é a obtenção do saber, o reconhecimento dos mestres e dos colegas, a entrada no curso da sua vocação. Este ethos é mais do que suficiente e tem-se mostrado eficaz, pois bons alunos não têm faltado. Introduzir uma compensação pecuniária é, nas idades em causa, algo de absolutamente contraproducente, pois dá o sinal de que o cumprimento do dever só se coloca se houver dinheiro em jogo. Foi a esta miséria moral que os socialistas conduziram a educação em Portugal. Bem podem limpar as mãos à parede.

A emergência do Brasil

Há quem não perceba como Lula da Silva foi reeleito. Há quem blasfeme e grite contra os brasileiros por não terem corrido com o Presidente depois do escândalo do mensalão. Mas talvez a resposta se encontre aqui. Consta, então, que a pobreza está a descer consistentemente no Brasil. Mas não é apenas a pobreza que desce, é também a afirmação internacional do Brasil como potência decisiva na América do Sul e um dos grandes protagonistas da cena internacional. Talvez também se perceba porque os nossos parlamentares e o Presidente da República foram tão pouco sensíveis aos argumentos que denunciavam o «acordo ortográfico» como uma estratégia de favorecimento do Brasil. Estranho, para os nossos padrões europeus, é que a afirmação do Brasil como potência internacional se esteja a fazer com um antigo electricista na Presidência e não com alguém vindo das elites sociais e económicas brasileiras.

Notícias do choque tecnológico europeu

Também a Inglaterra se dedica ao choque tecnológico. Deve ser da estratégia de Lisboa. Preocupados com o terrorismo, os ingleses decidiram introduzir passaportes electrónicos. Seriam, segundo as autoridades, mais seguros e menos falsificáveis. Uma mera investigação do The Times provou que a nova maravilha electrónica é falsificável em minutos (DD). Não desesperemos, o choque tecnológico não corre mal só por cá.

A Rússia e a União Europeia

Não é que a Rússia seja mais rica, mas tem qualquer coisa que as outras nações precisam – e precisam desesperadamente. A Europa, agora, depende mais da Rússia para o abastecimento de energia do que do Médio Oriente. Em teoria, evidentemente, a Rússia depende do mercado europeu tanto quanto o mercado europeu depende da Rússia. Mas na prática os russos acreditam que conduzem o processo, e os europeus parecem estar de acordo. Os homens de negócios russos, em íntima colaboração com o governo central em Moscovo, estão a comprar bens estratégicos por toda a Europa, especialmente nos sectores da energia, ganhando assim influência política e económica e apertando o controlo sobre o fornecimento e distribuição de energia na Europa. Os governos europeus temem que Moscovo possa manipular o fluxo de abastecimento de energia, e os dirigentes russos sabem que isso lhes dá os meios para compelir a aquiescência europeia para atitudes russas que, no passado, quando a Rússia estava fraca, os europeus não tolerariam. A Rússia pode agora jogar as nações europeias umas contra as outras, dividir e, dessa forma, enfraquecer uma UE que é menos coerente e poderosa do que os seus proponentes gostariam, mesmo nas áreas económica e comercial. [Robert Kagan (2008), The Return of History and the End of Dreams. London: Atlantic Books, pp. 14]

05/08/08

A anunciação

Sílvio Berlusconi decidiu, em cumprimento de uma promessa eleitoral, militarizar oito grandes cidades italianas. O problema central é o da segurança. A diminuição da criminalidade e da imigração ilegal são os objectivos destas medidas. As sociedades europeias têm vindo a sofrer um conjunto de mutações que têm tido como resultado o aumento da insegurança sentida pelos cidadãos. Há muitas almas indignadas, como é hábito, com a presença dos militares na rua. No entanto, é preciso perceber que a questão da segurança é o fundamento de qualquer comunidade e, especialmente, das comunidades democráticas. Sem a segurança do espaço público, sem o sentimento de que se pode andar à vontade pelas ruas da cidade onde se vive, o exercício da cidadania democrática é ilusório. Mas o recurso aos militares não deixa de ser uma confissão de que algo saiu fora do eixos, isto é, do controlo das estruturas políticas e da própria polícia. Podemos ficar tranquilamente a pensar que o que se está a passar em Itália é um devaneio de um homem como Berlusconi. Talvez fosse, porém, mais sensato percebê-lo como a anunciação dos tempos que aí vêm, gostemos ou não.

O atentado na China

O atentado de ontem contra polícias chineses vem mostrar, a confirmar-se a sua origem num movimento islâmico, pelo menos duas coisas. Por um lado, o Islão é uma fonte inesgotável de conflitos. Em muitos dos conflitos que percorrem o planeta, encontramos no seu cerne uma inspiração islâmica. Por outro, fica-se a perceber que qualquer abertura democrática da China irá conduzir a um conjunto de explosões e de reivindicações secessionistas, as quais estamos muito longe de poder imaginar e de pressentir os efeitos. Toda a retórica ocidental sobre a democracia e os direitos humanos repousa na certeza de que isso não comoverá os dirigentes chineses e que, resguardos na sua acção política, podemos dormir um pouco mais descansados.

04/08/08

Das virtudes no futebol

Segundo o Público, a Comissão Disciplinar da Liga de Futebol puniu o Gil Vicente por tentativa de aliciamento de jogadores do Olhanense. Vai-se agora entrar na fase dos recursos. Independentemente da veracidade dos factos, aquilo que uma pessoa racional, tendo em conta o burburinho sem fim que enxameia a comunicação social, pode fazer é deixar de prestar qualquer atenção ao futebol português. Tirando os fanáticos das várias seitas clubistas, todos os outros, mesmo que um dia tenham gostado muito de futebol, perguntar-se-ão se a vitória do seu clube foi um acontecimento desportivo ou resultou de uma actividade paralela de promoção de resultados. É evidente que os que ganham acham sempre que ganharam de forma limpa. Mas será isso verdade? Será possível ganhar campeonatos de futebol em Portugal sem uma ajuda extra-desportiva? O futebol português, apesar dos estádios novos, definha. Costumava-se dizer que o desporto é uma escola de virtudes. Hoje em dia, porém, convirá esclarecer que virtudes são essas, pois a semântica é muito traiçoeira e aquilo que antes era um vício é, muito provavelmente, hoje uma virtude.

O deslizar da linguagem

A Visão da semana passada trazia uma entrevista com a ginecologista-obstreta Maria do Céu Santo, especialista em medicina sexual. A uma pergunta sobre as práticas sexuais dos portugueses, dá uma resposta que, a certo momento, apresenta determinada informação codificada linguisticamente assim: «Há também as independentes, que não querem parceiro fixo, embora chegue um momento em que entram em conflito – nas férias, eles acabam por estar com as parceiras fixas e isso deixa-as numa enorme insegurança. (Visão n.º 804, pp. 84)».

Eis como a linguagem desliza e sub-repticiamente parece apresentar um mundo absolutamente amoral. Os termos parceiro/parceiras são utilizados como forma de des-moralizar as situações amorosas e de torná-las num problema meramente técnico, que, eventualmente, dirá respeito a um conjunto de práticas terapêuticas, mas não ao mundo onde os seres humanos se confrontam com os valores que presidem aos seus comportamentos.

Todavia, a formulação da especialista em medicina sexual está cheia de valorações morais. Assim, as “que não querem um parceiro fixo” surgem com uma etiqueta que indicia um alto valor moral. Elas são «as independentes». Meditar sobre a significação do conceito de «independente» remete imediatamente para a dimensão da autonomia e da submissão a uma lei que se dá a si-mesmo, deixando a sugestão que as outras, as que possuem um parceiro fixo, são dependentes, o que, em linguagem moral, significa que são menores, que não atingiram a autonomia e, assim, se recolhem à protecção desse parceiro fixo.

Observe-se como uma linguagem pretensamente técnica e descritiva opera uma mutação na apresentação dos valores morais. Na tentativa de uma descrição moralmente neutra das relações amorosas, acaba por se manifestar um conjunto de perspectivas morais, que, agora, valorizam de facto um outro tipo de comportamento e um outro código de valores morais, diferentes dos habituais. Por muito que a linguagem pretensamente técnico-científica, seja ela proveniente das áreas da medicina ou da psicologia, queira retirar conteúdo moral à sexualidade humana, isso é manifestamente impossível. A própria linguagem acaba por trair estas estratégias e tornar evidente essa impossibilidade.

O mundo que emerge deste tipo de discurso não deixa de ser bizarro. Parece que o único problema destes novos modelos da moralidade sexual, «as independentes», é as férias. Não houvesse férias, e nada no seu comportamento faria bulir a sua consciência independente. Embora não se perceba bem porquê. Não são as férias, na mitologia das sociedades ocidentais, esse tempo feliz para os amores descomprometidos e sem parceiro fixo? Maldita linguagem que tantas armadilhas trazes aos advogados do Zeitgeist.

03/08/08

Jornal Torrejano de 1 de Agosto de 2008

Isto de estar longe traz uma dose acrescida de esquecimento. Foi por isso que me esqueci da nova edição do Jornal Torejano, on-line desde sexta-feira. Destaques da primeira página: Câmara de Torres Novas entre as piores pagadoras; Novo estudo prévio para mata municipal é mais modesto e realista; Cinco nacionalidades no Festival Internacional de Folclore de Alcanena.

Na opinião comece-se cartoon de Hélder Dias, depois passe-se para o texto escrito: Carlos Henriques escreve A douta opinião, Carlos Nuno, Desilusões, este blogger, As cidades morrem como as gatas, Jorge Cordeiro Simões, De cima vem o exemplo, Marco Liberato, O regresso da caridade e Santana-Maia Leonardo, O Casamento.

Para a semana, caso não haja esquecimento ou outro contratempo, haverá por aqui mais notícia do Jornal Torrejano.

A Queda

Faz hoje 40 anos que Oliveira Salazar caiu da cadeira. Aquilo que bombistas, oposicionistas, gente do reviralho e ex-correligionários não conseguiram, fê-lo uma mera cadeira de lona. Sem grandeza e sem mistério, mas também sem o opróbrio que atingiu gente como Mussolini ou, mais tarde, Ceausescu. A queda do homem de Santa Comba foi também a queda de um regime e de uma certa concepção de Portugal. Marcelo Caetano representa apenas um interregno entre dois mundos. Serão 40 anos suficientes para encetar uma compreensão mais independente da acção de Salazar? Terá chegado o tempo de pôr de lado o panegírico e a diatribe panfletária mascarados com o véu da ciência histórica?

Encerra-se na figura do ditador uma certa simbolização do país e do povo que fomos, que talvez ainda sejamos. Mas essa simbolização não deve ser apenas compreendida como conjunto de características comunitárias que encontrariam na pessoa do antigo chefe do governo a sua expressão concentrada. A virtude de Salazar deve também ser vista como um negativo fotográfico, o outro lado daquilo que, como povo, temos de vicioso. É esta natureza simbólica da personagem, uma natureza ambivalente, que gera a relação de amor e de ódio que os portugueses mantêm com ela. Talvez o primeiro passo para a sua compreensão passe por uma espécie de psicanálise do símbolo que Salazar é, pelo menos para evitar as armadilhas da projecção e do transfert.

02/08/08

Fogos

Campos de estrelas luzem
na noite avara. Assim são os fogos
se mãos na terra os fazem.

Jorge Carreira Maia. Poemas dispersos.

A questão do regime

Continuam os ecos da comunicação presidencial. Apesar do conteúdo da comunicação ter importância, continuo a pensar que a forma era dispensável. Mais, que a comunicação se insere numa estratégia política do Presidente que visa o aumento da sua intervenção. Mas não é isso que agora importa. Para além luta política mais evidente, aquela que opõe os diversos actores políticos, existe um conflito surdo sobre a concepção de regime democrático. Quem está atento à esfera pública e à blogosfera percebe que uma certa opinião julga que seria útil alterar a estrutura do regime democrático. Do actual regime semi-parlamentar, dever-se-ia passar para um regime presidencial, concentrando na mão do Presidente da República o poder executivo, um pouco como se passa nos Estados Unidos. Segundo os defensores da tese, isso poderia obstar ao papel preponderante de gente medíocre instalada nos aparelhos partidários. De certa maneira, a comunicação presidencial inscreve-se nesse conflito. Por um lado, as forças políticas, todas elas, tenderam a reforçar o papel dos parlamentos e indiciaram uma certa vontade de limitar os poderes presidenciais. O Presidente, que parece aspirar a um maior controlo da governação, sentiu-se coagido a defender os seus poderes putativamente ameaçados.

O que estamos a assistir é a mais uma recidiva do antiparlamentarismo português, encabeçada, como é hábito, de forma oblíqua pelo Presidente. Há um pressentimento em certos sectores de que o actual regime está gasto. Como não se vive em tempos – por enquanto – que permitam um regime de democracia muito limitada, a esperança do antiparlamentarismo português vira-se para a solução presidencialista. Por detrás destas posições está uma crença arreigada nas soluções providencialistas. É mais fácil um homem providencial salvar o país do que este encontrar o equilíbrio através do conflito parlamentar. O que me deixa perplexo, neste tipo de convicções, é a crença de que esse homem providencial estaria aí ao virar da esquina. O problema de Portugal, porém, não é do regime, seja parlamentar, semi-parlamentar ou presidencial. O problema é a cultura cívica instalada tanto na população como nas elites políticas. Não consigo perceber por que razão um presidente seria melhor governante do que um primeiro-ministro. Toda a retórica sobre a alteração do regime que por aí se desenvolve assenta num jogo de aparências que distorce a realidade política do país. Não será pelo facto de sermos governados por um presidente que deixaremos de ser quem somos e que esse presidente deixará de ser quem é. Não nos iludamos, com presidente ou com primeiro-ministro o espírito do tempo não deixa de ser o que é, nem as pessoas se converterão a uma espécie de santidade cívica. Se aquilo que está desagrada a muitos, pode haver dois caminhos diferenciados. O primeiro será o do retorno ao paternalismo; o segundo radicará numa atitude mais autónoma e exigente dos indivíduos que constituem a comunidade. Talvez a democracia portuguesa precise menos de uma alteração de regime e mais de um maior controlo por parte de cidadãos exigentes.