28/09/07

Crónicas Normandas II - No cemitério alemão

É um cemitério quase vazio, pontuado apenas por alguns visitantes. Dos que perdem, a memória desvanece-se mais rapidamente. O silêncio da derrota, matizado pela luz da manhã e pela névoa sombria que do mar sempre vem, entranha-se no visitante, abre-lhe o espírito à angústia, dá-lhe uma sensação de compunção inexplicável. Há um estreito caminho de lajes rodeado de campos relvados, onde aos mortos foi dada a última casa. Assim se caminha em direcção a um monumento em louvor do soldado desconhecido, daqueles que, para além da vida, perderam também o nome, o segredo da identidade, o fio ténue que os ligava a uma história, a uma tradição, à terra longínqua onde nasceram, para virem morrer nos campos da Normandia.

Todo o cemitério está pensado segundo uma racionalidade geométrica, como se, depois da aventura da desrazão nazi, os alemães tivessem sentido a necessidade de voltar aos fundamentos da razão moderna, à natureza matemática que a habitava. É um cálculo vindo das trevas o que ali se encontra, o produto de uma ilusão, a transformação da violência do combate e do pânico da morte – sim, entre todos os que ali estão sepultados, haveria algum que, no mais fundo de si, não sentisse esse pânico? A falência da ordem normal da vida, que todo o combate traz, não acenderia nas suas almas uma angústia inexplicável, mesmo se esquecida na hora de mostrar a coragem? – numa paisagem de recolhimento meditativo, num jardim onde o visitante espera ver monges a passear, de espírito recolhido, enquanto aguardam a revelação do deus.

Por vezes, há uma flor deixada na campa que ostenta um nome, um nome que ainda alguém reconhece como sendo da família, talvez um amigo querido que por ali ficou, um companheiro de escola, um namorado que não chegou nunca ao tempo das núpcias. Mas tudo é tão raso, um mar de campas, muitas delas ocupadas por dois viajantes, que juntos, quem sabe se não se odiariam, entraram para a viagem eterna de onde não se retorna. O barqueiro que a todos recolhe não faz acepção de nomes, nem de ódios ou amores, junta movido pela lei do capricho que habita no frio coração que é o seu. Aqui e ali, segundo um obscuro desígnio arquitectural, erguem-se conjuntos de cruzes de Malta, cinco cruzes, sublinhando a esperança da ressurreição ou o mero anúncio do retorno silente dos alemães à casa da cristandades, esquecidas as pulsões heróicas da mitologia bárbara que os animava durante a guerra. Nem Odin, nem as valquírias, apenas a humilhante cruz do Cristo.
Quando saio, deparo com dois enormes livros. São, à maneira de um apocalipse judaico, suprema ironia, os livros dos mortos. Neles se inscreve o nome daqueles que ali estão sepultados e ainda lhes restaram os traços caligráficos da identidade. Namenbuch, o livro dos nomes, diz cada um deles. Tremo perante a visão e olho-os de longe. Tenho vontade de os folhear, acariciar as capas, mas a mão pára. Uma voz diz-me: e se lá estiver o teu nome?

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