03/08/07

A esquerda do Dr. Júdice

O que está hoje a acontecer, (…), é o surgimento de novas gerações a liderar a esquerda europeia para as quais já não faz nenhum sentido (nem sequer afectivo) o marxismo, o socialismo e o messianismo angélico, para as quais a propriedade privada não é mais uma realidade condenada no futuro e só em programas de humor negro afirmariam em que o Estado produtor é a antecâmara da sociedade sem classes. (José Miguel Júdice, Público, 3 de Agosto)
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Em tudo isto, JM Júdice tem razão numa coisa: no surgimento de novas gerações de líderes de esquerda para os quais o marxismo não faz nenhum sentido. A grande questão, porém, é se essas lideranças são de esquerda. Julgo ser insuspeito relativamente ao marxismo. Passei entre 73/74 e 77 por organizações marxistas, das quais me afastei e disse adeus, definitivamente, à política partidária. A universidade e a filosofia, feitas posteriormente, já entrado nos 20 anos, mataram em mim qualquer resquício de marxismo. No entanto…

O marxismo é um guião inútil para a acção, mas tem virtualidades do ponto de vista teórico que devem ser meditadas. Essa meditação não implica a análise do real a partir do esquematismo marxista, mas implica detectar alguns elementos fundamentais que constituem o substrato ético do marxismo e que estão na base da análise que Marx faz da sociedade do seu tempo.

Este substrato ético pode determinar-se pelo valor da igualdade entre os homens e conformar-se num conjunto de imperativos que visam essa igualdade. O que a esquerda deve fazer não é abandonar o marxismo e uma certa eticidade que lhe é inerente, mas contrapô-los à visão liberal, num processo sem fim – isto é, sem comunismo – de equilíbrio e luta permanente. É isto que permitirá gerar sociedades equilibradas (onde as desigualdades são aceitáveis e sentidas como justas). O marxismo aqui não visa a utopia, mas é um auxiliar do consenso que faz com que as comunidades nacionais possam subsistir em certa harmonia, onde os homens que delas fazem parte continuem a afirmar que querem pertencer ao todo.

Aquilo que defendo não é o igualitarismo marxista-leninista, mas uma certa compreensão do Estado-nação como uma comunidade ao mesmo tempo baseado no consenso e no conflito. O conflito não é o caminho para a supressão da outra parte, como o comunismo o fez, mas a via do consenso comunitário. Aqui o pensamento marxista tem ainda fulgor suficiente para iluminar novas meditações que descubram novos caminhos para esse conflito que visa o consenso. É isto o papel da esquerda. Eu sei que para muitos isto é pouco, mas para mim é o suficiente, pois visa a justa medida, o meio-termo, que é essência da vida política, segundo Aristóteles.

A esquerda do dr. Júdice, aquela que desdenha – eu diria, que desconhece – o marxismo já não é esquerda. Por exemplo, não se pode confundir a praxis de Sócrates com a de Soares, mesmo quando este, acertadamente, decidiu pôr o socialismo na gaveta. Foi um ministro dele que fez o serviço nacional de saúde, por exemplo. Esta esquerda moderna de que fala Júdice não serve para nada, a não ser fazer aquilo que a direita gostaria de fazer e não tem coragem. Para que serve uma esquerda que faz exactamente aquilo que a direita gostaria de fazer? Para nada. Apenas acentua os desequilíbrios sociais e os factores de desagregação da comunidade política.

Em Portugal, esta esquerda moderna do dr. Júdice – leia-se: o socratismo – não teve pejo nenhum em entregar ao PCP e ao BE os mecanismos políticos que visam o equilíbrio social, deixando milhões de pessoas sem representação ou nas mãos de uma representação mais ou menos radical.

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