25/04/09

O fantasma do acontecer



Cumpre-se mais um ano do 25 de Abril. O curioso para mim, que vivi intensamente a data e os tempos posteriores, é as metamorfoses da consciência do acontecimento. Nem nós nem a história do país nos mantivemos estáticos, e ao longo dos anos, a percepção do acontecimento foi-se alterando em conformidade com a nossa própria evolução e a evolução do país. Isto é inevitável e mesmo nas abordagens históricas de cariz mais científico, será muito difícil ao historiador, por mais precauções epistemológicas que use, fugir à sua consciência e à circunstância em que vive. Veja-se, por exemplo, o artigo de Vasco Pulido Valente, no Público de hoje (sem link).

De certa maneira, o 25 de Abril não existe. Nisso, partilha o destino de todos os acontecimentos históricos: dissolver-se no momento em que se tornam factos. A facticidade é morte e petrificação. Um acontecimento acontece e nesse acontecer desaparece. Resta a memória dos indivíduos e da colectividade. Mas a memória não é a coisa mesma. Não passa de uma imagem fantasmática daquilo que já não é mais do que um fantasma. Nessas memórias fantasmáticas, que habitam a consciência dos indivíduos, imiscuem-se sempre os seus interesses próprios (interesses pessoais, políticos, sociais, económicos, etc.), que fornecem uma linha que permite transformar essas imagens fantasmáticas em narrativas acomodadas a esses interesses. E que não haja ilusões: não há ninguém que não tenha interesses e que seja portador da narrativa verdadeira sobre o fantasma de um acontecimento.

Se estou profundamente de acordo com o diagnóstico que Vasco Pulido Valente sobre o pós-25 de Abril (acordo contra o eu que eu era naquela altura), se para mim, talvez por outros motivos, a data não é dia de festa, não deixa de ser um dia de alegria e de alívio. De certa maneira, gostamos sempre de reencontrar na memória esses momentos que manifestavam a nossa mais pura inocência. Ainda mais, se nós julgamos que essa nossa inocência dos 17 anos coincidia também com a inocência geral de um povo com 850 anos de história.

1 comentário:

maria correia disse...

Para mim será sempre dia de festa. Acordei nessa manhã longínqua com uma amiga a atirar pedrinhas à janela do meu quarto, gritando: «Maria, há uma revolução!»...E lá fomos a correr para o liceu. Foi uma época em que acreditei, menina que era, que todo o bem seria possível. Além disso, os presos políticos foram libertados, um amigo nosso,estudante de medicina, nunca mais foi preso e obrigado a mastigar os próprios óculos na prisão, em tortura, os filhos dos amigos dos meus pais regressaram salvos da guerra colonial, passámos a poder falar abartamente em casa sempre que havia visitas, e a alegria vivida é inesquecível. E o meu pai deixou de ser perseguido. Por tudo isso, e muito mais, valeu a pena e vale sempre a pena celebrar. O resto, faz parte do processo deste tipo de coisas. Tivemos o mais belo cartaz revolucionário de sempre: aquele que está em post mais acima. Tivemos o hino revolucionário mais belo que conheço, universal: Grândola Vila Morena. Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, dizia o Fernando Pessoa. E aconteceu tudo num mês lindo, Abril...havia sol e fomos para o alto de um prédio ouvir as notícias transmitidas num rádio a pilhas. A euforia no coração. O 25 de Abril é um dia de festa, sim. E da esperança que não morre.