17/04/09

Do excesso de matemática



O Zé Ricardo escreveu um post, Matemania, onde, com razão, verberava a excessiva importância dada à Matemática no currículo escolar nacional. O problema não será apenas português, mas cá ele afecta os resultados escolares e impede muitos alunos de seguirem cursos e carreiras onde a Matemática tem um peso irrelevante. A dado momento é feita, mais uma vez com razão, uma comparação com a Teologia.

Descartes, também ele um matemático, é considerado o pai da modernidade, devido à sua filosofia. Há duas características dessa filosofia que se tornaram o programa central dessa mesma modernidade: a reflexividade (chego a uma verdade indubitável através de um processo de reflexão) e a matematização do real (a ideia de uma mathesis universalis). Estas ideias, mesmo depois do pensamento de Descartes ter declinado, se isso acontece com o pensamento dos grandes filósofos, foram-se tornando dominantes e o desenvolvimento da modernidade não tem sido outra coisa senão a invasão progressiva e a colonização das múltiplas esferas da vida por essas ideias.

A escola é um exemplo muito interessante. Não só o currículo das múltiplas áreas foi invadido pela matemática, como a própria praxis docente foi invadida pela reflexividade. Assim como o cerne do currículo é a matemática, o cerne da praxis de professor é a reflexão sobre a sua prática, através daquilo que se denomina auto-avaliação. Os processos de avaliação de professores, de avaliação de escolas, etc. são o desenvolvimento da ideia cartesiana de reflexividade, bem como a preponderância da matemática é o desenvolvimento da ideia de mathesis universalis, de uma matemática universal que permite submeter toda a realidade ao cálculo. Não por acaso, os processos de avaliação de escolas, de professores, mas também de empresas, de funcionários, etc., combinam a reflexividade, essa espécie de análise crítica do seu desempenho, com o cálculo matemático desse desempenho. Uma coisa requer a outra, pois elas emergiram juntas no momento inaugural da época moderna, em cuja luz ainda vivemos.

Quem pensa efectivamente o real pode perceber que a matemática não é precisa em todos os currículos, que a sua importância para a vida dos homens está sobreavaliada. Pode também dizer que a avaliação das funções e das instituições está longe de garantir aquilo que a ideologia dominante espera delas. Mas pensar é uma coisa estranha à vida quotidiana, mesmo de pessoas instruídas e que tomam decisões. Pensar implica pôr em causa os quadros mentais que servem para interpretar a realidade numa certa época histórica. São esses quadros mentais que iluminam o raciocínio e a acção dos homens.

A matemática e a "mania" das avaliações que agora pulula por todo o lado não são bem modas, no sentido usual do termo. Fazem parte de um projecto que se tem vindo a desenvolver há várias séculos. Mais, matemática e reflexividade-avaliadora são os fundamentos desse projecto. É esse projecto que ilumina, mesmo que os homens não tenham consciência disso, toda a vida, e que conduz o raciocinar, o deliberar, o decidir e o agir dos homens. É por esse motivo que o post do Zé Ricardo pode parecer estranho, como pode parecer estranho a afirmação de que a avaliação de professores ou de escolas não contribuirá para ter melhor professores ou melhores escolas. Estas afirmações, mesmo se verdadeiras, não são entendidas, pois estão em contradição com aquilo que, de forma mais clara ou mais obscura, dirige os homens nos tempos que são os nossos.

Interessante é, ainda, analogia com a Teologia. Esta era o fundamento e a luz do projecto medieval. A Idade Média não foi outra coisa senão o desenvolvimento de um projecto teológico inscrito no seu início, e que teve em Agostinho de Hipona o seu grande nome. Curiosamente, quando o desenvolvimento da Teologia, na primeira e segunda escolásticas, atinge o auge é quando a Idade Média começa a morrer. Não vivemos nós o tempo em que a matematização do real e a reflexividade colonizam toda a vida? Não será esta exuberância o sinal da sua morte próxima?

1 comentário:

maria correia disse...

Talvez chegue a era da «literaturização» da vida. Será, porventura, mais útil à felicidade dos homens. Talvez em vez de se repetir tanta vez «a matemática é necessária», se se dissesse mais vezes «a literatura é necessária», se cometessem, em primeiro lugar, menos erros na língua escrita e falada, se dissessem menos atrocidades sobre tudo e todos, se criasse um homem de espírito mais livre, tolerante e crítico.