De crise em crise...
A crise gripal veio juntar-se à crise económica e financeira que atinge o mundo. Ao medo do empobrecimento juntou-se o terror da morte. Estes acontecimentos são reveladores de algo que o nosso modo de vida civilizado tende a escamotear: a natureza intrinsecamente insegura e enigmática da vida. Por muito que as nossas construções intelectuais e a nossa acção tentem fazer para obviar a esse carácter estranho da existência num corpo dotado de vida, as situações de crise, ainda por cima se são globalizadas, vêm mostrar a desmesura das pretensões do homem moderno, do homem que tudo quer pôr em segurança, como se a vida pudesse ser resguarda por uma qualquer companhia seguradora.
Perante as pandemias gripal e a financeira que atingem agora a comunidade global dos homens, nada melhor do que olhar para a própria palavra crise e entender o que nela está a ser dito e pensado, desde a antiguidade clássica. A palavra grega κρίσις (krisis), palavra que deu origem ao nosso vocábulo, significa, para além de crise, "acção ou faculdade de separar, de discernir"; "luta, litígio, processo"; "decisão, juízo, sentença"; "resultado, desenlace". Como se percebe, o campo semântico é muito mais complexo do que aquilo que estamos habituados a pensar quando empregamos a palavra crise.
Sublinharia r a dimensão judicativa presente na ideia de crise. Todas as crises são uma espécie de litígio em forma processual, no qual deve interferir uma faculdade de julgar (discernir), que acabará por pronunciar uma sentença, um juízo, uma decisão. Por norma, nas crises vemos apenas a sua superfície, isto é, a perturbação que elas introduzem no decurso normal das coisas. Recusa-se, o hábito instalado, a ver mais do que isso e não percebe ou, de certa maneira, não quer perceber, que aquela crise é de facto um processo onde as nossas opções vitais e sociais, existenciais em suma, estão a ser julgadas. É evidente que na experiência helénica da κρίσις (krisis) ressoa toda uma ambiência metafísica, presente por exemplo no fragmento de Anaximandro, que submete os homens e até os deuses ao juízo da Moïra. Dito de outra maneira, todas as crises são um julgamento divino. Não por acaso, elas foram sempre e em todo o lado vistas como esse julgamento e a execução de uma sentença ditada pelo divino.
Esta visão metafísica, tão estranha ao nosso modo de pensar, não é outra coisa, porém, do que uma "divinização" das potências naturais, vitais e sociais que o homem não controla e que as sente separadas de si e opostas a si mesmo. Este reconhecimento tradicional é um escândalo para a consciência moderna. Nós hoje, graças ao papel da ciência, podemos explicar tudo. A verdade, no entanto, é que a humanidade, em cada grande crise, não deixa de sentir confusamente que potências que ela não controla se voltam contra ela. Se nas sociedade não modernas, os acontecimentos críticos poderiam ser sentidos com dor e até com um sentimento de injustiça, nelas não faltava, todavia, a clara noção de se estar perante um julgamento. Nós, homens modernos, sentimos a dor, a injustiça do estado crítico, mas não compreendemos sequer que estamos a ser julgados, e julgados pelas potências naturais, vitais e sociais que nos rodeiam e que já não são, por nós, percebidas enquanto potências, encadeados que estamos pelo clarão do nosso poder científico. Na máxima clareza que a ciência proporciona esconde-se uma zona de sombra, prelúdio das trevas mais intensas que a razão não domina. Mas talvez seja nessa zona de penumbra que o homem possa aceder àquilo que da crise poderá resultar. Pois toda a crise significa também um resultado que se alcança, um desenlace que supera o estado crítico e relança a existência noutro patamar.