Ópera e Modernidade - 400 anos
Passam hoje 400 anos sobre a primeira apresentação do Orfeu (favola in musica L’Orfeo) de Cláudio Monteverdi. Esta é a primeira ópera digna desse nome, apesar de já no século XVI, em Florença, surgirem compositores, como Jacopo Peri e Giulio Caccini, cujas obras se aproximam,enquanto fenómeno estético-musical, da ópera. É hábito colocar o nascimento da Modernidade na publicação de o Discurso do Método, de Descartes (1637). Não será, no entanto, desprovido de sentido, seguindo aliás a inspiração do Nietzsche da Origem da Tragédia, fazer recuar o nascimento dos Tempos Modernos e tomar como símbolo desse nascimento, o dia 24 de Fevereiro de 1607, quando Cláudio Monteverdi fez representar, em pleno Carnaval, o seu Orfeo, nos aposentos privados do Duque de Mântua.
Que elementos poderemos encontrar no Orfeo que nos remetam para o espírito da Modernidade? O libretto do Orfeo retém, em linhas gerais, o mito clássico: Orfeu e Eurídice, apaixonados, preparam-se para casar; Eurídice morre e Orfeu decide descer ao Hades, à morada dos mortos, para a resgatar da morte. O encanto musical de Orfeu consegue convencer os reis da morte a libertarem a mulher amada. Uma condição, porém, é posta a Orfeu: que não olhe para Eurídice até que ela tenha passado a fronteira entre o reino da morte e o reino da vida. Durante todo o trajecto Orfeu resiste ao desejo de ver a amada. Ao atingir a luz do sol, virou-se para se certificar que ela o seguia. Viu-a, por um breve instante, perto da saída do túnel escuro, perto do reino da vida, mas ainda na morada dos mortos. O olhar de Orfeu foi demasiado cedo e Eurídice retorna à sua situação de fantasma que se dissolve. No 5.º acto, o deus Apolo, ao ver Orfeu, seu filho, consumido pela amargura, apieda-se dele e reúne-o, de novo, a Eurídice. Um final feliz.
Encontramos, nesta história, pelo menos dois elementos, aparentemente contraditórios, indiciadores das marcas da Modernidade. Por um lado, o sublinhar, no antigo mito de Orfeu, a preponderância da razão, e de uma razão calculadora, sobre os sentidos, os afectos e as emoções – isto é, a experiência sensível. Se Orfeu não tivesse sido tão precipitado, se tivesse calculado a relação entre o tempo e o espaço, teria esperado que Eurídice chegasse até ele. A necessidade da experiência sensível, a necessidade de uma certificação pelos sentidos, deitou a perder o seu ousado empreendimento. Uma bela lição para mercadores ávidos, príncipes precipitados, generais aventureiros. A razão calculadora, a razão que não se deixa iludir pelas aparências, sai magnificada do desaire do pobre Orfeu.
O segundo momento que prenuncia a Modernidade é dado pela atitude providencial e previdencial de Apolo e pelo optimismo que dela emana: tudo acabará em bem, um deus, apesar de tudo, velará por nós e permitirá que a ordem do mundo nos seja favorável e nos poupe a amargura. Esse deus pode ser a Ciência, o Estado-Previdência, o Choque Tecnológico, a Educação, tudo outras tantas designações de Apolo benfazejo.
Dir-se-á até que a clássica divisão política entre Direita e Esquerda, nascida da Revolução Francesa de 1789, se encontra já prefigurada no Orfeo, de Monteverdi: o cálculo à direita; a previdência à esquerda.
No entanto, aquilo que me parece mais interessante nesta leitura que transfere o nascimento simbólico da Modernidade do Discurso do Método, de Descartes, para o Orfeo, de Monteverdi, é o roubar a sisudez com que a Modernidade se revestiu. Com Descartes, a Modernidade quer assegurar-se de um conhecimento verdadeiro e inquestionável, para isso precisa de um método científico. Mas não será mais interessante ver a Modernidade como o resultado de um devaneio de Carnaval? Não seremos, nós os modernos, o fruto de uma fábula musical? Não é a sensação de se estar perante um jogo de máscaras, talvez um baile, que percorre todos os tempos modernos, desde o século XVII até hoje?
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