Tocata e fuga
Pego num velho livro de David Mourão-Ferreira, entre a sombra e o corpo, composto por 30 pequenos poemas, todos eles constituídos por dois hexassílabos culminados, rematados como diz o próprio poeta, por um trissílabo [Assim, por exemplo: «Quantas mãos Quantos dedos / para que em seda cedam / as paredes]. Os poemas são de um erotismo musical quase comovente. Mas, como muitas vezes, há outras coisas que me prendem ao livro. Logo a começar a capa, aquela velha capa da Moraes Editores, a capa da colecção Círculo de Poesia. Depois espreito o ano de edição e descubro que é de 1980, de Novembro de 1980. O meu exemplar é da primeira edição. Vou ver se o livro tem o meu nome como usava fazer até certa altura. Descubro dois nomes, o meu e o de uma mulher, aquela que na altura partilhava a vida comigo. Vejo também a data da compra, 31 de Dezembro de 1980. No último dia do ano de 1980, comprei um livro de poesia. Não consigo já descobrir onde. Isso foi quase há 28 anos. A Moraes Editora acabou, deixei de partilhar primeiro os livros e depois a vida com a dona daquele nome, o poeta morreu, há muito que deixei de pôr o quer que seja nos livros que compro. Resta o essencial, aqueles pequenos poemas, poemas como este: «Bebo mais do que toco / E que insónias afogo / neste copo». Talvez não haja mais nada a não ser isso, as insónias que afogamos nos copos ou nos corpos que bebemos.
1 comentário:
Talvez haja mais alguma coisa: editar o que escreve. Talvez um dia alguém alguém escreva um texto como o seu, sobre um livro que comprou há 28 anos,e pense: «comprei este livro e nele escrevi o meu nome e o da pessoa que comigo partilhava a vida nesse altura. A pessoa morreu, quem o escreveu também, mas aqui estou com as palavras que quem escreveu deixou e que me fizeram, neste instante, ver um céu com mais luar.»
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