20/09/11

Um deus travesso


Ando há uns dias para comentar este post da Ivone. Não vou entrar na interessante discussão teórica por lá havida. O que me interessa é o último parágrafo. Diz a Ivone: "Sim, meus caros, eu sei: a Grécia e a crise e o euro e a vida. Eu sei, também a conta da água e o meu subsídio de Natal vai descer aos Infernos. Mas sem a literatura, sem a arte, tudo me seria mais difícil." Eu compreendo o deslumbramento perante o livro da Maria Teresa Horta. Ofereci-o à Helena e li um pouco. A escrita é absolutamente luminosa. 

O que há de surpreendente, porém, nos dias de hoje é o carácter ficcional de tudo o que acontece. A Grécia e a crise e a senhora Merkel e os verdadeiros finlandeses e os mercados e as bolsas e o euro e a vida, mais a conta da água e o subsídio de Natal, bem como o Jardim e a Madeira e o BPN, tudo isso é o exercício de um supremo artista, que vai tecendo o plot ao mesmo tempo que se ri das lamentações vagas e irrisórias das personagens. Vivemos na época em que a arte triunfou. Não passamos de personagens, pequenas personagens, de uma intriga onde as peripécias se sucedem ao ritmo determinado pelo arbítrio do criador. Uma personagem romanesca, como se sabe, é impotente perante o desígnio do autor. 

Assim, eu e a Ivone e a generalidade dos portugueses que viram os seus subsídios de Natal descer, como Orfeu, aos Infernos não somos menos impotentes, apesar da nossa aparência de seres racionais dotados de vontade, que as personagens romanescas. As peripécias da Madeira, o ar de bom rapaz do dr. Passos Coelho ou o matiz de sacristão do dr. Seguro, tudo isso faz parte não de uma conspiração contra a razão, coisa que há uns dez anos eu ainda acreditaria, mas de um supremo exercício artístico, com o qual um deus travesso se diverte, com ligeiro enfado, nas longas tardes da eternidade olímpica. Talvez fosse melhor que jogasse xadrez, mas parece que descobriu, para nossa infelicidade, uma veia artística. A Ivone, que me perdoe, mas labora num equívoco. Tudo se tornou literatura e arte, e por isso é tão fácil de acontecer.

2 comentários:

Spartacus disse...

A fina ironia que transparece deste texto, não deixa de refletir a realidade, apesar da imagem romanesca que utiliza.
Excetuando a análise, talvez algo determinística, da sujeição aos caprichos do deus travesso, a verdade é que, a vida presente, mais que uma trágico-comédia, se transformou num espetáculo multimédia.
Hilário

Ivone Mendes da Silva disse...

:)
Pois é, meu caro Jorge, all world's a stage.