03/12/09

Desamiganços


Consta que foi criada uma nova palavra de língua inglesa. Um verbo, mais precisamente. To unfriend, que significa retirar alguém de uma rede social da Internet (tipo Facebook), abolindo o seu estatuto de "amigo". O Público traduz literalmente como desamigar. Porém, este verbo lembra um outro que, porventura, já caiu em desuso, o verbo amigar. A não sei quantas amigou-se com o não sei quantos. Amigar-se era estabelecer, na linguagem pós-moderna que nos cabe, uma união de facto. Mas se hoje - bem, já há uns tempos - uma união de facto é coisa vista com bonomia e mesmo como prova de sensatez, já o amiganço, no tempo em que não era união de facto, era olhado de esguelha. Seria uma espécie de solução de recurso para a impossibilidade de um casamento segundo o regulamento geral. Se o amiganço tinha um estatuto sombrio, o desamiganço era invisível. Para além dos dramas efectivos dos desamigados, a estrutura social ignorava-o, apesar de se sentir reforçada, pois o desamiganço acabava por ser um tributo tardio à ordem regular do matrimónio.

O novo desamiganço, o das redes sociais da Internet, é leve e pueril, embora a sua puerilidade possa provocar, por vezes, dor e infortúnio. Amigar e desamigar nas redes sociais não passam de práticas metafóricas, digamos assim. Esses amigos virtuais representam uma espécie de plateia, num mundo que se tornou num imenso espectáculo virtual. Eu exponho-me à plateia dos meus amigos virtuais e em troca eles têm-me como espectador. Mas nada disto representa uma amizade séria. A amizade implica uma certa igualdade. Só os iguais são efectivamente amigos. Esta igualdade não é de classe, embora esta possa ter peso. Diria antes que é uma afinidade electiva a partir da qual se constrói um mundo de referências partilhadas, de vivências e, fundamentalmente, de segredos. Os segredos não precisam de ser de coisas escabrosas ou muito importantes. Por exemplo, a saúde dos pais dos meus amigos é uma coisa privada, a qual é partilhada entre nós com vivo interesse, como se fosse um segredo. Mas há outros segredos na amizade mais secretos, que só entre amigos se partilham.

A amizade efectiva recolhe os amigos, iguais entre si, num círculo de onde o espectáculo e a exposição públicos são reduzidos ao mínimo possível. O amiganço nas redes sociais é transversal e democrático, pois permite que todos sejam amigos de todos com a facilidade de um ou dois cliques. A grande questão é se a democratização da amizade não significa a morte da verdadeira amizade. É que se há coisa que não é mesmo nada democrática é a amizade. A afinidade electiva que leva as pessoas a aproximarem-se entre si é apenas o primeiro impulso, o qual deve ser secundado por um conjunto infinito de provas iniciáticas, nas quais os amigos vão consolidando o cenáculo constituído. Perder um amigo, por exemplo, devido à deslealdade, é provação ontológica. Ser descartado numa rede social pode ser um ferrete no narcisismo de quem colecciona espectadores, mas nunca uma dor que atinja o núcleo essencial daquilo que se é.

2 comentários:

Alice N. disse...

A palavra "amigo" está, de facto, banalizada, como tantas outras. Frágeis malhas que a rede tece...

Eu própria criei um perfil no Facebook, depois de uma amiga francesa de longa data me ter enviado o convite. Achei entusiasmante poder comunicar mais regularmente com uma pessoa querida que, em média, só vejo uma vez por ano. Só depois percebi melhor essa história de dezenas e centenas de "amigos" na rede, já que nada sabia sobre redes sociais. De vez em quando, lá recebo uns "convites de amizade" vindos não se sabe de onde. Coisa irritante. Esses recuso-os todos. O pior são aqueles que temos dificuldade em recusar, por delicadeza. Não acho graça nenhuma querer entrar à força na intimidade dos outros. Sei que é uma banalidade dizer isto, mas é muito vivido e sentido: quanto mais envelheço e tento crescer, mais reduzido se torna o número de amigos e aumenta o número de conhecidos. Devia ser ao contrário. Contraditoriamente ou não, também é verdade que tenho muito mais estima por algumas pessoas que "conheço" através da Net (muito poucas, de qualquer modo) do que por outras com quem lido diariamente.

maria correia disse...

Considero a internet um dos grandes avanços do século XX, um passo de gigante na possibilidade de informação e comunicação. Através do MSN, do Skipe e do Facebook, por exemplo, falo com amigos, conhecidos, ou por vezes com desconhecidos que me podem ajudar na minha área, tradução, a qualquer hora do dia em qualquer parte do mundo....Tailândia, Praga e Angola, só para referir os meus últimos contactos com amigos, amigos mesmo, e família. Poderia estar horas a dissertar sobre todos os benefícios que a WWW trouxe ao mundo. Mas fala-se de amigos, de novas palavras, e isso de surgirem palavras novas nas línguas é perfeitamente natural acontecer e sempre aconteceu, e fala-se também das redes sociais. Sou adepta incondicional destas redes e não conheço nem um terço delas. Aderi ao Facebook há relativamente pouco tempo e estou maravilhada com as possibilidades imensas que as redes sociais trazem. Comunicar, partilhar informação, trocar ideias, até pedir ajuda e recebê-la à distância de um clique...ainda hoje houve trinta pessoas a ajuda uma amiga que estava com problemas no computador e o problema resolveu-se em meia hora...um amigo comunicou com outro, depois alguém comunicou com um especialista em informática, e por aí afora.. Em relação ao Facebook, considero o grafismo excelente, coloca as pessoas à vontade, é elegante, permite-nos conhecer e aderir ou não a uma série de causas. E quem não quer ser «amigo» ou expôr-se, tem o direito e a possibilidade efectiva da privacidade. É simples.Que se tenha estabelecido a palavra «friend» ou a palavra «unfriend» para significar pessoas que podem ou não ser amigos no sentido estricto ou meros conhecidos, virtuais ou não, é uma mera convenção e não considero motivo para dizer que a palavra amizade esteja banalizada. Há algo de profundamente clássico em determinados substantivos e por isso mesmo nunca se banalizarão. Se existe alguém que leu várias vezes «As Afinidades Electivas» de Goethe, fui eu, por exemplo. A palavra Amizade, tal como a palavra Amor ou Honra ou outras, são sagradas (para mim o conceito é alto) e não penso que o facto de nas redes sociais se falar em «friends» (uma mera convenção) se possa extrapolar que a «a amizade está banalizada», como diz Alice N., por muito que considere o que a comentadora diz.

Há diversos livros publicados já sobre as redes sociais, sobre o poder que estão a ter e que podem vir a ter. Veremos.

Nem todas as pessoas que estão nas redes sociais se encontram lá para «coleccionar espectadores». Acredito mesmo que muitas não estejam lá para e por isso. Creio porém que muito do nosso mundo real passa para o virtual e ser considerado «unfriend» por alguém poderá doer e magoar tanto como se a «coisa» for dita frente a frente. Vivemos no século XXI e vivemos ainda mais nesse século XXI na internet e através das redes sociais. O homem adquiriu uma outra dimensão (virtual) e considero isso um processo natural da evolução humana que, como tudo o que é humano, poderá ser bom e mau ao mesmo tempo, para usar palavras simples. Foi passado um outro Rubicão e não há volta atrás. «Alea jacta est».