30/04/07

Cardílio - VIII

Na luz destas colunas, em teu rosto
Macerado, coberto pelo musgo
Desenhado na areia dos olivais,
Quantos anos passaram como sombras?

As paredes são pó, pedras calcárias,
Abandonadas águas tão salobras
Como uma ave felina pela morte
Tocada. Breve cântico, colónia

Na palavra dobrada, porque te ergues?
A morte por mim chama nas manhãs
Outonais, no céu límpido e imortal.

Grita-me o nome a luz incendiada
No porão dos Invernos cintilantes.
Na rua, som, vento e sal pela alvorada.

O modelo asiático

Há, no Público de hoje, uma reportagem de Paulo Moura (PM) sobre Singapura. Esta reportagem merece meditação e confronto com a posição de Shimon Perez sobre a irrelevância do Estado, comentada ontem neste blogue. Eis algumas notas extraídas do texto de PM:

“Singapura é uma das economias mais bem-sucedidas do mundo. Uma das razões do seu fulgurante crescimento é o clima de paz social e política que vigora no seu regime de quase partido único.”

“Em nome do bem-estar económico, as autoridades do país impuseram um regime de autoritarismo disfarçado, em que tudo funciona bem, se ninguém fizer ondas. A imprensa não critica o Governo, a oposição mantém-se em níveis residuais ou simbólicos de actividade, a polícia garante a ordem e os bons costumes.”

“Segundo o Partido da Acção Popular (PAP), que está ininterruptamente no poder desde a independência do país, em 1965, o êxito do país deve-se aos chamados "valores asiáticos", onde pontifica o consenso, por oposição aos "valores ocidentais", baseados no individualismo. São esses mesmos "valores asiáticos", que sacrificam a liberdade e os direitos individuais em nome do bem comum, que estão na origem do crescimento das novas potências orientais, principalmente a China.”

“Singapura é vista como um laboratório e um modelo para essas economias. Conseguiu um nível de vida equivalente ao dos mais ricos países do Ocidente.”

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Constatações:

1. É um mito a conexão entre o desenvolvimento da liberdade e o desenvolvimento da economia de mercado. Esta pode crescer com fortes restrições da liberdade. Mesmo em Portugal foi isso que aconteceu. A década de maior crescimento, a de sessenta, não foi uma década de liberdade, pelo contrário.

2. O clima de paz social e de estabilidade política é fundamental para o desenvolvimento.

3. Há múltiplas vias para o desenvolvimento da economia de mercado. Já John Gray (cf. Falso Amanhecer) tinha constatado essa multiplicidade de vias para o desenvolvimento capitalista.

4. O modelo «singapuriano» está a tornar-se o paradigma do desenvolvimento asiático.

5. Traços emergentes do modelo «singapuriano»: estabilidade social e política, sobreposição da comunidade política ao indivíduo, afirmação do papel do Estado no desenvolvimento económico.

Reflexões:

1. O modelo anglo-saxónico de desenvolvimento da economia de mercado pode ser desajustado para o desenvolvimento económico da Europa.

2. Se se pretende manter altos níveis de liberdade dos indivíduos, então há que assegurar a paz social por intervenção do próprio Estado. É necessário reactivar os mecanismos de regulação, em vez de os destruir como tem sido, na Europa, o caminho nos últimos tempos.

3. A dissolução da dimensão social do Estado, na Europa, acabará por desenhar amplas fracturas sociais que acabarão por dinamitar a paz social e política.

4. O importante não é a Europa, fundamentalmente a Europa do Sul, seguir o modelo anglo-saxónico ou o modelo asiático. Pelo contrário, a Europa deverá voltar ao seu espírito constituinte e, em vez de se envergonhar dele, deve refundá-lo e a reafirmá-lo como modelo que combina desenvolvimento económico e a equidade fundada na justiça distributiva.

5. Contrariamente ao modelo asiático, a Europa não pode nem deve alienar a liberdade; contrariamente, aos modelos ultraliberais, a Europa não pode e não deve alienar o espírito de comunidade como berço dos indivíduos. O modelo europeu precisa de um sábio, mas sempre frágil, equilíbrio entre comunidade e indivíduo, entre liberdade e igualdade. Precisa da arte política.

6. O Estado não pode ser reduzido à expressão mínima, como apontava, por exemplo, o israelita Shimon Perez. Se tal acontecer, descobriremos um pesadelo sem fim, pois não somos asiáticos nem americanos.

Visões geocêntricas


29/04/07

Cardílio - VII

Já não resta do amor senão fragmentos
Dilacerados, rosas secas, murchas,
Espinhos acerados no silêncio
Da primavera lábil e apagada.

O inquieto chão que outrora tu pisaste
Não passa de um murmúrio, seca página
Da mão logo apartada. Ouve, Cardílio,
A lâmpada apagou-se, a noite veio...

Tremem-te as mãos, amarga o coração,
Já nada em ti respira, nem a voz,
Nem a língua suspira. Anjo não és,

Nem ladrão, nem um deus na madrugada.
- Sombra, vermelha sombra, quem és tu?
- Um nome, sem destino nem morada.

Mstislav Rostropovich

Em memória de Mstislav Rostropovich, um dos grande violoncelistas do século, se não o maior, propõe-se a audição de “The Canticle of the Sun – music for strings, flute and percussion”, da compositora russa Sofia Gubaidulina. Neste CD da EMI, encontram-se duas obras (O Cântico ao Sol e Música para Cordas, Flauta e Percussão) e Rostropovich surge numa dupla função: a dirigir a London Symphony Orchestra e como violoncelista.

A irrelevância dos governos...

Shimon Perez é uma velha raposa da política israelita e foi, durante muito tempo, a face visível do Partido Trabalhista de Israel. Na entrevista concedida ao Expresso e publicada no sábado passado, diz coisas muito interessantes sobre a situação no médio oriente. O que me interessa, contudo, é outra coisa. Ao referir-se à situação interna de Israel diz: «As pessoas estão contentes, a economia está muito bem e isto não se atribui ao Governo, porque este já quase que é irrelevante no mundo. Na era da globalização há muito espaço para o individualismo. Alguém como Bill Gates pode construir um império económico sem necessidade de matar ninguém. O mundo mudou e não faz nenhum sentido olhar para trás. A Internet dá força aos cidadãos e às empresas comerciais globais, atribuindo-lhes a responsabilidade de fixarem uma nova ordem social, económica, ecológica e política. Os governos do nosso tempo já quase são irrelevantes, já não controlam o movimento do dinheiro, o movimento das pessoas, só controlam um exército e umas forças policiais relativamente pequenas. O dinheiro não é controlado pelos Estados mas por empresas. Cerca de 1,5 triliões de dólares mudam de mão todos os dias e não há no mundo um Governo com tanta influência.»

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Elenquem-se os pontos fundamentais: 1. Os processos económicos não dependem dos governos; 2. A crescente irrelevância dos governos, que apenas controlam a segurança; 3. A globalização abre o espaço para o individualismo: a Internet reforça o poder dos cidadãos e das empresas comerciais globais: responsabiliza-os por uma nova ordem social, económica, ecológica e política.

Tem sido a doutrina vigente no mundo ocidental a separação da economia e da política. Mas será esta a realidade global? Por exemplo, a Rússia e a China. Será que aí a economia é absolutamente independente da decisão política? E, através desse controlo e direcção da economia pelos desígnios políticos, não se estarão a preparar para se tornarem, no futuro, as principais potências globais?

A crescente irrelevância dos governos não será ao mesmo tempo a crescente irrelevância dos Estados-Nação? E se um aparelho de Estado se torna irrelevante, como poderá ele, inclusive, manter as prerrogativas para assumir as tarefas de segurança? A lógica não será a de entregar às empresas globais a segurança, isto é, as polícias e os exércitos? Mas isso será viável? Não estaremos a assistir a uma tentativa de assassinato dos Estados para que os «pacíficos» donos das empresas globais possam alargar o seu mercado, inclusive à guerra e à paz e à segurança interna? Mas qual o preço dessa aventura?

É um facto que parece que a Internet reforça o poder dos cidadãos e o das empresas globais. Mas serão coisas comparáveis e equilibráveis? Não contribuirá a Internet para uma crescente atomização até que o indivíduo não seja mais do que um mero ponto dessingularizado? Se se tinha a ideia de que as sociedades modernas eram sociedades de massas onde o indivíduo tendencialmente desaparecia, parece-me que esta leitura da Internet como salvadora da singularidade dos indivíduos esconde a verdadeira realidade. A aparência de fazer parte de uma esfera global não significa que os indivíduos sejam mais do que meros pontos. Provavelmente se eles eram, até ao advento da Internet, pouco mais do que números, hoje serão meros pontos de uma rede composta por pontos. O que caracteriza o ponto é a sua ausência de conteúdo, isto é, de características. A Internet não tem nenhum desígnio emancipador e libertador do indivíduo. Nela, haverá uns que terão voz e muitos outros sem voz. A Internet pode reforçar a natureza alienada dos seres humanos.

Por outro lado, não é equiparável o poder das empresas comerciais globais e o dos indivíduos. Isso, mais tarde ou mais cedo, repercutir-se-á no domínio da rede pelos mais fortes e poderosos. Aliás, já está a acontecer. O que pode mudar, e muda efectivamente, é o que se entende por forte e poderoso.

Desconfio deste alijar do Estado. O Estado é muitas vezes colonizado pelos interesses dominantes. No entanto, o Estado sempre foi a última esperança dos mais desprotegidos, dos mais frágeis, dos mais fracos. Sem Estados, o domínio do mais forte será a única lei. Mas aqui convém voltar a Thomas Hobbes: mesmo os mais fortes, no estado de natureza, estarão inseguros, pois os mais fracos podem coligar-se para os matar.

Olhar irreflectidamente para o que diz Shimon Perez pode-nos nos levar a pensar que estamos a entrar num admirável mundo novo. Interrogar o que se esconde nesse mundo, pode ajudar-nos a descobrir um pesadelo sem fim.

A política é essencial e deve comandar tudo o que diz respeito à comunidade. Isto não quer dizer que deva interferir em tudo, mas que deve regular, segundo os interesses da(s) comunidade(s). O Estado não pode morrer, sem que pereça com ele a própria espécie humana.

Cardumes de pedra


27/04/07

Cardílio - VI

Havia aldeias de pó, casas de espuma,
Animais de cabeça incendiada.
De vento e som que imagens desse tempo
Na distância ficaram soterradas?

Foram-se os meses, dias foram também.
Tudo se foi tão rápido. Os rios trémulos
Abandonaram-se à foz e o silêncio
Da noite entre colinas logo avançou.

Na flecha da memória há uma seta
De cristal, um revérbero de cinza,
A luz branca e animal. Lâmina fria

Em tua cabeça cai. Pesados ombros
Ao feroz peso d’água tão vergados,
Sois sombra leve ou lâmpada apagada?

Sinais dos tempos - A voz de Moscovo

Para quem ainda não tivesse percebido, Putin veio, mais uma vez, mostrar que os interesses da Rússia não se confundem com os dos europeus e, muito menos, com os dos americanos. Haverá já quem esteja decidido a vergar-se. A política internacional é o que é e não aquilo que se deseja. Também, como se vai começando a perceber, a Europa, para sua própria defesa, começa a estar nas mãos dos russos. Um dia isto pode pagar-se. É evidente que para muitos europeus a NATO é o mal. Mas se a NATO desaparecesse e a aliança entre os dois lados do Atlântico acabasse, quanto tempo duraria a nossa paz, liberdade e independência?

Sinais dos tempos - Presidentes de Câmara arguidos

A questão está a tornar-se preocupante. Gostaria que Carmona Rodrigues (PSD) e Maria das Dores Meira (PCP) nada tivessem a ver com os processos em que, alegadamente, foram constituídos arguidos. Tenho a esperança de que sejam ambos inocentes. O caso de Lisboa parece-me mais feio que o de Setúbal, o tempo o dirá. Lisboa e Setúbal não são pequenos e irrelevantes municípios, pelo contrário. A multiplicação de processos contra políticos pode agradar a uma certa opinião pública ressentida, mas deve preocupar quem está interessado em instituições democráticas sólidas e deve preocupar não porque a justiça esteja agir, mas pela imagem que fica dessas instituições.

Sinais dos tempos - Aliança de civilizações

Simpatizo com a figura serena, culta e civilizada de Jorge Sampaio. Houve quem dissesse que foi um Presidente medíocre. Não foi. Fez o que tinha a fazer e deixou a governação a quem tinha de governar. Tinha aqueles discursos um pouco redondos, mas são esses que os presidentes podem e devem, em geral, ter.

O reconhecimento internacional veio mais rápido. Não só a nomeação para alto-representante da ONU para a luta contra a tuberculose, como agora uma outra nomeação idêntica para promover a Aliança de Civilizações. Mas esta nomeação é também reveladora das tensões internacionais. Por muito que se queira dizer que não há conflitos civilizacionais, parece que a coisa existe mesmo e que precisa de alguém com um perfil cordato como o de Sampaio, para alto-representante da ONU.

Sinais dos tempos - A liberdade...

Recomenda-se leitura atenta do artigo de hoje de Vasco Pulido Valente, no Público. As pessoas não acreditam, ou porque estão distraídas ou porque não dão grande valor à liberdade, mas há qualquer coisa malsã no ar. Pulido Valente faz o elenco. Dói-me que o partido de Mário Soares tenha, nas mãos dos jovens turcos que o comandam, uma propensão tão grande para o policiamento da liberdade. O PSD, que agora se queixa, também deu a sua ajudazinha. Tudo isto faz-me brotoeja…

Luchino Visconti – Luís da Baviera (Ludwig)

Luís da Baviera (Ludwig), de Visconti, saiu agora em DVD. Quase 4 horas de filme. Ao que consta, Ludwig foi um fiasco de bilheteira e os críticos também não abonaram a visão de Visconti sobre Luís II, o louco. Todavia estamos perante uma grande obra. O cineasta mostra-nos um conjunto de tensões fundamentais onde a dimensão singular das personagens, melhor, da personagem, se ergue como símbolo e sintoma de uma época e do destino de uma casta que o tempo se preparava para dispensar.

A primeira tensão e a que é estruturante do filme é entre a vida estética e a vida política. Luís II é dilacerado pelo conflito entre a sua natureza de esteta e os seus deveres políticos, enquanto Rei da Bavária. Deste ponto de vista, o que Visconti mostra é a incompatibilidade entre os dois jogos de linguagem. A impossível, mas sempre procurada, conciliação tem apenas uma saída: a loucura, abdicação e morte do Rei.

Uma segunda leitura, permite, porém, perceber que o pendor estético de Ludwig é a contrapartida de uma situação anacrónica. O tempo da aristocracia e da sua ética tinha terminado. O ethos do serviço e da lealdade aos valores mais elevados estava a ser substituído pela visão burguesa do mundo. Ludwig, o louco, é a manifestação dessa morte, que Visconti filma obsessivamente. Veja-se, por exemplo, Violência e Paixão ou o Leopardo. É como se um mundo construído a partir da poesia homérica se encontrasse agora definitivamente no fim.

Esse fim é mostrado seja na impossível paixão de Luís por sua prima, Isabel da Áustria, seja pela admiração até às raias da loucura por Wagner e a sua música, seja pela obsessiva construção de castelos absolutamente inúteis e que nunca habitou. Todos estes casos simbolizam uma oclusão, uma impossibilidade de conferir já sentido à acção. A demência de Ludwig, a sua paranóia, não é, no filme de Visconti, apenas um caso subjectivo de natureza psicológica, mas antes a imagem especular de um mundo em decomposição acelerada e a morte dos valores que o sustentaram durante milénios.

In principium erat...

26/04/07

Cardílio - V

Tão sentado estás na erva verde
Incendiada, fremente como o pólen
De onde destila o tempo. Pelas vinhas
Sopra o estio já cansado, cru e voraz.

Dos caminhos de sílica, dos fogos
De Outono, do calcário do teu ombro,
Nada resta. Enumeras as palavras,
Mas os dias apagaram-se p’ra ti.

Sombra na superfície das paredes,
Pelo chão derramadas, sombra negra
Tuas mãos o pão deixaram de alumiar.

No fulgor do horizonte, no caminho
Fumegante da vida, és pura treva,
Ocaso doloroso, um fogo-fátuo…

Castanheiros em flor II

Hoje, havia tapetes de flores de castanheiro pelos passeios da avenida. Afinal não foi o calor a derrubá-las, foi o vento. Mas ainda merecem o olhar de quem passa.

Aristóteles - A questão do regime político

“Significa isto que não devemos contemplar apenas o melhor regime mas também aquele que é simplesmente possível, e ainda aquele que é de mais fácil aplicação e mais comum a todas as cidades. A verdade é que grande parte dos autores procura apenas a forma mais excelente e que requer abundância de recursos; outros propõem uma forma comum para todas as cidades, menosprezando os regimes já estabelecidos, e exaltando, por exemplo, a constituição espartana ou outra qualquer.
O que verdadeiramente interessa, pelo contrário, é introduzir uma ordenação política cujas disposições persuadam facilmente os cidadãos e facilmente sejam adoptadas; pois não é, de modo algum, menos trabalhoso o acto de reformar um regime do que o acto de o instituir desde o início, da mesma forma que não é menos trabalhoso o acto de aprender melhor do que o acto de aprender desde o início. É por isso que, além de outros aspectos referidos, o político deve ser capaz de auxiliar os regimes já estabelecidos, como já tivemos oportunidade de referir.” [Aristóteles, Política, 1288 b 34 – 1289 a 7]

Conseguiremos, nos dias que correm, ler em toda a extensão aquilo que, neste excerto, Aristóteles propõe sobre a questão do regime político? Tentemos, de forma sistemática, escavar o que está aqui presente:

1. O mais importante é a existência de um regime político (uma ordenação política). O pressuposto não dito é o seguinte: a existência de um regime político é preferível à sua inexistência. Dito de outro modo, a política é uma inevitabilidade para a espécie humana.

2. Que tipo de ordenação política deverão, o legislador e o político, introduzir? Aquela cujas disposições persuadam facilmente os cidadãos e sejam facilmente adoptadas. O critério da escolha do regime parece bastante pragmático. Está ligado à ideia de uma adopção fácil. No entanto, não nos deveremos precipitar. A ideia de persuasão deixa, pelo menos, pressupor uma certa necessidade de gerar um consenso entre os cidadãos. A eficácia surge, no texto, submetida a esse «consenso» a buscar pela persuasão. Note-se, ainda, que ao introduzir a ideia de «disposições que persuadam facilmente os cidadãos» se está a fazer um apelo a um regime que não se impõe pela força, mas pela argumentação.

3. Se se estiver atento descobrem-se, relativamente aos regimes políticos, quatro qualificações a considerar: 1. o preferível; 2. o possível; 3. o de mais fácil aplicação; 4. o mais comum. Estas qualificações não têm de ser lidas como excluindo-se umas às outras, embora existam tensões interessantes entre elas.

4. Quando Aristóteles diz que «grande parte dos autores procura apenas a forma mais excelente e que requer abundância de recursos», ele não está apenas a fazer uma crítica ao regime ideal proposto na República, de Platão. Está a lançar as bases de toda a futura crítica da utopia em política. O melhor regime, o mais excelente, apresenta essa dificuldade essencial de não se coadunar com os recursos existentes. A utopia política, como utopia que é, não tem em consideração as condições do espaço e do tempo e, por isso, a sua excelência é apenas abstracta e inconcretizável. É contra esta crítica da utopia que Marx vai argumentar com o que ele chama a necessidade de realizar a filosofia, de a pôr em prática. Todos conhecemos os resultados. Marx, nessa perspectiva, é um herdeiro de Platão, embora este tivesse consciência de que a sua cidade ideal não passava disso mesmo.

5. Aristóteles opõe ao «melhor regime» o «regime possível». Este é aquele que cada condição espácio-temporal e de cultura cívica permite organizar. A política não depende da verdade, mas de uma adequação pragmática às condições de possibilidade. Esta meditação aristotélica é um poderoso adversário da doutrina do neo-conservadorismo evangélico norte-americano: a ideia de que a democracia é o melhor regime e que é exportável, independentemente das condições. Este tipo de pensamento transforma o regime democrático-liberal também numa espécie de utopia, a que se aplicam por completo as reflexões apresentadas no ponto anterior. Aqui, poderemos articular a ideia de regime possível com a ideia de regime de mais fácil aplicação.

6. Aristóteles afasta a ideia de que se deve impor o regime mais comum. Subjacente a isto está que o regime mais comum (aquele que existe em maior número de comunidades políticas) pode não ser aplicável a uma dada comunidade concreta.

7. Uma ideia interessante é aquela que termina o texto de Aristóteles: «o político deve ser capaz de auxiliar os regimes já estabelecidos». A questão não seria então de fazer as comunidades políticas abandonar a sua tradição, mas respeitar as tradições políticas existentes, melhorando-as, mas no respeito pela sua multiplicidade. Esta ideia choca claramente com a perspectiva iluminista que é a dos modernos, seja na sua vertente liberal, seja na marxista. Para este tipo de pensamento o progresso implica uma transição de regimes.

8. Esta ideia não está completamente afastada em Aristóteles. Apesar da sua abordagem aparentemente conservadora (melhorar o regime existente, escolher o possível em vez do excelente), Aristóteles deixa em aberto a questão. Como faz isso? Fá-lo ao não eliminar a consideração do «melhor regime». A prudência manda respeitar a multiplicidade de tradições políticas, a facilidade de persuasão dos cidadãos e o que é possível. Mas não fica fora do debate «científico» a questão do melhor regime. A ideia do «melhor regime» constitui-se não como um programa a levar à prática (por exemplo, foi o que o leninismo tentou fazer com o marxismo, ou Bush no Iraque), mas num ideal regulador da acção política.

9. O pensamento político contemporâneo ganha alguma coisa com Aristóteles? Ganha! Em primeiro lugar a prudência. Esta prudência deverá evitar novas tentativas de evangelização democrática, ou a tentação de democratizar a China, ou sonhar com a eliminação da teocracia islâmica iraniana; em segundo, o reconhecimento da multiplicidade de regimes políticos existentes e que deverão conviver entre si, sendo mais importante melhorá-los do que transformá-los radicalmente; em terceiro, não afasta a questão do melhor regime. Esta continua em aberto e motivo de debate teórico. Este debate acabará por se repercutir nos diversos regimes que, eventualmente, por pressão dos próprios cidadãos, caso a sua cultura cívica e os seus recursos se alterem, se poderão transformar.

10. Curiosamente, Aristóteles, um pensador clássico, não fecha o horizonte da discussão. Pelo contrário, tem a capacidade de mostrar a complexidade do problema político e a multiplicidade das suas vertentes. Poder-se-ia dizer, se não fosse um anacronismo, que é um adversário do pensamento único.

O eixo do mundo


25/04/07

Cardílio - IV

Cardílio a resgatada casa tua
É pela tarde um lago devastado:
Definharam as ervas, e os poços
Secaram. Já não tens nome nem pátria.

Se teus pés nestas pedras resvalaram,
Estão agora exaustos, tão cansados
de séculos voláteis, de anos idos,
de sonhos não cumpridos. Morto estás!

Que te vale a fendida mancha negra
Aberta na pesada pulsação,
Silenciosa na noite pura e vã?

Os escravos partiram, e as mulheres
Não sabem o teu nome. Adormeceste…
E sonâmbulo a morte te encontrou.

Agrigento de Empédocles

Diz-se que Agrigento era chamada a grande porque tinha 80 000 habitantes. Foi por isso que, fazendo alusão à sua vida luxuosa, Empédocles disse: «os agrigentinos divertem-se como se devessem morrer amanhã, mas ornamentam as suas casas luxuosamente, como se devessem viver eternamente». [Diógenes Laércio, “Vidas, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres”]

Castanheiros em flor

Antes da flor do jacarandá vem a dos castanheiros, que, por um momento, se abre luminosa e povoa de cores, as mais frágeis, os passeios da avenida. O Almonda, surpreso, sustém a respiração, as águas petrificam-se, recolhem-se na sua própria essência, e antes de continuarem a cavalgada em direcção ao Tejo, deitam um último olhar ao esplendor que fulgura avenida fora. Por estes dias, há que percorrer a João Martins de Azevedo, quem lhe chamará assim?, de cabeça levantada. Depois virá o inclemente calor e a queda começará inexoravelmente, como em tudo na vida.

ESTE JORNAL NÃO FOI VISADO POR QUALQUER COMISSÃO DE CENSURA

24/04/07

Cardílio - III

Cavaleiro fortuito, o teu cavalo
Trémulo pela arriba cai. Para onde
Te levam os seus passos, se nas asas
Do vento ao fresco orvalho ele te prende?

A segura derrota por teu nome
Chama, no rude campo onde definham
Da parca vida as áridas florestas.
Não cantes, pois tua voz é sombra vã.

Sendas em teu cavalgar desenhadas,
Ruas ferozes vencidas de cansaço,
Pedras feridas sujas em tua mão.

Os deuses esqueceram-te já. Partes,
Mas o alado cavalo em teu caminho
Ao destino fortuito e cruel te entrega.

Onde é que estava na noite de 24 de Abril de 1974?

Se me perguntassem, saberia dizer. Estava no velho Cine-teatro Virgínia a ver um filme. Era, tanto quanto me recordo, uma 5.ª feira. Às quintas-feiras havia a chamada sessão de cinema de qualidade. Naquela noite, o filme, muito curiosamente um filme russo, era Djamilia, uma adpatação cinematográfica da obra-prima, segundo parece, com o mesmo nome, do escritor Tchinghiz Aitmov. Não me recordo do filme, exceptuando umas imagens de searas de trigo a ondular. Mas mesmo isso pode ser apenas uma memória construída a posteriori, aliás como muitas das nossas memórias. O próprio nome da realizadora, Irina Poplavskaia, não me diz rigorosamente nada.

Nunca mais tornei a ver o filme. Pensei, várias vezes, em comprar o livro, mas acabei sempre por o não fazer e jamais o li, embora não tenha qualquer razão para isso. Mas nunca esqueci que na última noite do regime de Marcello Caetano estive a ver, com um grupo de gente nova – nesses dias eu tinha 17 anos – então ligada ao Cine Clube e à oposição, um filme russo. Era uma espécie de anunciação. No outro dia, o regime tinha caído. Como? De podre! Não tinha ponta por onde se segurasse. Não pense o eventual leitor que Djamilia era um filme político, não era. Tanto quanto li, na pequena investigação que agora fiz, tratava-se de uma história de amor passada na Quirquízia, uma das repúblicas da então URSS.

Caminhos de pedra


23/04/07

Cardílio - II

Ruínas, ervas, noites deserdadas,
Sonhados sonhos, âncora que a morte
No tempo sempre arvora. Pedras vãs,
Ruas de palha ao tormento abandonadas.

No pó que agora tudo em si recolhe
Há vidros de sol e água, breves nuvens
De ardósia, ervas rasas, velhas lágrimas
Que teus olhos cansados derramaram.

Tudo se desvanece no olvidado
Mundo: razões distintas ou verdades
Falazes. Tudo é pedra, tudo é nada.

Só ficaram murmúrios dos teus gritos
Surpresos pelo sol da madrugada.
Ruínas sonhos são nunca sonhados.

La France, bien sûr...

Tornou-se um hábito da intelligentsia indígena dizer mal dos franceses. Não há cronista que não incense o mundo anglo-saxónico e não demonstre a pura fatuidade dos franceses, o ridículo das suas pretensões, a sua idiossincrasia chauvinista, o carácter totalitário que se esconde por detrás da democracia francesa, como se a Revolução de 1789 apenas tivesse produzido o Terror e nada mais de que o Terror.

Chegam a sugerir, de forma disfarçada, uma curiosa leitura histórica. Por um lado, a Revolução francesa com o seu cortejo de misérias, apóstolos sanguinários, revolucionários bestiais e ânsias ditatoriais. Por outro, as sociedades inglesa e americana, democracias puras onde nunca, mas por nunca ser, teria havido terror, nem revolta, nem revoluções. Tudo teria sido a criação de seres racionais que, ao tomar chá, trocaram umas ideias, muito civilizadamente, sobre a filosofia política de John Locke e decidiram contratualizar, logo ali, uma sociedade política, sem contaminação, que defenderia as liberdades e a propriedade. Por muito que a história mostre o contrário, os anglófilos, presos na fé que os sustenta, juram a pé juntos que os sistemas políticos anglo-saxónicos não são mais do que acordos de cavalheiros, uma emanação da gentlemanship, tão do agrado do Prof. Espada. É evidente que nada disto tem qualquer realidade histórica.

Toda essa gente deve estar muito decepcionada com o resultado das eleições francesas. Não tanto por M. Sarkozy e Mme. Royal irem disputar a segunda volta, mas pelo facto desse povo tão pouco democrático ter decidido ir às urnas em tal número que a percentagem daria para eleger dois presidentes americanos. Também não compreenderão, por certo, o que terá motivado os eleitores franceses a meter os extremos políticos na ordem. Seja como for, há uma coisa que me agrada, mesmo que eu não seja dado a filias, sejam francófonas ou anglófonas: é bom ter os franceses de volta preocupados com a sua situação política. É bom que alguém venha dizer que é preciso voltar a acreditar que os filhos poderão e deverão viver melhor do que os pais. Isto é desagradável para muitos anglófilos: por norma, estão apostados em justificar, muitas vezes com um estranho prazer, a proletarização das classes médias europeias. Talvez as eleições francesas nada tragam de novo, talvez… Mas que elas podem representar um momento de esperança, mesmo que seja apenas um momento, para o ideal de um Europa civilizada, isso é inegável. Vive la France!

Restos de Outono


22/04/07

Cardílio - I

A poeira os verdes campos cobre
E o rio entre salgueiros se despede
Das noites onde frágeis as mulheres
Ao cansaço do amor graves se entregam.

Os risos entre tílias, luz sonora
Que ilumina a furtiva solidão,
São barcos solitários que no rio,
Entre esquecidas mágoas, te despedem.

Tudo em teu horizonte já fenece
E no rio levedado abrem-se pássaros
De azul incendiados. Tempo breve,

Que em teu severo andar ruínas ergues,
Das pedras fazes cinzas, e dos dias
Nem a gasta lembrança já fria resta.

O fundo negro da razão

À mesa, à direita do Dr. K, senta-se um velho general que está quase sempre calado mas por vezes faz umas observações de abissal profundidade. Uma vez levantando os olhos do livro que tinha sempre aberto ao seu lado, disse que, pensando bem, entre a lógica do plano de batalha e a lógica das informações militares, e ele conhecia tão bem uma como outra, estende-se um vasto campo de eventualidades impenetráveis. Insignificâncias, mas que, escapando à nossa observação, são decisivas! Foi assim nas maiores batalhas da história mundial. Insignificâncias, mas que têm o peso dos 50 000 soldados e cavalos mortos em Waterloo. Afinal, é tudo uma questão de peso específico. Stendhal viu isto melhor do que qualquer estado-maior e nos seus tempos de velhice tratou de estudar o assunto, para não morrer na ignorância. No fundo, é uma ideia peregrina pensarmos que, com uma volta ao leme, com a vontade, podemos influenciar o curso das coisas, quando na verdade elas são determinadas por interacções de uma extrema complexidade. (W.G. Sebald, Vertigens. Impressões)

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Uma das crenças mais fundas da modernidade ocidental, uma espécie de fé de ateus crentes no progresso, é a possibilidade de penetrar naquilo a que o velho general chama “eventualidades impenetráveis” e, assim armados de conhecimento, podermos, pelo movimento da nossa vontade, individual ou colectiva, influenciar o curso das coisas. A surpresa, porém, está sempre ao virar da esquina. O curso do mundo ao depender dessas «interacções de extrema complexidade» acaba não apenas por frustrar os intentos da nossa vontade, por mais poderosa que ela seja, como por seguir uma via que ninguém previra e que, no mais das vezes, talvez ninguém desejasse.

Mas um cérebro mais potente, por exemplo uma espécie de fusão entre o cérebro humano e a máquina computacional, não terá capacidade de determinar a extrema complexidade das interacções e assim prever o curso do mundo? Esta é a ilusão que sustenta a crença na ciência e na técnica. Mas um cérebro desses, mais potente, ao fornecer um número sempre crescente de imperativos que conduzirão a vontade na acção, multiplica as próprias possibilidades e, dessa forma, em vez de fazer crescer a determinação dos acontecimentos acabará por multiplicar a indeterminação. Apesar da propaganda, se nós olharmos para o mundo hoje em dia, ao fim de 4 séculos de crescimento ininterrupto da ciência, o mundo está, para a espécie humana, muito mais indeterminado do que era no início da época moderna. Quanto maior é o poder da vontade humana fundada no conhecimento racional, singular ou colectiva, maior é a indeterminação em que a espécie vive, maior é a irracionalidade que a envolve.

Uma das experiências fundamentais da humanidade ocidental nos últimos séculos é o da natureza irracional da própria razão. São tantos os exemplos, que chega a parecer incompreensível que não se dê por eles. Observe-se a política. Observe-se como a razão planificadora, no nazismo, gerou a irracionalidade dos campos de concentração. Veja-se como a razão emancipadora, no comunismo, gerou sociedades asfixiantes e aniquiladoras das liberdades. Veja-se como, no mundo da economia, a necessidade racional de controlo está a tornar o trabalho destituído de sentido humano. Há um mistério na razão: a sua natureza irracional. Toda a razão é uma irrazão. É como se, deixada a si-mesma, a razão fosse impotente para travar a sua própria loucura. Os tempos modernos são a experiência do fundo negro da razão.

Manchas solares


20/04/07

Alberto Caeiro

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.

Cardílio

Com o poema de Alberto Caeiro termina uma séria de textos de poetas portugueses. A partir de domingo, iniciar-se-á a publicação de Cardílio, uma série de 24 poemas. Poder-se-á dizer que estes textos começaram a ser escritos ainda nos anos 70. Têm sofrido várias remodelações, acrescentos e supressões. Os que se irão aqui publicar apresentam, todos eles, a forma de soneto, com versos decassílabos heróicos e não rimados.

Música para o fim-de-semana

Como conceito a «contaminação». Nem música erudita, nem jazz, nem rock, nem, vanguarda, nem world, mas um pouco de tudo isso, como se fosse possível fundir múltiplas linguagens e, mesmo assim, produzir qualquer coisa audível.

Para começo um álbum de 1987. Hector Zazou e o seu “Reivax au Bongo”. Música erudita e música africana fundem-se na viagem panglossiana de Reivax por terras (?) da imaginária república africana de Bongo. Uma aspiração cândida, mas talvez Reivax seja um outro Candide, de um mundo sem fronteiras. Faz parte (n.º 2) da colecção «made to measure».

O segundo CD pertence ao «rocker», Fred Frith, um dos primeiros que, nesta área, começou a explorar as possibilidades de improvisão abertas, há muito, pelo jazz. O CD proposto, editado pela etiqueta Winter & Winter, junta Fred Frith e o Ensemble Moderne, para composições para guitarra e é composto por 2 peças (Traffic Continues, de cerca de 29 minutos e Traffic Continues II, peça com cerca de 35 minutos). O álbum foi gravado em 1998 e editado em 2000.

A lei da gravidade


19/04/07

Armando da Silva Carvalho - Novo Poema Sobre a Agricultura III

E entre as calendáricas
figuras
com ramos de videiras
autenticamente
murchas
ouvem-se os bichos
pulando na gordura
e as pobres mães num cacho
cortadas pela cintura
que os genitores apertam
formando um vinho
interno
na lagaragem muda
mais pesos mais vingança
mostosa substância
nos arrasta
e sufoca
ali estavam as vinhas
mordidas pelo vidro
as parras indecisas
no velho chão nervoso
ali fomos nós uvas.

Cartas de Iwo Jima

Antes de falar no filme, ou nos filmes, chamo a atenção para as sessões de cinema do Virgínia. Para as quartas-feiras há uma excelente programação de cinema, naquilo que julgo ser, sem certeza absoluta, uma parceria entre a Câmara Municipal e o Cine Clube de Torres Novas. Para além da qualidade da programação, há também o conforto e as condições acústicas de uma excelente sala. Ambas, programação e sala, merecem retribuição, isto é, a presença de espectadores. A minha começou ontem, para ver Cartas de Iwo Jima, de Clint Eastwood.

O filme deverá ser visto em paralelo, mais precisamente, a seguir à obra, também de Eastwood, As Bandeiras dos Nossos Pais. Ambos têm por pano de fundo a batalha, entre americanos e japoneses, pelo controlo de uma pequena e estratégica ilha nipónica, Iwo Jima, na II Guerra Mundial. Os filmes dão a ver os dois lados da batalha, mas ao mesmo tempo revelam as duas sociedades e os dois mundos que se confrontam, mundos com ethos (maneiras de ser e viver) bastante diferenciados.

Se no primeiro filme, o cinema de Eastwood nos mostra a vitória americana, a heroicidade daqueles que estão no inferno que é o campo de batalha, manifesta, por outro lado, a duplicidade e os jogos que o poder político nas sociedades democráticas, fundadas na opinião pública, impõe aos heróis, mesmo que esses heróis apenas o sejam para consumo dessa opinião pública. A fragilidade das sociedades democráticas, com a avidez e a venalidade da sua classe política, é exposta cruamente em As Bandeiras dos Nossos Pais. Não que haja desprezo pela heroicidade daqueles americanos que se batem duramente em Iwo Jima, pelo contrário. Eastwood, para além da crítica feroz que faz ao ethos americano, à sociedade civil e à sociedade política, mostra a nobreza e a coragem dos indivíduos que se bateram por aquele pedaço de terra perdido nas águas do mar. Apesar da guerra ser um movimento colectivo, Eastwood não deixa de sublinhar a importância dos indivíduos, dos indivíduos concretos que morrem e matam.

Em Cartas de Iwo Jima, o realizador mostra-nos a derrota japonesa e sublinha o ethos tradicional japonês. Aqueles homens estão ali para se baterem até à morte pelo sagrado solo do Japão e pelo seu imperador. Não há lugar para a publicidade, nem para campanhas de propaganda, nem para uma esfera pública democrática a ser convencida. Há a hierarquia, o código de honra militar, de natureza quase feudal, há um sentimento de que algo está acima de cada um e é por esse algo que aqueles homens se baterão e morrerão. Se no primeiro filme, a sociedade americana é claramente mostrada, no segundo, apenas, e de muito longe, se deixa entrever a sociedade japonesa, suspeitando-se da crueldade que nela poderia existir, do poder excessivo que a instituição militar poderia ter.

O que ressalta de ambos os filmes, apesar da diferença culturais em presença, são os valores do dever, da honra, da coragem, mas também da humanidade do trato (veja-se o comandante das tropas japonesas), a compreensão pelo destino dos homens quando são arrancados, pela violência da guerra, dos seus afazeres comuns. Na base de tudo isto, encontra-se o indivíduo. Só ele é corajoso ou cobarde, só ele cumpre ou não o dever, só ele morre ou sobrevive. Mas este indivíduo não é um puro átomo isolado. Ele inscreve-se em sistemas comunitários e éticos diferenciados, que a guerra afasta e torna adversos, mas, ao mesmo tempo e no confronto face a face, faz descobrir a pertença comum a uma mesma humanidade: aqueles soldados, japoneses ou americanos, têm mãe, e namorada, e esperanças de ter uma vida para além do campo de batalha.

Zen primaveril


18/04/07

Alexandre Herculano - A Cruz Mutilada (excerto)

Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério;
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó:

Porém quando mais te amo,
Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Antes de o Sol se pôr,

Na clareira da serra,
Que o arvoredo assombra,
Quando à luz que fenece
Se estira a tua sombra,

E o dia últimos raios
Com o luar mistura,
E o seu hino da tarde
O pinheiral murmura.

Tal como antigamente

Leio avidamente a obra de W. G. Sebald. Pergunto-me, muitas vezes, o que nos leva a preferir a obra de um escritor à de outro. A resposta não está na mestria da escrita, ou pelo menos não está aí a sua verdade essencial. Há escritores magistrais cuja obra pouco nos diz. Julgo, embora sem uma evidência a corroborar o juízo, que a preferência radica numa espécie de reconhecimento de “si-mesmo” nas páginas dessa obra.

Não se trata de uma identificação com o escritor. Sei muito pouco dos escritores de que gosto. Evito as biografias. De Sebald, por exemplo, tirando a sua nacionalidade e o facto de ter morrido de acidente, nada sei. E, no entanto, pressinto que aquela escrita fala de mim ou, melhor, fala de alguma coisa, indefinível e quase obscura, que me toca, como se me dissesse respeito. É como se entre a obra e o leitor existisse uma comunhão.

Peregrino por “Vertigens. Impressões”, o último livro de Sebald publicado em Portugal. Na página 40, de forma inopinada, surge o seguinte texto: “No regresso fomos dar à Albrechtstrasse e Olga não resistiu à tentação de entrar na escola onde tinha andado em criança. Numa das salas de aula, precisamente aquela onde se sentava no princípio dos anos 50, a mesma professora continuava a ensinar, quase trinta anos depois, exortava, com a mesma voz, as crianças para que continuassem a trabalhar e não conversassem, tal como antigamente.” Ao ler estas palavras senti um desconforto dentro de mim, desconforto esse motivado, descobri-o logo de seguida, por uma experiência semelhante vivida há alguns anos.

Talvez há uns 8 ou 9 anos, por altura das Festas do Espírito Santo, em Meia Via, paro o carro, por um qualquer motivo que não importa, perto da escola primária. Fiz aí a primeira e a segunda classes, antes de nos termos instalado em Torres Novas. Saio e olho o desalentado bairro que nasceu, como um penhor dos tempos democráticos, diante da escola, nuns terrenos antigamente colonizados por sobreiros, se não me engano, e onde se realizavam, na altura da Festa, picarias. Esforçava-me por reter, para além da visão ameaçadoramente suburbana, as imagens dessas árvores sacrificadas ao arbítrio habitacional. A memória era atravessada por vislumbres do passado. Invadia-me a imagem de aí ter havido, nesses longínquos anos em que frequentei a escola, um acampamento de ciganos e de eu ter levado, talvez numa daquelas caritativas iniciativas escolares que haveria na época, material escolar como prenda de Natal para alguma criança do acampamento. Neste andar absorto diante da escola, sinto o vento a bater-me no rosto. É aqui que sinto uma comoção. Fico estático, perplexo, preso ao chão, aspirando avidamente aquele ar. Um passado com mais de 30 anos chegava até mim através do vento que corria. Mais do que as árvores mortas, mais do que o estranho acampamento de ciganos visitado pelo Natal, era a forma do vento correr que me perturbava. Desenterrava uma experiência de que eu não suspeitava sequer a existência. A forma do vento correr diante daquela escola tinha sido, para mim, tão peculiar que nunca, na verdade, a esquecera verdadeiramente. Ela estava ali pronta para, na primeira oportunidade, me assaltar e me fazer regressar a um mundo que eu julgara perdido para sempre.

Quando Sebald diz, logo a seguir, “Olga, como mais tarde me contou, teve uma crise de choro. Pelo menos, quando saiu de novo para a Alberchtstrasse, onde eu a esperava, encontrava-se num estado de comoção como nunca lhe tinha visto”, diz algo que eu compreendo perfeitamente. Esse encontro com um passado insuspeitado, esse reconhecimento de um acontecimento constitutivo de “si-mesmo”, mas que se encontra soterrado, provoca uma comoção. Como a personagem romanesca, também eu, perante o vento que corria, me senti perturbado e inquieto por essa estranha visita do passado, dum passado que vinha sob a máscara tão pouco definida do vento que corre. Ainda hoje, passados anos, sinto uma estranha inquietação quando penso nessa experiência. Toma conta de mim uma volúpia feita de prazer e terror. Prazer do reconhecimento; terror de que entre o que sou hoje e o que fui nesse longínquo passado nada tenha existido, ou o que existiu apenas tivesse sido uma longa e prolongada mentira.

A professora de Olga ensinava, tal como antigamente. O vento corria diante dessa minha primeira escola, tal como antigamente. “Tal como antigamente”; talvez baste esta expressão para iluminar por que razão gosto tanto da obra de Sebald. Enganar-se-á quem pensar que este “tal como antigamente” é uma expressão de saudade. Nessa expressão, encerra-se todo o mistério do tempo e do ser no tempo.

Pia baptismal


17/04/07

Gil Nozes de Carvalho - Bule de Sol 2

Poisa num filamento do mundo, a escolha, suspensa,
da mão sobe, o minarete, a oração.
Quem vem de longe sabe.
O que se ergue na água é sublime quando
o corpo sai no pescoço dum grito
e pousa, folha húmida, na memória.

Do interesse em política

Fala-se muito de interesses em política. Por norma, associa-se a «interesse» o ganhar vantagens financeiras devido à função que se exerce. Mas essa é apenas um parcela diminuta do vasto continente dos «interesses» que se jogam na acção política. A produção da boa consciência, o engrandecimento do ego, corroboração da sua existência através do reconhecimento feito por «amigos» e «inimigos» políticos são outros tantos interesses que fundam a acção dos agentes políticos. Esta é a parcela a que os antigos chamavam glória. Do ponto de vista moral, são tão imorais quanto as vantagens financeiras, pois todos eles radicam, por muito que o neguem, no engrandecimento do ego próprio.

Relativamente à política, há três possibilidades. A primeira é a indiferença da massa. Aqui sofre-se a política como algo exterior. Na atitude passiva a política é ressentida como pura estranheza, como algo que cai sobre a pessoa e, de certa forma, a esmaga. Os elementos da massa apenas aspiram a libertar-se do peso da política.

A segunda possibilidade é a da participação activa do jogo político. Aqui a política é sentida como aquilo que lhe é próprio e a forma como o ego se realiza. É o lugar da paixão pura pelo poder, ou da luta por ele. O equívoco de Platão foi pensar que poderia tornar o exercício do poder como um lugar «desapaixonado» e «desinteressado», como um lugar puro de serviço à comunidade. Mas não há política sem paixão e esta é sempre um sintoma dum ego em busca de afirmação ou de confirmação.

A terceira possibilidade é a de olhar a política como espectador comprometido. Comprometido porque sabe que a política é estruturante da vida comunitária e não tem a fantasia de poder escapar aos seus efeitos; espectador porque não toma, activa e deliberadamente, parte nela. O importante, neste caso, é observar, sem qualquer ilusão, a comédia humana que se desenrola sob a proclamação das boas intenções. Só aqui é o lugar da não paixão. Este lugar é idêntico ao daquela pessoa que vai ver um jogo de futebol sem simpatizar com qualquer das equipas em confronto. Vai apenas ver.

No mundo de hoje, não fazem falta agentes políticos. Faltam, porém, espectadores. Corre-se o risco do jogo morrer por falta de quem o possa ver.

Ponto de fuga

16/04/07

Al Berto - Kandinsky escondido atrás da tela

muito antes de ter adoptado formas
rigorosamente geométricas (para fugir à anarquia)
pintei este arco negro ligando duas zonas
da mesma paisagem: ponte escura
por onde – tu que me olhas – podes passar
ao encontro da intensa chama das manhãs

e do outro lado do arco o vento e a árvore
se perdem na euforia das suas próprias cores
– escondido atrás da tela – vejo-te
cada vez mais próximo como se avançasses
pela desintegração do átomo ou pelo deslumbramento
dos lumes te acercasses de mim: o olhar envolto
na teia harmoniosa de colorida música.

O lado obscuro da liberdade

A chacina na Universidade de Virgínia Tech mostra-nos o lado mais obscuro dos EUA. Este caso, apesar de ser o mais brutal, é apenas um entre muitos outros. É como se existisse, dentro sociedade americana, uma pulsão ao mesmo tempo homicida e suicida. Um caso destes pode ocorrer em qualquer lugar do mundo, múltiplos casos tornam o problema uma espécie de epidemia social, mas não só. Tornam-se uma especificidade.

Se há sociedade onde o culto da liberdade é extraordinariamente forte é a americana. Não é por acaso que um dos seus símbolos é a estátua da liberdade. No entanto, este amor desmedido pela liberdade oculta a própria essência da liberdade. A abertura dos possíveis parece ter como contrapartida um fundo de sufocação social, mas também ontológica, que acaba por gerar este tipo de fenómenos. Thanatos, a pulsão da morte, inscreve-se assim na vida das comunidades, tomando múltiplos aspectos e formatos: o culto das armas, a disseminação da pena de morte, a violência urbana, uma política externa violentamente evangelizadora e, também, estes casos que se sucedem em universidades e escolas.

Ler este tipo de acontecimentos como um fenómeno de uma sociedade ultracapitalista é perder o essencial. O ultracapitalismo, a tendência evangelizadora da política externa e a violência social são inscrições de algo muitos mais profundo e que se esconde por detrás da liberdade, ou melhor, que faz parte da própria liberdade. Esse «algo» resiste ao próprio pensamento. Não é por acaso que Kant coloca a liberdade da vontade no domínio do incognoscível. É aí, naquilo que há de mais obscuro, de mais perigoso e de mais mortal, que se instala o que merece ser pensado.

Pensar é inscrever conceitos num território, como se eles fossem divisórias que na sua articulação constroem uma estrutura de sentido. A dificuldade, porém, reside na identificação do território que permita a inscrição e a articulação conceptuais. Pressente-se, em todos estes fenómenos, algo que sendo mudo nos fala, mas que nós não conseguimos, ao escutar, compreender. A liberdade ergue-se como uma parede de cristal: a sua máxima transparência funciona como ocultação suprema.

Talvez o primeiro passo seja o de perceber a existência desse território ignoto, impensado e, até hoje, impensável: o lado obscuro e abscôndito da liberdade, aquele que se oculta à luz da própria razão.

Caminhos

15/04/07

Luís de Camões

Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co’o tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.

Baleal, a sombra do mar

Talvez Raul Brandão tenha razão e o Baleal seja a mais bela praia portuguesa, talvez… Gosto do Baleal, não tanto no Verão, quem é que consegue gostar de uma praia no Verão?, mas quando há menos pessoas e se pode passear pelas areias sem compartilhar o espaço com demasiada gente. Sentir o mar, olhar as cores que tingem as águas, suportar o sopro do vento norte. Antigamente, parece que havia uma clara divisão classista entre frequentadores do Baleal norte e do Baleal sul. Talvez ainda seja assim, mas isso é lá mais para o tempo de férias. Agora, as praias pertencem às gentes do surf e àqueles que, como eu, escolhem o tempo frio para olhar o mar, pisar a areia, e deixar-se envolver pelos cheiros marinhos, pelo fragor das ondas sobre as rochas, pela luz que reverbera nas águas.

Quem não gostar de areia, pode dar uma volta pela ilha, melhor pela península. Apesar da colonização humana, apesar das casas e dos carros, o espaço ainda é visitável e permite contemplar, de múltiplos lugares, o mar, ouvir, uma vezes, o cicio, o sussurro das ondas e, outras, o bater trovejante da água na pedra dura e imóvel. Pode olhar as Berlengas, ao longe, fechar os olhos e sonhar com viagens marítimas, aventuras coloniais e terras ultramarinas. Depois, sonhe-se com baleias e grandes caçadas. Sentado numa esplanada, não se iluda se vir, ao longe, uma massa branca em movimento. Não, não é Moby Dick, a baleia branca, nem atrás virá o terrível capitão Ahab. São apenas nuvens, pedaços de mar a fugir das águas e a perderem-se na pureza azul do céu. Há dias que é possível ver, de relance, Posídon, o terrível sacudidor, deus indisposto e feroz que persegue os heróis. Mas, num tempo como o nosso, quem se preocupa com isso? Nem heróis há para terem tal preocupação, nem acreditamos nos deuses que estão perante o nosso olhar.

O sol está alto e chegou a hora de almoço. Sim, Peniche, ali mesmo ao lado, tem variegadas possibilidades. Mas tome o IP 6 e corte logo, nos primeiros metros, para a estrada que leva à Consolação. Quando chegar ao cruzamento para esta praia, siga em frente em direcção a S. Bernardino. Entrando no Lugar da Estrada, uma daquelas aldeias que cresceram ladeando uma estrada em linha recta, espere até encontrar, à sua direita, um restaurante com o estranho nome Faz as Pazes.

Que conflitos e guerras terão levado a tão estranho nome, não faço ideia. Seja como for, encha-se de um espírito pacífico e entre. A sala não é pretensiosa nem grande, mas acolhedora. Sob o trabalho de um casal, ele na cozinha e ela na sala, vai encontrar uma bela refeição, uma cozinha esmerada, onde se combina o tradicional com a singularidade de quem a produz, tudo num ambiente discreto e cheio de simpatia. Para entrada, o refogado de mexilhões ou o queijo de cabra salteado com azeite e alho. Experimentou-se a «raia cozida com molho de pitau», um molho da tradição local, feito à base de azeite, alho, vinagre e colorau. O molho dá vida à raia, ao mesmo tempo que lhe sublinha as qualidades, joga como uma espécie de contraponto dialéctico à brancura fistulada do peixe. Como será de imaginar, pela localização, há vários pratos de peixe. Depois, na carne, não perder o «miminho de boi com pimentas», onde um naco de excelente carne açoriana grelhada se combina com uma multiplicidade de pimentas, acompanhadas por batatas fritas às rodelas finas e uma salada, bem temperada. As pimentas não disfarçam a carne, têm, antes, o poder de ressaltar a sua qualidade. Entre as sobremesas, pode perder-se na «pêra em vinho tinto e frutos silvestres» ou, então, num «sorvete de maçã reineta com esses de Peniche». A carta de vinhos é sóbria, mas permite, já que estamos perto do mar, múltiplas navegações. Vários prémios e reconhecimento do Expresso, valha isso o que valer, atestam a qualidade do trabalho desenvolvido e recomendam a experiência. Experiência de que não se sai, pelo menos não saí das vezes que experimentei, arrependido. Para antecipação do prazer pode consultar o site http://www.faz-as-pazes.com/

Rugas

14/04/07

David Mourão-Ferreira - Fogo

A gôndola que fogo te penetra
que por dentro canais vai descobrindo

Até quando seremos os serenos
amantes que do fogo tudo aprendem

destroços que do fogo tudo esquecem

Títulos vãos e glórias frágeis

César morreu com cinquenta e seis anos, tendo sobrevivido apenas quatro anos a Pompeu. Esta dominação, este poder soberano que ele não deixou de perseguir através de mil perigos, e que obteve com tanta dor, apenas lhe acarretou um título vão e uma glória frágil, que atraíram o ódio dos seus concidadãos. [Plutarco, Vida de César, LXXV]

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Agora que estamos em tempo de títulos e de busca de glória, nada melhor do que meditar na frase de Plutarco. Apesar de não ter sido o caso de Júlio César, há muitos que na política entram como leões e acabam por sair como sendeiros. E por muito que muitos se imaginem tal, poucos são os que podem ser césares. A vida é o que é.

Afluentes de pedra


13/04/07

Vasco Graça Moura - Salmo 136

não são muitos, são muito poucos, os poetas
que inventam a poesia portuguesa
como radical abalo do mundo, ou metáfora
a estremecer que o refigura, ou como

crispação do destino e subversão,
no risco visceral da sua própria vida.
assim, e porque toda a liberdade reenvia
ao necessário exílio, eles atrevem-se

a atravessar sem rede o vão por sobre o abismo:
prendem-se a quanto é neles explosão, remorso,
erros, desequilíbrios, amores, visões, enganos,
nuvens de forma humana. pela palavra queimam

contradições passadas e presentes, peregrinam
em sarça que arde, enovelada, a fogo escuro,
iluminando a fronteira dúplice: os reflexos intermitentes
entre os vultos amalgamados de uma greda pobre

e uma sua imagem a lo divino feita;
não são muitos os que enfrentam o real,
retesando a percepção no meio dos salgueiros,
em desapego crepuscular dos instrumentos bíblicos:

flautas e cítaras sobre a terra tão áspera,
que tocam e rejeitam e rejeitam e tocam,
entre a decepção e o declive, no fio bambo
sobre os rios que vão por babilónia.

Utopia Cinética

O projecto da Modernidade funda-se, por conseguinte, — o que ainda nun­ca foi claramente enunciado — numa utopia cinética: todo o movimento do mundo deve passar a ser realização do plano que nós temos dele. Os nossos próprios movimentos vitais passam a ser, progressivamente, idênticos ao próprio movimento do mun­do; o processo mundial, no seu todo, coincide progressivamen­te com a nossa manifestação de vida; as coisas acontecem conforme se pensa, porque aquilo que acontece cada vez mais se realiza por nós o fazermos. Seria demasiado pouco dizermos que a Modernidade prometeu ser ela própria, doravante, a fazer a história humana. No seu núcleo ardente, ela não quer apenas fazer história, mas também Natureza. Enquanto este século du­ro se aproxima do seu fim, vai-se espalhando a noção de que a história a fazer era um pretexto. O tema decisivo dos tempos modernos é a Natureza que há a fazer.
[Peter Sloterdijk, A Mobilização Infinita. Para uma Crítica da Cinética Política]

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1. É dentro desta utopia cinética que deveremos compreender a retórica política dominante. Constantemente somos confrontados com um movimento que pretende mobilizar-nos para uma contínua reconstrução das instituições, funções, atitudes e até dos próprios gestos. Veja-se o que se passa nas instituições e nas empresas. A necessidade de inovação não é mais do que a narrativa legitimadora da mobilização infinita do homem até à reconstrução da sua natureza, ao homem novo, até que se possa dizer: Ecce Homo!

2. Observe-se, também aqui, como marxismo e liberalismo, socialismo e capitalismo se apresentam como as duas faces da mesma moeda. No marxismo, é a necessidade que empurra a mobilização militante até ao paroxismo; no liberalismo, é a liberdade que se realiza como movimento contínuo de diluição no futuro.

3. No mundo marxiano, o movimento, ao fundar-se na necessidade, tornou-se mais rígido e duro. A mobilização militante conduziu directamente à sobreposição da dimensão militar.

4. No mundo liberal, o movimento, ao fundar-se na liberdade, torna-se mais plástico e mais maleável, mas também mais dissolvente das instituições e modos de vida. Para não perecer imediatamente, necessita do contínuo apelo à inovação. A produção do novo está para o mundo liberal como a mobilização militar estava para as sociedades marxistas: o véu que cobre o puro vazio.
[JCM]

Participação

12/04/07

José Tolentino Mendonça - O Vento

Pelo secreto e espesso bosque da penumbra
que dolorosas viagens as indefesas figuras realizam
que terríveis segredos lhes revelam
pois se quedam assim emudecidas
e que brandura os líquenes adivinham
para crescer nelas e não em nós

Não te posso hoje dar nenhuma certeza
e se soprar o vento neste jardim de Villa Borghese
quem sabe talvez tudo voe

E destes nomes só um resíduo
uma réstia de alegria permaneça
a iluminar toda a vida

Habilitações e hierarquias

Tal «anarquia» tinha ainda uma origem importante na própria «revolução liberal» por que o país passara. Não havia hierarquias de género tradicionalista na classe política, à volta de gran­des aristocratas, como ainda acontecia na Inglaterra. Como reflectiu João Franco quando suge­riu a abolição do pariato hereditário, em Portugal «é-se geralmente avesso a tudo o que são «privilégios». Como bons liberais, os políticos portugueses só reconheciam o «mérito» individual somo critério diferenciador. Daí a importância que davam às habilitações e desempenhos acadé­micos. Os políticos provinham dos mesmos meios sociais e das mesmas escolas, e viviam todos em Lisboa, frequentando os mesmos lugares, ouvindo histórias e inconfidências uns dos outros. Conheciam-se demasiado bem para reconhecerem facilmente superioridade a um deles. Ressen­tiam o domínio uns dos outros, e tendiam a revoltar-se contra qualquer sinal de ascendência. O «predomínio no governo» de um deles era sempre experimentado pelos outros como tendo «alguma coisa de tirania». Não era por acaso que os chefes de partido designavam os seus part­idários como «amigos políticos», para atenuar qualquer efeito hierárquico. A «amizade» recobria indistintamente relações de igualdade ou de patrocínio, debaixo de um mesmo afecto recíproco e igualitário. [Rui Ramos, D. Carlos] [Fotografia de João Franco]
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Uma nova citação de Rui Ramos, do seu livro sobre D. Carlos. Começa-se a perceber que aquilo que vivemos tem muito pouco de original. O nosso Abril de 74 é analogável à «revolução liberal», veja-se a questão das «hierarquias» e dos «privilégios», nomeadamente a retórica do actual governo acerca dos presuntivos privilégios de certos sectores. Compare-se o culto das habilitações, assunto tão em voga nos dias que correm.

Entre colunas


11/04/07

Jorge Sena - Amátia

Timbórica, morfia, ó persefessa
meláina, andrófona, repitimbídia,
ó basilissa, ó scótia, masturlídia,
amata cíprea, calipígea, tressa

de jardinatas nigras, pasifessa,
luni-rosácea lambidando erídia,
erímea, erítia, erótia, erãnia, egídia,
eurínoma, ambológera, donlessa.

Ares, Hefáistos, Adonísio, tutos
alipigmaios atilícios, futos
da lívia damitada, organissanta,

agonimais se esgorem morituros,
necrotentavos de escancárias duros,
tantisqua abradimembra a teia canta.

Olhares excênticos

O falhanço total do marxismo [...] e o dramático desmembramento da União Soviética são apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser alternativa ao marxismo e a ideologia reinante do fim dahistória, o liberalismo será a peça seguinte do dominó que cairá.
[Takeshi Umehara]

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Nós, ocidentais, deixamo-nos envolver demasiado nas nossas querelas particulares como se fossem a única coisa existente à face da terra. Ainda hoje somos vítimas dessa cisão que constitui a modernidade: liberalismo e socialismo. O que compreendemos quando lemos as palavras de Umehara, ou quando o mundo islâmico rejeita os nossos valores?

A divisão entre liberalismo e marxismo ocultou uma outra, muito mais funda e estrutural: tradição e modernidade. A nós, ocidentais, a palavra tradição repugna-nos, mas aos outros?