30/04/09

De crise em crise...



A crise gripal veio juntar-se à crise económica e financeira que atinge o mundo. Ao medo do empobrecimento juntou-se o terror da morte. Estes acontecimentos são reveladores de algo que o nosso modo de vida civilizado tende a escamotear: a natureza intrinsecamente insegura e enigmática da vida. Por muito que as nossas construções intelectuais e a nossa acção tentem fazer para obviar a esse carácter estranho da existência num corpo dotado de vida, as situações de crise, ainda por cima se são globalizadas, vêm mostrar a desmesura das pretensões do homem moderno, do homem que tudo quer pôr em segurança, como se a vida pudesse ser resguarda por uma qualquer companhia seguradora.

Perante as pandemias gripal e a financeira que atingem agora a comunidade global dos homens, nada melhor do que olhar para a própria palavra crise e entender o que nela está a ser dito e pensado, desde a antiguidade clássica. A palavra grega κρίσις (krisis), palavra que deu origem ao nosso vocábulo, significa, para além de crise, "acção ou faculdade de separar, de discernir"; "luta, litígio, processo"; "decisão, juízo, sentença"; "resultado, desenlace". Como se percebe, o campo semântico é muito mais complexo do que aquilo que estamos habituados a pensar quando empregamos a palavra crise.

Sublinharia r a dimensão judicativa presente na ideia de crise. Todas as crises são uma espécie de litígio em forma processual, no qual deve interferir uma faculdade de julgar (discernir), que acabará por pronunciar uma sentença, um juízo, uma decisão. Por norma, nas crises vemos apenas a sua superfície, isto é, a perturbação que elas introduzem no decurso normal das coisas. Recusa-se, o hábito instalado, a ver mais do que isso e não percebe ou, de certa maneira, não quer perceber, que aquela crise é de facto um processo onde as nossas opções vitais e sociais, existenciais em suma, estão a ser julgadas. É evidente que na experiência helénica da κρίσις (krisis) ressoa toda uma ambiência metafísica, presente por exemplo no fragmento de Anaximandro, que submete os homens e até os deuses ao juízo da Moïra. Dito de outra maneira, todas as crises são um julgamento divino. Não por acaso, elas foram sempre e em todo o lado vistas como esse julgamento e a execução de uma sentença ditada pelo divino.

Esta visão metafísica, tão estranha ao nosso modo de pensar, não é outra coisa, porém, do que uma "divinização" das potências naturais, vitais e sociais que o homem não controla e que as sente separadas de si e opostas a si mesmo. Este reconhecimento tradicional é um escândalo para a consciência moderna. Nós hoje, graças ao papel da ciência, podemos explicar tudo. A verdade, no entanto, é que a humanidade, em cada grande crise, não deixa de sentir confusamente que potências que ela não controla se voltam contra ela. Se nas sociedade não modernas, os acontecimentos críticos poderiam ser sentidos com dor e até com um sentimento de injustiça, nelas não faltava, todavia, a clara noção de se estar perante um julgamento. Nós, homens modernos, sentimos a dor, a injustiça do estado crítico, mas não compreendemos sequer que estamos a ser julgados, e julgados pelas potências naturais, vitais e sociais que nos rodeiam e que já não são, por nós, percebidas enquanto potências, encadeados que estamos pelo clarão do nosso poder científico. Na máxima clareza que a ciência proporciona esconde-se uma zona de sombra, prelúdio das trevas mais intensas que a razão não domina. Mas talvez seja nessa zona de penumbra que o homem possa aceder àquilo que da crise poderá resultar. Pois toda a crise significa também um resultado que se alcança, um desenlace que supera o estado crítico e relança a existência noutro patamar.

27/04/09

A gripe suína

Andávamos todos preocupados com a gripe das aves. Esta, porém, tem teimado em manter-se numa situação estacionária. Mas para demonstrar que são falíveis os cálculos humanos, a natureza decidiu presentear a espécie com uma nova ameaça de pandemia, a gripe suína. De um dia para o outro, esta forma de gripe saiu do anonimato e causou dezenas de mortos no México e está a contaminar pessoas aqui e ali. A modernidade criou a ilusão da segurança. Pensamos que, usando o cálculo e a diligência, conseguimos eficazmente resguardar a humanidade das ameaças que a natureza traz consigo. Não conseguimos. E quando esquecemos a nossa frágil condição e a impotência estrutural que a constitui, quando não nos cansamos de exibir o nosso desmedido orgulho, a natureza lá encontra maneira de nos pôr no nosso devido lugar, o de animais dotados de um corpo mortal.

26/04/09

Kay Starr - The Wheel Of Fortune 1952

O limite da coisa


No discurso do 25 de Abril, o Presidente da República, perante os tempos difíceis que se vivem, apelou à concertação de esforços dos vários protagonistas da cena política. Este apelo inócuo não deixa de ser um poderoso revelador da realidade política nacional. Revela não só a impotência perante um destino sobre o qual não temos mão (a crise financeira internacional), mas também o esgotamento político a que se chegou. Se perante o inelutável nada se pode fazer para evitar que ele se manifeste, já a forma como se lida com ele e a forma como se pensa o país e se opera dentro dele depende da liberdade dos protagonistas. Mas a liberdade tem um peso tão grande como o destino fáctico. O peso de mostrar aquilo que se vale. Ora os protagonistas que têm animado a cena política desde há muito valem tendencialmente nada. Não compreendo como é que uma soma de nulidades pode dar mais do que uma nulidade. Talvez precisássemos de uma bela crise política para arejar a casa. Mas também é verdade que a substituição de umas quantas nulidades que nos dirigem ou pretendem vir a fazê-lo não significa que os hipotéticos substitutos fossem menos nulos. Esta sim é a nossa mais verdadeira e autêntica crise.

25/04/09

Händel - Messiah "But who may abide", Emma Kirkby

O largo dr. Salazar


Se hoje houve homenagem grande ao 25 de Abril e à democracia portuguesa, ela foi involuntária e de onde menos se esperava. Como quase todos sabemos, o dr. Salazar era uma pessoa honesta e amiga duma concepção de Portugal quase ao nível da Idade Média. Detestava a democracia, não gostava da vida citadina, sentia-se particularmente indisposto com a liberdade, procurava por todos os meios que as pessoas não tivessem ideias e, se por um acaso malévolo do destino as tivessem, que as não discutissem. No dia que se comemora a transição à democracia, um presidente de câmara, falho de grandes ideias, decidiu inaugurar, na sede do concelho onde o nosso pequeno ditador nasceu, um largo com o nome da personagem. Não sei o que iria na cabeça daquelas pessoas. Mas terão elas percebido que com aquele gesto prestavam a maior das homenagens ao regime nascido a 25 de Abril, ao mesmo tempo que tornavam evidente a peqenez da estatura moral do homem que pastoreou Portugal durante décadas? Se um descendente do ditador ainda nos governasse no espírito do seu antepassado, seria possível inaugurar um largo dr. Álvaro Cunhal, ou dr. Mário Soares, ou até dr. Sá Carneiro? Todos sabemos a resposta. Tenho pena daqueles devotos do dr. Salazar, incluindo o torrejano das lápides, pela homenagem involuntária que prestaram ao 25 de Abril e à vida democrática.

História narrativa



Em consequência da Segunda Guerra Mundial, a perspectiva que a Europa oferecia era de miséria e desolação. As fotografias e os documentários da época mostram torrentes deploráveis de civis desamparados, viajando em carroças através de paisagens bombardeadas, por cidades devastadas e campos áridos. Crianças órfãs vagueiam desoladas à frente de grupos de mulheres exaustas, vasculhando destroços de casas em ruínas. Deportados com as cabeças rapadas e internados em campos de concentração, vestindo pijamas às riscas, olham apaticamente para a câmara, esfomeados e doentes. Até mesmo os eléctricos, seguindo irregularmente ao longo das linhas danificadas, movidos por uma corrente eléctrica intermitente, parecem traumatizados pelos rebentamentos das granadas. Tudo e todos - com a notável excepção das bem alimentadas forças de ocupação aliadas - parecem gastos, sem recursos, exaustos.

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Este é o primeiro parágrafo do livro Capítulo I, Legado de Guerra, do livro Pós-Guerra - História da Europa desde 1945 (Ed. 70). Um belíssimo começo a fazer jus ao título da colecção, "História Narrativa". Talvez as análises marxianas e estruturais tenham sentido, mas a História para falar aos homens, para falar à dimensão histórica dos homens, não pode perder a sua natureza narrativa. Dizer a história dos homens é modelar o tempo, e este só se deixa aperceber através das intrigas onde se manifestou. Um livro cujo primeiro capítulo começa assim, não dá vontade de pôr de lado.

Um momento do calendário litúrgico

Saí há pouco. Fui comprar os jornais e à farmácia. Encontro alguém, conhecido há muitos anos, dos tempos do PREC. Como eu levava a Vera (a minha neta) comigo ficamos a trocar umas generalidades de ocasião. Quando nos despedimos, essa pessoa diz: Bom 25 de Abril! Apesar da minha perplexidade, respondi: Bom 25 de Abril!

Por que razão fiquei perplexo? Nunca me tinha ocorrido que se pudesse desejar um bom 25 de Abril a alguém. Nunca o tinha feito. O 25 de Abril é uma data cívica e inscreve-se no calendário das comemorações públicas e políticas. Apesar da sua importância, ele tem a ver com a nossa pessoa exterior. No fundo, é um acontecimento superficial, como os acontecimentos histórico-políticos o são. Quando cheguei a casa, fiquei a pensar se os franceses se desejam mutuamente um bom 14 de Julho, ou os americanos, um bom 4 de Julho. É possível que isso aconteça, mas...

Entendo que se deseje um bom Natal ou uma boa Páscoa. São festas religiosas e, fundadas ou não numa ilusão metafísica, elas estão relacionadas com aquilo que há de mais fundo no ser humano. Estão, pelo menos, ao nível da festa de aniversário. Mas, um bom 25 de Abril, um bom 5 de Outubro, um bom 1.º de Dezembro, farão sentido? Esta minha perplexidade, porém, não deixa de ter um limite. No fundo, os grandes acontecimentos políticos têm todos eles uma dimensão religiosa, são uma espécie de consumação de uma vontade divina, que transforma mesmo os ateus mais renitentes em crentes dogmáticos. Talvez estas datas façam parte de um calendário litúrgico oculto e sejam emanação de estranhos poderes metafísicos.

O fantasma do acontecer



Cumpre-se mais um ano do 25 de Abril. O curioso para mim, que vivi intensamente a data e os tempos posteriores, é as metamorfoses da consciência do acontecimento. Nem nós nem a história do país nos mantivemos estáticos, e ao longo dos anos, a percepção do acontecimento foi-se alterando em conformidade com a nossa própria evolução e a evolução do país. Isto é inevitável e mesmo nas abordagens históricas de cariz mais científico, será muito difícil ao historiador, por mais precauções epistemológicas que use, fugir à sua consciência e à circunstância em que vive. Veja-se, por exemplo, o artigo de Vasco Pulido Valente, no Público de hoje (sem link).

De certa maneira, o 25 de Abril não existe. Nisso, partilha o destino de todos os acontecimentos históricos: dissolver-se no momento em que se tornam factos. A facticidade é morte e petrificação. Um acontecimento acontece e nesse acontecer desaparece. Resta a memória dos indivíduos e da colectividade. Mas a memória não é a coisa mesma. Não passa de uma imagem fantasmática daquilo que já não é mais do que um fantasma. Nessas memórias fantasmáticas, que habitam a consciência dos indivíduos, imiscuem-se sempre os seus interesses próprios (interesses pessoais, políticos, sociais, económicos, etc.), que fornecem uma linha que permite transformar essas imagens fantasmáticas em narrativas acomodadas a esses interesses. E que não haja ilusões: não há ninguém que não tenha interesses e que seja portador da narrativa verdadeira sobre o fantasma de um acontecimento.

Se estou profundamente de acordo com o diagnóstico que Vasco Pulido Valente sobre o pós-25 de Abril (acordo contra o eu que eu era naquela altura), se para mim, talvez por outros motivos, a data não é dia de festa, não deixa de ser um dia de alegria e de alívio. De certa maneira, gostamos sempre de reencontrar na memória esses momentos que manifestavam a nossa mais pura inocência. Ainda mais, se nós julgamos que essa nossa inocência dos 17 anos coincidia também com a inocência geral de um povo com 850 anos de história.

24/04/09

Da nossa meritocracia

Imagem retirada do Mentes Brilhantes

A propósito da passagem de mais um ano do 25 de Abril, a SIC apresentou ontem uma reportagem onde questionava, sobre as virtudes e os problemas da nossa democracia, alguns estrangeiros residentes em Portugal. Duas respostas prenderam a minha atenção. Uma senhora inglesa, cujo nome não retive, dizia que o principal problema de Portugal residia na inexistência de um ethos meritocrático. Ao contrário de Inglaterra, ter mérito em Portugal não chega, ou não é condição, para desempenhar determinados cargos mais elevados, contrariamente ao que se passa no Reino Unido. Por outro lado, o escritor norte-americano Richard Zimmler, residente no Porto, dizia que em Portugal havia mais liberdade do que nos EUA para fazer certas coisas: conduzir a 180 km/h, beber três whiskies e pegar no carro, ou copiar nos exames, coisa que o atormentava particularmente.

A senhora inglesa, talvez para ser simpática para connosco, emitiu a ideia de que estaríamos a caminho da meritocracia; seria uma questão de tempo. Claramente, a senhora não entende o povo que somos. Enquanto a batota e a trapaça for tão ampla como hoje, na escola ou na vida social, não se caminhará para aquilo que ela chama meritocracia. Por outro lado, Portugal não é um país desprovido de ethos meritocrático. Inconscientemente, mas muitas vezes de forma consciente, os portugueses valorizam o mérito do trapaceiro, do batoteiro, do que se safa aproveitando os brandos costumes, explorando as obscuridades na lei, daquele que, sem grandes talentos, tem conhecimentos certos ou fez um percurso, cheio de truques e alçapões, numa das juventudes partidárias que interessa. Esse é o mérito que reconhecemos e, de facto, invejamos.

Até aos 18 anos...


A frequência obrigatória da escola vai agora até aos 18 anos. Na Europa, com a excepção da Hungria e da Bélgica, também até aos 18 anos, todos os outros países têm os 16 anos como limite de obrigatoriedade. A nomenclatura educacional do regime aplaude. Os sindicatos, para além dos inevitáveis mas, são a favor e os representantes dos pais são a favor, inevitavelmente sem mas... Tirando os alunos, e estes pelos motivos de que se suspeita, ninguém se interroga verdadeiramente sobre a bondade da medida. Será bondosa a medida, num país que ainda não conseguiu fazer cumprir a escolaridade básica obrigatória? Será bondosa a medida, fundamentalmente na relação do indivíduo com a sua liberdade? Aos dezasseis anos, dever-se-á ter a liberdade de optar por seguir a escola ou não, dever-se-á ter a liberdade de arcar com o peso das escolhas que se faz. Será bondosa a medida, relativamente ao que vão ser as escolas secundárias com gente que as não quer frequentar? Ah, sim. A ministra conta com os professores para alterarem o mundo e a realizarem os seus devaneios. Uma das coisas que me tornou o Partido Socialista absolutamente odioso é a sua tentação a engenharia social. De um partido da liberdade, passou a ser um partido que quer impor pela coacção da lei o pequeno mundo que habita na cabeça dos seus dirigentes e dos governantes que escolheu. Por muito que se teça loas ao progressismo da medida, ela apenas faz parte de um conjunto mais amplo que tem por finalidade travestir a realidade e evitar as políticas que poderiam efectivamente contribuir para a melhoria do ensino e da instrução dos portugueses.

Jornal Torrejano, 24 de Abril de 2009

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22/04/09

Tempos difíceis


O Banco de Portugal é sempre generoso. Há dias, depois de toda a gente perceber que a economia portuguesa se ia contrair fortemente, lá veio prever um recuo de 3,5%. Mas o FMI é menos generoso e os seus números são sensivelmente diferentes: 4,1% de queda do PIB e uma taxa de desemprego na ordem dos 11%. O primeiro-ministro, arrancado ao sonho que o sonambulismo do país lhe permitiu, veio dizer que temos de nos preparar para tempos muito difíceis em 2009. Preparar? Mas 1/3 de 2009 já passou. Daqui a "uns" dias é final de ano e uma nova era terá a sua aurora em Janeiro de 2010. A não ser que os tempos difíceis signifiquem que os portugueses, mais uma vez atacados de sonambulismo, se lembrem de dar uma nova maioria absoluta ao engenheiro Sócrates. Sim, isso seriam quatro anos de tempos particularmente difíceis, para os quais nem todo o 2009 chegaria como preparação.

21/04/09

Aula assistida



Ontem tive a minha primeira aula assistida. Sim, eu requisitei aulas assistidas, para além de ter entregue os objectivos. Isto, apesar de discordar total e frontalmente deste tipo de avaliação de professores, e esperar que ele seja substituído por um mais consentâneo com os interesses dos alunos. Este modelo visa, em última análise, consagrar um tipo de escola cuja finalidade é evitar que os alunos aprendam.

O curioso da minha experiência é a profunda desadequação da lei e da teoria subjacente à lei relativamente ao tipo de aula que eu faço. A aula foi de Filosofia do 12.º ano, aula centrada no capítulo VIII da Origem da Tragédia. Os meus alunos são bons e empenhados, desejosos de aprender, desejosos que se lhe abram caminhos. No fundo, é esse o papel da Filosofia. Mas toda a lógica da avaliação de professores parece centrar-se no tipo de relação professor-aluno que existe na educação pré-escolar e no primeiro ciclo do ensino básico. Muito daquilo que o Ministério acha relevante acontecer numa sala de aula, é perfeitamente irrelevante no 12.º ano, quando se trata com alunos pré-universitários. Aliás, deveria ser irrelevante já mesmo no 10.º ano.

A principal conclusão da experiência centra-se na necessidade de substituir a concepção de avaliação de professores e, antes de tudo o mais, substituir a concepção de escola que, como uma praga infernal, tombou sobre o sistema educativo português.

17/04/09

Do excesso de matemática



O Zé Ricardo escreveu um post, Matemania, onde, com razão, verberava a excessiva importância dada à Matemática no currículo escolar nacional. O problema não será apenas português, mas cá ele afecta os resultados escolares e impede muitos alunos de seguirem cursos e carreiras onde a Matemática tem um peso irrelevante. A dado momento é feita, mais uma vez com razão, uma comparação com a Teologia.

Descartes, também ele um matemático, é considerado o pai da modernidade, devido à sua filosofia. Há duas características dessa filosofia que se tornaram o programa central dessa mesma modernidade: a reflexividade (chego a uma verdade indubitável através de um processo de reflexão) e a matematização do real (a ideia de uma mathesis universalis). Estas ideias, mesmo depois do pensamento de Descartes ter declinado, se isso acontece com o pensamento dos grandes filósofos, foram-se tornando dominantes e o desenvolvimento da modernidade não tem sido outra coisa senão a invasão progressiva e a colonização das múltiplas esferas da vida por essas ideias.

A escola é um exemplo muito interessante. Não só o currículo das múltiplas áreas foi invadido pela matemática, como a própria praxis docente foi invadida pela reflexividade. Assim como o cerne do currículo é a matemática, o cerne da praxis de professor é a reflexão sobre a sua prática, através daquilo que se denomina auto-avaliação. Os processos de avaliação de professores, de avaliação de escolas, etc. são o desenvolvimento da ideia cartesiana de reflexividade, bem como a preponderância da matemática é o desenvolvimento da ideia de mathesis universalis, de uma matemática universal que permite submeter toda a realidade ao cálculo. Não por acaso, os processos de avaliação de escolas, de professores, mas também de empresas, de funcionários, etc., combinam a reflexividade, essa espécie de análise crítica do seu desempenho, com o cálculo matemático desse desempenho. Uma coisa requer a outra, pois elas emergiram juntas no momento inaugural da época moderna, em cuja luz ainda vivemos.

Quem pensa efectivamente o real pode perceber que a matemática não é precisa em todos os currículos, que a sua importância para a vida dos homens está sobreavaliada. Pode também dizer que a avaliação das funções e das instituições está longe de garantir aquilo que a ideologia dominante espera delas. Mas pensar é uma coisa estranha à vida quotidiana, mesmo de pessoas instruídas e que tomam decisões. Pensar implica pôr em causa os quadros mentais que servem para interpretar a realidade numa certa época histórica. São esses quadros mentais que iluminam o raciocínio e a acção dos homens.

A matemática e a "mania" das avaliações que agora pulula por todo o lado não são bem modas, no sentido usual do termo. Fazem parte de um projecto que se tem vindo a desenvolver há várias séculos. Mais, matemática e reflexividade-avaliadora são os fundamentos desse projecto. É esse projecto que ilumina, mesmo que os homens não tenham consciência disso, toda a vida, e que conduz o raciocinar, o deliberar, o decidir e o agir dos homens. É por esse motivo que o post do Zé Ricardo pode parecer estranho, como pode parecer estranho a afirmação de que a avaliação de professores ou de escolas não contribuirá para ter melhor professores ou melhores escolas. Estas afirmações, mesmo se verdadeiras, não são entendidas, pois estão em contradição com aquilo que, de forma mais clara ou mais obscura, dirige os homens nos tempos que são os nossos.

Interessante é, ainda, analogia com a Teologia. Esta era o fundamento e a luz do projecto medieval. A Idade Média não foi outra coisa senão o desenvolvimento de um projecto teológico inscrito no seu início, e que teve em Agostinho de Hipona o seu grande nome. Curiosamente, quando o desenvolvimento da Teologia, na primeira e segunda escolásticas, atinge o auge é quando a Idade Média começa a morrer. Não vivemos nós o tempo em que a matematização do real e a reflexividade colonizam toda a vida? Não será esta exuberância o sinal da sua morte próxima?

Da necessidade do juiz


Além disso, também não podemos conceber que a cada cidadão seja lícito interpretar os decretos ou direitos da cidade. Porque se tal fosse lícito a cada um, ele seria por isso mesmo juiz de si próprio, na medida em que cada um poderia, sem nenhuma dificuldade, desculpar ou doirar os seus actos com uma aparência de direito e, consequentemente, instituiria a vida de acordo com o seu engenho, o que é absurdo. [Espinosa, Tratado Político, cap. III, 4]

Jornal Torrejano, 17 de Abril de 2009


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16/04/09

Somewhere Over The Rainbow - Judy Garland

Para a leitora Maria Correia.

Por falar em crise moral

Naada melhor do que voltar a escutar este já "velho" vídeo: Mário Crespo entrevista Medina Carreira.

John Coltrane - My Favorite Things - 1961

Outro sintoma


As palavras de João Palma, novo presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, são eluciditavas do clima que se vive na Justiça em Portugal. Independentemente das razões que assistam ao magistrado, o cidadão comum, a cada dia que passa, cimenta a convicção de que a lei não só protege os mais poderosos como é feita propositadamente para isso. A crise económica tem vindo a tapar uma crise moral muito mais profunda, crise moral esta que tem os seus expoente nas áreas da Educação e, fundamentalmente, na Justiça, crise esta que ameaça minar a confiança dos cidadãos não apenas no actual regime, mas na própria democracia.

15/04/09

Jeff Beck - Somewhere Over the Rainbow

Não sei que estranhas coisas me passam pela cabeça para colocar no blogue vídeo destes.

A cegueira da nossa Justiça


Em Portugal, a cegueira da justiça não significa a sua independência. Significa apenas que a justiça é cega para a situação social daqueles que a ela recorrem. Veja-se o caso da queda da ponte de Entre-os-Rios. Morreram 59 pessoas, os familiares pedem justiça. São acusados umas figuras menores que o tribunal sensatamente absolve. Agora, os familiares das vítimas têm meio milhão de euros a pagar em custas judiciais. Moral da história: recorre à justiça apenas se fores rico, muito rico. A nossa justiça é cega para uns e vê bem de mais para outros. Mas a questão não está nos tribunais, mas naqueles que, em nome do povo, fazem as leis.

14/04/09

Händel - Aleluia

Nos 250 anos da morte de Händel.

Jennie Tourel - O sleep why dost thou leave me (Haendel)

A crise e a oportunidade


Ana Paula Vitorino, obscura secretária de Estado dos Transportes, com a finalidade de atrair os empresários brasileiros a Portugal, afirmou, numa feira internacional de logística, coisas como estas: «o Portugal de há 10 anos não existe mais»; «o Governo português está a transformar a crise numa oportunidade para dar um salto em frente para um patamar de maior competitividade»; «Temos neste momento um Portugal moderno e desburocratizado».

Sempre que leio coisas como estas, pergunto-me se existe alguém que se deixe convencer por estes lugares comuns. É evidente que o Portugal de há 10 anos não existe mais, como o de há cinco ou o de há três. Depois desta banalidade, alguém acreditará que por cá o governo está a transformar a crise numa oportunidade? Toda a gente sabe que essas coisas se lêem nos cursos e cursilhos de economia e de gestão. Transformar crises em oportunidades é um belo chavão, mas fazê-lo mesmo, acontece apenas nos casos excepcionais e estes são a excepção e não a regra. Tomara Portugal não ver desaparecer parte substancial da sua economia, quanto mais aproveitar a crise para se afirmar como país de economicamente de excepção e competitivo por excelência. Onde estão as evidências empíricas dessa transformação é coisa que nós, pobres portugueses, não sabemos e a senhora secretária de Estado esqueceu-se de informar. A não ser que as oportunidades sejam a desburocratização do país. Mas basta visitar uma escola, um hospital, uma instituição pública para perceber que a desburocratização só existe na imaginação fértil da gente do governo. Já estamos todos a ver os empresários brasileiros a tomar o avião para Portugal, para assim aproveitarem rapidamente a excepção que este paraíso tão ditoso, devido ao governo de tais filhos, é.
Adenda: quando escrevi o post, ainda não tinha lido isto. Parece que o país que está a transformar a crise numa oportunidade vai ver a sua economia recuar 3,5%, nas previsões sempre amigas do Banco de Portugal.

Quatro máximas de Thomas Merton


Esperar é arriscar ser decepcionado. Decidam-se a correr esse risco.

Um escritor de tal modo prudente que nunca escreve nada de criticável, nunca escreverá nada de lisível. Se desejam ajudar os outros, decidam-se a escrever coisas que certos condenarão.

Se não sabem duvidar, não podem ser homens de fé. Não podem ser homens de Deus se não são capazes de contestar o valor de um preconceito, seja um preconceito religioso. A fé não é uma aceitação cega e sem reserva, um juízo de facto. É uma decisão, um juízo aceite deliberadamente e inteiramente, à luz de uma verdade que não pode ser provada, e não a simples aceitação de uma decisão tomada por outrem.

O poeta entra em si mesmo para criar. O contemplativo entra em Deus para ser criado. [Thomas Merton, Semences de Contemplation]

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Estes pequenos textos interessam-me por dois motivos. Por um lado, pela fina intuição do acto literário que este monge trapista possuía. Em Semences de Contemplation (New Seeds of Contemplation, no original) há um conjunto relativamente largo de reflexões sobre o acto poético, a criatividade e a radical singularidade que deve ter o poeta, a qual é posta em paralelo com a radical singularidade que deve possuir o monge. Por outro, os textos de Merton - que leio há longos anos - abrem perspectivas de diálogo com o mundo moderno que não se encontram me muitos textos e tomadas de posição da Igreja Católica. Quando Merton diz que quem não sabe duvidar não pode ser um homem de fé, abre o caminho para o diálogo com a tradição da modernidade inaugurada por diferentes formas de cepticismo. Mas, fundamentalmente, abre as portas à conversação com um mundo em que a indiferença se traveste de dúvida. O que Merton mostra é que o cristianismo católico tem recursos suficientes para falar com o mundo actual, mesmo nas sociedades pós-modernas e hedonistas como são as nossas. Falta-lhe, porventura, a inteligência ou a vontade.

13/04/09

Pensar e falar

Com efeito, toda a degradação individual ou nacional é imediatamente anunciada por uma degradação rigorosamente proporcional na linguagem. Como poderia o homem perder uma ideia ou apenas a rectidão de uma ideia sem perder a palavra ou a justeza da palavra que a exprime? E, ao contrário, poderia ele pensar mais ou melhor sem o manifestar de imediato pela sua linguagem? [Joseph de Maistre, Les Soirées de Saint-Petersbourg. Deuxième entretien]
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A precisão da linguagem é a outra face da precisão do pensamento e não há pensamento rigoroso sem linguagem rigorosa. Quando a linguagem das novas gerações, e das mais velhas também, atinge o grau de degradação em que hoje se encontra, não é apenas a faculdade de falar que se encontra diminuída. É a faculdade de pensar, o entendimento, que perde os seus instrumentos e se degrada. A permissividade com que se trata a língua é o outro lado do desprezo social que se tem pelo acto de pensar. Mas é este acto de pensar que permite ao homem compreender o mundo, os seus semelhantes e a si mesmo. Mais: é pelo acto de pensar que afirma a sua diferença específica com os animais não racionais. A degradação da linguagem não é apenas uma degradação da nossa capacidade de comunicar ou exprimir o que se passa em nós, é uma degradação da nossa natureza, uma diminuição da nossa humanidade. Estudar gramática, aumentar o léxico, apreender a sua dimensão semântica, não são exercícios pueris, mas formas de nos tornarmos humanos.

12/04/09

Morton Feldman - Music: For Samuel Beckett - 1987

L'Aquila e o mal


O que se esconde por detrás desta desoladora foto da Reuters? Não é apenas o número de mortos ou a dor dos vivos, nem tão pouco o poder das forças naturais. Por detrás desta foto oculta-se o mistério do mal. Não me estou a referir a nenhum mal metafísico, a nenhum castigo divino. Estou a referir-me ao poder, ao poder humano. A esse poder que não quis escutar os avisos de quem estudava o fenómeno sísmico e a esse mesmo poder que é incapaz de fiscalizar e de punir aqueles que constroem contra as regras que esse mesmo poder impõe. O poder é o lugar do mal absoluto e esse mal tanto pode provir da acção como da omissão. O problema é que esse mal, em certos lugares da terra, se tornou tão banal que ninguém o percebe como um mal absoluto, ou mesmo como um mal. Mas a foto da Reuters, apesar das flores, é uma prova da sua existência.

Vida de Bo


Finalmente conseguimos infiltrar um agente nosso na Casa Branca. Graças aos bons serviços do senador do Massachusetts, Edward Kennedy (cf. Público), o agente secreto português, um cão de água denominado Bo (sigla secreta de Bola - o jornal mais lido pelos portugueses, presuma-se) foi conviver com a família Obama. A classe política portuguesa está orgulhosa do facto, embora não se refira a ele por motivos óbvios. Já bastou o escândalo das fotos públicas dos nossos agentes secretos. Sobre a missão confiada ao agente há várias versões controversas. As fontes mais seguras afirmam, porém, que o trabalho de Bo se destina a gravar e a transmitir para Portugal os ensaios que Obama faz em casa dos seus discursos. A finalidade é retirar slogans que se adaptem a Portugal e apresentá-los antecipadamente como criação nossa. As mesmas fontes garantiram, todavia, que não se pretende copiar as ideias que preenchem a retórica obamiana. Afirmaram que em Portugal as ideias não têm mercado, só os slogans nos interessam. Este pequeno e infeliz blogue partilha o agrado geral da nação perante o destino de Bo e anseia ver os primeiros frutos do seu trabalho já nas próximas eleições europeias. Com Bo na Casa Branca é o V Império que se torna realidade.

11/04/09

Corín Tellado

Ao passar pelo Público on-line, tive uma visitação do passado, ainda por cima uma visitação que veio mostrar a minha ignorância sobre um assunto que tinha uma substancial importância no tempo em que as coisas ainda tinham importância. O Público informou-me, então, da morte da escritora espanhola Corín Tellado. Lembro-me perfeitamente das revistas de fotonovelas com esse nome. Faziam parte do mundo feminino, talvez de certas classes sociais menos cultas, e eram lidas, in illo tempore, avidamente. Não sei se alguma vez toquei, estou a referir-me mesmo ao gesto físico de tocar, numa revista dessas, mas via-as pelas bancas de jornais e nas mãos de muitas raparigas e, claro está, nas mãos das sopeiras, classe social que a revolução dos cravos e a entrada para a CEE veio abolir quase por completo, tendo alterado o nome dos quadros remanescentes, digamos assim. Este era o acervo de informação que eu tinha. Faltava-me o essencial: Corín Tellado era mesmo uma escritora, o nome de uma pessoa que fazia, e muito bem, a vida a partir daquelas novelas. Consta que é a escritora de língua castelhana mais vendida, logo a seguir a Cervantes. Foi muito premiada e agraciada em Espanha e isso deve ter sido muito justo. No fundo, consolou milhões e milhões de corações. Hoje, que estou mais para velho do que para novo, vejo com outra compreensão as coisas. Aquilo que era puro lixo há 30 anos, percebo-o agora como a expressão da necessidade de consolo que todos os seres humanos têm. E, além do mais, um grande mercado para quem tiver o talento da consolação e o dom de consolar.

Arvo Part - Passio

Boa Páscoa

El Greco - Cristo Crucificado (1587-1596)

Depois de um longo interregno, este blogue volta. Talvez venha mais lento e mais espaçado. Ver-se-á. Mas volta com um admirável quadro de El Greco, uma pintura adequada aos dias de morte e ressurreição que vivemos, aos dias de Páscoa. É pela Páscoa que eu gostaria de recomeçar.

A Páscoa, tanto a dos judeus como a dos cristãos, tem no seu núcleo central a ideia de libertação e a da emancipação. Libertação dos judeus do cativeiro, emancipação dos cristãos do terror da morte eterna. Se há temática que marcou os últimos séculos foi essa, a da libertação e a da emancipação. Mesmo os movimentos mais radicalmente anticristãos, como o iluminismo e o marxismo, só são compreensíveis na sua filiação directa (mesmo que os seus fundadores o tivessem negado) no cristianismo, nomeadamente nos acontecimentos da Páscoa.

Mas, ao trazer hoje uma imagem do Cristo crucificado, gostaria de lembrar um outro aspecto que o tempo foi apagando, e que certa revivescência pagã, na qual não nos importamos de encontrar filiação, não sabe ou não quer saber. O sacrifício do Cristo tem um elevado significado civilizacional. Ao fazer da morte na cruz do seu fundador o núcleo central de uma nova religião, o cristianismo veio abolir e tornar execráveis as práticas de sacrifícios humanos, que existiam por toda a parte. Para o cristianismo só há um sacrifício válido, o do filho de Deus, e toda a morte de homem, ou mesmo de animais, se tornou inaceitável.

É certo que os cristão vivem a sua fé, quando a têm, centrados na promessa da ressurreição da carne, mas essa fé que se abre à controvérsia está assente num terreno civilizacional, o qual qualquer homem dotado de razão e boa vontade não pode diminuir a importância: o sacrifício humano é desagradável a Deus. Mesmo que o cristianismo só tivesse sido isto, já seria o bastante para o colocar como uma das forças mais poderosamente civilizadoras da humanidade e como um dos fundamentos de uma conduta racional entre os homens. Boa Páscoa.