30/10/08

A Ver o Mundo

Agradeço a todos os que têm estranhado esta ausência de novos posts no A Ver o Mundo e têm manifestado preocupação com este blogger. Nada de anormal se passa, apenas um certo cansaço, uma necessidade imperiosa de fazer uma pequena pausa. Em princípio, o A Ver o Mundo retorna no início da próxima semana. Muito obrigado.

23/10/08

Thomas Merton - A escuridão me basta

Para estes tempos de interregno do blogue: a escuridão me basta.

17/10/08

Gosto assim destas paisagens

Kazimir Malevich - Apples Trees in Blossom - 1904

Gosto assim destas paisagens
onde a presença dos homens
é uma ténue e delida sombra no horizonte:
casas e telhados
um pomar de macieiras são o rosto
daquele trabalho que traça
a fronteira onde os deuses já não vão.

Se de súbito uma ave cantar
recolhe a face e no silêncio da hora
deixa o deus murmurar.

Gershwin - Rhapsody in Blue

Jornal Torrejano, 17 de Outubro de 2008

On-line esta já a edição semanal do Jornal Torrejano. Para destaque foi seleccionada a reacção do CRC de Assentis, que referiu os subsídios em dívida, durante a cerimónia das Memórias da História. Refira-se ainda a passagem a independente do vereador do PSD, Nuno Santos, magna questão da política local.

No opinião, Acácio Gouveia que escreve A importância das associações de pais, Carlos Henriques, Quim, o melhor em campo, Carlos Nuno, Serviço nacional de socorro, Inês Vidal, (In)conveniente, este blogger, Porque se reformam os professores?, José Ricardo Costa, Andar aos papéis, Miguel Sentieiro, O Fintinhas, Santana-Maia Leonardo, Casamento da treta.

Acabou-se por esta semana. Daqui a sete dias haverá mais Jornal Torrejano e notícia dele, por aqui. Assim os deuses no-lo acordem. Bom fim-de-semana.

16/10/08

Se o crepúsculo chegar

Wassily Kandinsky – Cidade Antiga II - 1902

Se o crepúsculo chegar
com a seda da noite a envolver-lhe as mãos,
abrirei para ti os meus braços
e desenharei uma estrada de terra batida
e jardins de relva azul
e flores brancas como estrelas.

Não haverá o roncar das máquinas
que pelos rios de alcatrão cavalgam…
Apenas os teus passos virão
no encalço dos meus
e se a tua voz falar, ouvi-la-ei
como oiço agora repicar
ao longe o bronze dos sinos.

Tudo será então misterioso
e as palavras que teremos
na língua que será a nossa
voarão sobre os telhados e
deixarão cair sílabas pelos quintais
ou pequenas letras na
ramagem verde das árvores.

Tu, pelo inverno, sairás de casa
para as colher e com elas
atearás a lareira onde um
fogo de palavras vermelhas
incendiará o amor
nos cansados corações,
animais deserdados
pelas primeiras névoas outonais.

Albinoni oboe concerto D minor Movement 1

Limpar as mãos à parede

Alguém ainda se lembra quando a Europa era sinónimo de eliminação da pobreza? Os europeus ufanavam-se do esplendor do seu equilíbrio social. Todos sabemos que a Europa se expandiu, mas, apesar dessa sabedoria, é com amargura que se vê que europeus com trabalho, com trabalho, repito, que vivem, União Europeia fora, abaixo do limiar de pobreza são já 8%, para não falar dos desempregados e daqueles que já nem sequer para as estatísticas contam. Podemos começar a limpar as mãos à parede com o que fizemos nestes últimos 20 anos. Talvez seja a altura de recomeçar a pensar o equilíbrio social e a justiça na distribuição de rendimentos e encargos.

Interesses de Estado

A tortura da água? A história dos prisioneiros suspeitos de terrorismo é uma página negra na história americana e, por repercussão, na própria história dos países ocidentais. Eu sei que as razões de Estado justificam tudo. Mas as razões de Estado devem mover-se pela defesa dos interesses do Estado, órgão de decisão de uma comunidade politicamente organizada. O que é curioso na democracia ocidental, e isto é uma das coisas mais notáveis que ela possui e lhe dá superioridade, é que os valores éticos possuem eles próprios um valor político. Talvez, para a defesa dos interesses políticos do Estado americano e dos estados ocidentais em geral, seja mais importante a imagem de respeito pelos direitos do homem e dos prisioneiros do que as informações vergonhosamente obtidas sob tortura. Um Estado democrático que tortura é um Estado que se está a fragilizar e a pôr em causa os seus próprios e mais fundamentais interesses. Mas Bush e a gente que o rodeia conseguirão acompanhar a extensão do raciocínio?

Ressuscitar fantasmas

O juiz Baltasar Garzón ordenou uma investigação aos desaparecidos nos tempos do franquismo. Argumenta o magistrado que o caso se inscreve na esfera de competências da mais alta instância judicial espanhola e dá uma razão espantosa: na origem do conflito, em Julho de 1936, esteve um levantamento militar “ilegal”. A ser assim, se essa moda pega, em Portugal não faltarão julgamentos. A começar pelo levantamento ilegal do 25 de Abril de 1974, depois pelo 28 de Maio de 1926, pelo 5 de Outubro de 1910, pelas guerras liberais – também não estavam inscritas na ordenação jurídica do reino –, pelo 1.º de Dezembro de 1640 e, para encurtar razões, até ao 24 de Junho de 1128, quando Afonso Henriques, em S. Mamede, derrota as tropas de sua mãe. Por vezes, os juízes tentam julgar a história, mas o julgamento da história é apenas feito pela memória e pelos vencedores do momento. A história é uma soma de ilegalidades, a destruição da ordem vigente anterior e a instalação de uma nova ordem. Assim, até ao infinito. Se a justificação da legitimidade de abertura do processo é absolutamente risível, do ponto de vista histórico-político, esse não é ainda o seu maior problema. A democracia espanhola nasceu, cresceu e fortificou-se no silêncio dos cadáveres. Esse silêncio permitiu que as partes desavindas, há longas décadas, se aproximassem, que esquerda e direita convivessem no parlamento e na sociedade. Que esquerda e direita se sucedessem na governação. Toda a gente sabe que há muito ressentimento escondido, que o tempo diluirá. Mas também se sabe que não há ali ninguém que tenha as mãos limpas de sangue. Esquerda e direita mataram-se impiedosamente. As esquerdas (republicanos, socialistas, comunistas, trotskistas, anarquistas) mataram-se entre si. A direita terá assassinado mais, pois foi a vencedora. Mexer em cadáveres é ressuscitar fantasmas. E, nestas coisas, os nossos fantasmas são sempre melhores e mais vítimas do que os dos nossos adversários. Por vezes, é melhor para os vivos deixar os mortos em paz, mesmo injustiçados. Talvez eles próprios agradecessem.

15/10/08

Assim demoramos

Van Gogh – A sesta – 1889/90

Assim demoramos
nesta tarde azul
sobre a palha onde poisam
- leves pássaros de linho -
os sonhos verdes
onde dormimos.

Sonhamos os flocos de neve,
eles virão depositar a água fria
sobre o fogo de teu corpo,
para que minha mão
te incendeie,
no segredo da noite,
ao chegar.

Sonhamos campos de miosótis
e bandos de aves
brancas como margaridas.
Colho ali um ramo
e atravesso no céu azul
o largo oceano
para aos teus pés o deixar.

Sonhamo-nos deitados
na tarde de estio
e o teu sonho cresce
nas asas do meu:
águia branca sobre rocha negra
que pelas fragas sombrias
faz raiar no horizonte
o fulgor do meio-dia.

Leonard Cohen: The Stranger Song

Portugal 0 - Albânia 0

A cada jogo que passa, vejo confirmadas as minhas razões para não ter gostado da vinda de Carlos Queirós para a selecção (ainda bem que não veio para o Benfica). Há uma outra coisa que também se confirma: muitos dos resultados obtidos anteriormente devem-se a Scolari. Ele inventou um Portugal futebolístico que não existe. Nunca percebi o acinte que ele gerou em certas áreas. Antes, percebi demasiado bem. Queirós falhou no Sporting, no Real Madrid e está a falhar na selecção. Grandes resultados tem-nos como adjunto, no Manchester United, ou como seleccionador dos mais novos. Mas, diga-se em seu abono, também não tem à sua disposição a elite do futebol mundial que uma imprensa tresloucada vende para vender jornais. Scolari era mesmo especial, apesar das birras e do Ricardo.

O retorno do mouro?

Na Alemanha, as vendas do Capital, de Karl Marx, dispararam, em relação aos anos anteriores, e a expectativa é que continuem a crescer. Não se pense, contudo, que é o marxismo que está de volta. Este movimento de retorno a Marx inscreve-se na esfera dos eruditos. Não é o Marx que guia a acção e que conduzirá os homens ao paraíso, mas o Marx que se tornou um autor clássico. E como todos os grandes autores clássicos, e Marx é um grande autor clássico, é um mestre do pensamento, alguém que ajuda a pensar melhor e a melhor interpretar o mundo. É um Marx lido ao arrepio da sua célebre 11.ª tese ad Feuerbach: «Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes modos; do que se trata é de o transformar». Afinal, parece que é mesmo preciso continuar a interpretar o mundo. O velho Hegel sabia muito mais do que seu distante e belicoso discípulo.

Manifestações de professores

A FENPROF convocou uma nova manifestação de professores, para 8 de Novembro. O meu problema não está nos motivos da manifestação, mas na forma como o confronto com o ME tem sido travado pelas estruturas sindicais. Por outro lado, os movimentos independentes de professores já tinham agendado uma manifestação para 15 de Novembro. Mário Nogueira, da FENPROF, demarca-se desta última manifestação por, diz ele, ser anti-sindical. Mas estarão os sindicatos, perante os professores de mãos limpas? Oiçam os professores nas escolas e perceberão o modo com estes vêem os sindicatos. Resta-me uma ténue e risível esperança que, em tempos a vir, alguém repare no absurdo em que se tornou a escola portuguesa e rompa com o novo paradigma, para falar ao gosto de certa gente.

14/10/08

Pudera ver assim o céu azul

Van Gogh - Barcaças de carvão - 1888

Pudera ver assim o céu azul
e em cada partícula desse anil
saber o verde e o amarelo e o vermelho,
as mil cores que sobre a terra
a luz faz descer,
logo pintaria de branco as negras barcaças
e no lugar do carvão
levaria raparigas de saias largas
e cabelos ao vento.

Se as águas fossem bonançosas,
cantaríamos pela tarde fora
e eu beberia o vinho novo
que naqueles lábios o dia fermentou.
Se, sorrateira, a tempestade viesse,
armaria o velho cavalete
e onde o céu visse negro
o faria azul e no anil dos olhos
presos em mim eu provaria
o verde e o amarelo e o vermelho
que se escondem na noite sem fim.

Jacques Brel - Amsterdam

Os que se vão embora

Manuel António Pina fala de A grande evasão. Refere-se ao pedido de reforma de muitos e muitos professores. Julgo que o Ministério de Educação está feliz com o acontecimento. É muito provável que haja quem pense que a eliminação da geração dos mais velhos, daqueles que ainda souberam o que é uma escola, amainará os ímpetos dos de meia-idade e deixará campo aberto aos jovens professores que, livres dessas ideias estapafúrdias de que a escola é um lugar de trabalho, que os professores devem ensinar e os alunos estudar, farão crescer, no terreno – acho que é assim que falam –, as luminosas ideias das mentes ministeriais, que nos hão-de conduzir ao Olimpo da ignorância e da insensatez. Na próxima sexta-feira, no Jornal Torrejano, também falaremos desses professores que se vão embora.

A euforia das bolsas

A euforia voltou às bolsas. Parece que o maldito dinheiro do Estado tem animado, mundo ocidental fora, os génios sofisticados da bolsa, certamente adeptos da mão invisível e de menos Estado, ou de preferência Estado nenhum, ou quase. Mas o que cada vez me preocupa mais é mesmo o estado de euforia daquela gente. Parece que voltaram a ganhar muito dinheiro, mas quem o estará a perder?

Ser capitalista

A crise financeira tem pelo menos a virtude, não despicienda, de nos fazer sorrir. O governo português ameaça agora os bancos que não amortizarem as dívidas garantidas pelo Estado de os intervencionar, fazendo assim entrar o sector público no capital privado. O negócio não é mau. Se as coisas correrem bem, os bancos pagam ao Estado e amigos como dantes. Se correrem mal, o Estado entra no capital de um Banco que para estar morto só falta ser-lhe rezada uma missa pro defunctis. Cada vez mais acho que ser capitalista, do ramo da finança, não é nada mau. Bem me queriam atirar para um curso de economia, lá tinham as suas razões.

13/10/08

Não és Eurídice, nem por ti

Edouard Manet - La amazona de frente - 1882

Não és Eurídice, nem por ti
Orfeu descerá aos infernos
ou fará tocar sobre a erva dos campos
a lira amena.

Cavalgas apenas
pela a pesada Terra
e marcas com os teus olhos de sombra
aqueles a quem a escuridão,
sonâmbulos,
já atormenta.

Não houve em teus lábios
mel, nem alguém
aí provou as bagas silvestres,
nem uma mão te tocou
o frágil seio, de onde
fugiu o coração.

Aos dedos cobres
para esconder o sangue
que em ti espreita
quando pela noite vais
sobre o velho alazão.

Anda, ó rainha da noite,
ergue uma bandeira sobre o altar
e deixa escrito o teu nome
para quem oiça
a sombra interminável
desse teu cavalgar.

Salvar o quê e a quem?

Há uma coisa que me atormenta no meio destas medidas todas para fazer face à crise financeira global, seja o dinheiro disponibilizado por Sócrates, sejam os acordos europeus, seja a política de Bush: o que visa todo esse dinheiro salvar? Por vezes sou assaltado pela dúvida, eu que nada sei de feitiçaria económica, de que esse dinheiro se destina a manter o status quo e a premiar aqueles que conduziram as finanças mundiais ao colapso onde se encontram, à custa da economia produtiva e do rendimento dos mais fracos. Mas eu, repito, não sou feiticeiro. Desconfio que não são só os loucos e os políticos que são inimputáveis.

O peso da História

A História é um buraco negro onde tudo se consome. Agora descobriram que, hipoteticamente, Milan Kundera, conhecido escritor checo e oposicionista declarado do regime comunista, denunciou à polícia comunista, em 1950, um estudante. Este foi preso e condenado a 22 anos de cadeia, com trabalhos forçados. Kundera nega com veemência o episódio, que está alegadamente documentado. Ainda há pouco tempo o escritor alemão Günter Grass reconheceu também a sua colaboração nas forças militares do regime nazi.

Todo este alarido, porém, reside num equívoco: a de uma concepção pura do homem. Espera-se sempre que os heróis e as figuras elevadas de uma cultura sejam exemplares e neles nada haja que belisque a brancura da alma e a inocência angélica. O grande problema reside aqui, como reconheceu Kant: a inocência é uma coisa muito bonita, mas corrompe-se com muita facilidade. Depois, os homens mudam de opinião e aquilo que um dia lhes pareceu o caminho do paraíso é, agora, a porta do inferno. Somos todos mutáveis. E muitas vezes não fizemos coisas inomináveis porque o acaso ou a História ou o destino não o permitiram. Mas o carácter não contará? Conta, claro que conta sempre. Mas não nos iludamos sobre a força do carácter perante o peso da História. Mas então o peso da história será suficiente para nos absolver de um acto canalha? Não, não é. Não diminui em nada o peso da culpa, apenas modera o dedo da acusação.

The Last Laugh - George Parr [a crise do subprime]

Eis uma notável explicação da crise. Melhor que as mil páginas de especialistas que por aí se escrevem. Ah, ainda tem direito a rir, para além da compreensão efectiva da coisa. Veja onde conduz a gestão por objectivos (dedicada, esta parte, aos presidentes dos conselhos executivos das escolas portuguesas, tão deslumbrados com a parolice).

12/10/08

Onde está agora o triunfante corpo

Edvard Munch – La Niña Enferma (1885-86)

Onde está agora o triunfante corpo
e a voz soberana que aos mortais tocava
e como uma faca de seda os feria
naquele lugar onde nasce toda a imperfeição?

O rosto ainda brilha, mas no curvado peso
já o abutre se anuncia, mesmo se a porta se fechou
e dentro de casa ainda arda o fogo,
talvez uma vela a cintilar de esperança.

É tudo tão preciso, quase geométrico,
as paredes, os móveis, a cadeira
que te suporta e o teu olhar para o infinito
como se quisesses ver o que te chama.

A mão não acena nem a boca canta
nem o teu nome cresce na alegria
que era ter vida e filhos e um campo
de lírios acesos durante a caminhada.

Um passo em frente

Decisões tomadas hoje no seio da Zona Euro são "grande passo em frente", diz Durão Barroso, o querido líder da nossa União. Por que razão me lembrei imediatamente daquela história em que alguém estava à beira do abismo e deu um passo em frente?

Meredith Monk -Churchyard Entertainment

Fair-play democrático

Nas eleições americanas a animação está ao rubro. Os republicanos sugerem que Obama é terrorista. Os democratas acusam McCain de racista. Isto é o mais puro fair-play. Ah!, mas estamos em política e nesta, segundo a lição de Maquiavel, não entra no jogo o cálculo ético. É verdade, mas também é verdade que entra o cálculo político. Ora se este tipo de insultos soezes são pronunciados é porque os candidatos julgam que eles serão acolhidos pelo eleitorado. Sendo assim, esta animação de arrivistas expressa a saúde moral dos americanos, gostemos ou não.

Vontade de vomitar

Pulido Valente, na crónica de hoje no Público, fala do desinteresse que parece grassar na opinião publicada e na comunicação social nacionais pela crise financeira mundial. Atribui esse desinteresse à nossa eterna miséria, à incapacidade de percebermos tudo o que tenha mais de três números. É possível que tenha razão. Mas também é possível que estejamos perante uma resposta mais pragmática: que mão poderemos ter na crise que não provocámos? Todos sabemos a resposta: nenhuma. Então, para quê um excesso de preocupação, mesmo que o barco se esteja a afundar? A experiência da nossa miséria, experiência que obsidia Pulido Valente, é antes de mais a experiência da impotência colectiva. Raramente somos os senhores do nosso destino. Tudo o que é essencial se decide onde não estamos e mesmo o que se decide por cá decide-se onde a maioria não se encontra. É fácil a meia dúzia de janotas, que leram umas tretas sobre livre-arbítrio e umas linhas sobre a livre iniciativa, acusar meio mundo de incapacidade de sobreviver sem o apoio ou a âncora do Estado. O que não é fácil a essa meia dúzia é perceber a longa história que nos formatou e que tolheu qualquer espírito de iniciativa e que lhes dá a possibilidade de ganhar dinheiro à custa das idiotices que põem da boca para fora. Quando leio a maior parte dos comentadores tenho vontade de vomitar. É evidente que não incluo aqui Pulido Valente, o único que verdadeiramente vale a pena ler.

11/10/08

Se curvares teus dedos


Joanna Boyce - Bird of God - 1861

Se curvares teus dedos
e a sebe e a laranjeira
e a terra seca dissolveres
e ainda o pó da sebe
e o da laranjeira
e o da terra seca
e aquele de teus dedos
e o da curva de teus dedos
e o da memória de tudo isso se dissolver
a que horizontes se abrirão,
entre o rumor de asas,
os encadeados olhos?

Keith Jarrett, Gary Peacock, Jack De Johnette , PRISM, 1985

Nacionalizemos, então

Afinal nacionalizar bancos não é uma coisa intrinsecamente má. Parece que os campeões da liberalização e do anti-estatismo se converteram às práticas gonçalvistas de 75. O que me faz rir, não porque seja adepto das nacionalizações, mas porque mostra a volubilidade dos homens e o ridículo que existe em todas as posições ideológicas extremas, sejam socialistas, sejam liberais. A maior parte das vezes, os protagonistas sociais, políticos e económicos deveriam pura e simplesmente estar calados. Os americanos que, na sequência da queda da União Soviética, lançaram um ataque impiedoso ao Estado providência, não têm agora pejo em armar o seu próprio Estado em deus benévolo que suprirá não a desgraça dos fracos, mas o desatino dos fortes. A humanidade desespera-me e dá-me vontade rir.

10/10/08

Já toda a tarde tinha caído

Edmond François Aman-Jean – Dame en Rose

Já toda a tarde tinha caído
para fora do círculo luminoso
e o dia cedera o corpo ansioso
ao império ferido pela noite.

Apenas os teus olhos fitavam
no limiar onde a loucura se acende
o frio desvão e nele, inquieto, havia
um poço fundo bordado a erva doce
e a terra fria, onde escondias
os restos amargos da infância.

Se eram rosas o que vestias,
os teus cabelos eram fogo,
mas em ti apenas ardia
um desejo de morte
que anuncia, em dobrado corpo,
a face oculta de um terror novo.

Dias negros

Eu sei, a comunicação social tem destas coisas, mas chega a ser cansativo. Agora, por tudo e por nada se fala em dia negro nas bolsas. Eu proponho que arranjem uma espécie de escala colorida, tipo alerta amarelo, laranja, vermelho, etc., para a bolsa. É que, a continuar assim, já ninguém distinguirá os dias que são negros, dos dias que são negros-escuros ou dos negros-claros. Ou então arranjem um calendário com os dias fastos e nefastos. Nos primeiros, abre-se a bolsa e transacciona-se em alta. Nos nefastos, fecha-se a bolsa e vai-se para as igrejas, mesquitas, etc. rezar.

Jornal Torrejano, 10 de Outubro de 2008

Disponível encontra-se já a edição desta semana do Jornal Torrejano on-line. Destaque para a retirada de confiança política ao vereador do PSD Nuno Santos, por parte da direcção local do partido. Refira-se ainda o retorno à agenda social da ampliação do quartel dos bombeiros.
Na opinião, comece-se com Carlos Henriques que escreve Sporting paga a factura. Porto líder. Depois, Francisco Almeida escreve Remédio envenenado, João Carlos Lopes, Quartel novo, este blogger, Uma questão ética?, José Ricardo Costa, How do I look?, Santana-Maia Leonardo, Os clubes e a sua vocação e Vítor Lúcio Freire, De onde vem o exemplo.
E assim chega ao fim a notícia das notícias. Para a semana, se os deuses estiverem pelos ajustes, haverá mais. Mas são caprichosos os imortais. Um bom fim-de-semana, também com o Jornal Torrejano.

Histórias mal contadas

Há histórias mal contadas, há histórias desagradáveis e há histórias que são ao mesmo tempo mal contadas e desagradáveis. Esta é uma delas. Se o veterano da primeira guerra do Iraque estiver a falar verdade, se os EUA tiverem efectivamente usado uma bomba nuclear na I Guerra do Golfo, se se desmentir a versão do Pentágono, o Ocidente terá dado um passo decisivo para a sua completa irrelevância e legitimado de uma vez por todas a proliferação de armas nucleares e o seu uso convencional. Esperemos que haja explicações convincentes.

09/10/08

Assustam-se as belas e pobres escravas

William McGregor Paxton – Nausicaa - 1937

Assustam-se as belas e pobres escravas
envoltas no corpo, a natureza lho deu,
ao verem a terrível luz de Ulisses,
náufrago entre náufragos,
a emudecer a sombra que do mar vinha.

Entre tanta mulher de corpo resfriado pela água,
aquecido pelo sol do mediterrâneo,
apenas uma enfrenta o desconhecido
e a sua mão lhe entrega para o levar
à cidade, para que o cuidem e lhe tragam
o conforto que os dias passados roubaram.

Nausícaa, filha real, reconheceu no estrangeiro
não o escravo a que tudo teme,
mas um igual, apenas maltratado pelas águas
e pelo destino adverso que tudo pode.
No segredo do seu coração, já o filho de Ulisses
encontrara o conforto para a sua solidão.

Caetano Veloso and Lila Downs - Burn It Blue

Bravo, Nico

Leia-se este excerto do Público: «O deputado do CDS-PP João Paulo Carvalho pediu à maioria socialista que comentasse "o caso do conselho pedagógico de uma escola de Barcelos que decidiu que os alunos podem passar de ano mesmo com cinco negativas".

Na resposta, o deputado do PS Bravo Nico não se referiu à questão dos computadores Magalhães.

Quanto ao caso de Barcelos, o deputado do PS a deu a entender estar de acordo com a decisão do conselho pedagógico, argumentando que "é sempre muito mais exigente e dá sempre muito mais trabalho às escolas e aos professores integrarem os alunos com percursos de aprendizagem difíceis".

"É sempre mais fácil colocá-los fora da escola. A nossa resposta é fazer com que as crianças fiquem dentro da escola. O direito à educação é um direito básico", acrescentou Bravo Nico.»

É assim, com esta bravura, que todos os alunos portugueses se hão-de tornar uns verdadeiros nicos.

Troca de beijos

Só numa sociedade de adolescentes retardados é que um homem e uma mulher trocam beijos no acto de apresentação ou como forma de cumprimento.

08/10/08

O que admiras nesse espelho

John William Godward – The Mirror – 1899

O que admiras nesse espelho
e escondes na cercadura dos laços,
será fingimento, tortura ou
um prémio a cair-me nos braços?

O que vês quando olhas
para além do vidro dessa imagem,
será devaneio, mentira ou
o meu olhar preso na outra margem?

O que dirás se eu desfizer os laços
e colher-te rápido naquela margem
onde, por entre suspiros e abraços,
serás de ti para mim a tua imagem?

Cuarteto Cedrón - La cerveza del pescador Schiltigheim

Furores socráticos

Quem não desejaria ser iniciado em tais mistérios? Quem é que não deseja, ainda peregrino na terra, mas desprezando tudo o que é terreno e desprezando os bens da fortuna, esquecido do corpo, tornar-se comensal dos deuses e dessedentado pelo néctar da eternidade, receber, animal mortal, o dom da imortalidade? Quem não quererá ser inspirado pelo furor socrático, exaltado por Platão no Fedro, arrebatado em célere voo para a Jerusalém Celeste, fugindo rapidamente com um bater de asas daqui, isto é, do mundo, reino do demónio? Arrebatar-nos-ão, ó Padres, arrebatar-nos-ão os furores socráticos, trazendo-nos para fora da mente a tal ponto que nos coloquemos a nós e à nossa mente em Deus. E por eles certamente seremos arrebatados, se primeiro tivermos realizado tudo quanto está em nós: se, de facto, com a moral forem refreados, dentro dos justos limites, os ímpetos das paixões, de tal modo que se harmonizem reciprocamente com estável acordo, se a razão proceder ordenadamente mediante a dialéctica, inebriar-nos-emos, invocados pelas Musas, com a harmonia celeste. Então Baco, senhor das Musas, mostrando-nos, tornados filósofos, nos seus mistérios, isto é, nos sinais visíveis da natureza, os invisíveis segredos de Deus, inebriar-nos-á com a abundância da casa divina na qual, se formos totalmente fiéis como Moisés, a santíssima teologia, aproximando-se, animar-nos-á com um duplo furor. Sublimados, portanto, no seu excelso observatório, referindo à medida do eterno as coisas que são, que serão e que foram, observando nelas a beleza original, seremos, como vates apolíneos, os amadores alados até que num inefável amor, como invadidos por um estro, postos fora de nós e cheios de Deus como Serafins ardentes, já não seremos mais nós próprios, mas Aquele mesmo que nos fez.

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Extraordinário tempo deve ter sido o século XV. Arrebatamento, entusiasmo e furor parece não te faltado por lá.

O dom da fé

Quase que me esquecia. Ocupações diversas levaram-me a passar em branco a anunciação do retorno de Pedro Santana Lopes. Como é que é possível, depois dos desastres da governação e da câmara de Lisboa, ainda atribuir qualquer credibilidade a esta personagem política? Nem o cansaço da sua presença é suficiente para dar lugar a outros? Que país é este em que se está sempre disposto a perdoar a mediocridade? Santana Lopes parece despertar, como poucos, o dom da fé. E a fé é o que nos salva…

Nova maioria absoluta?

A época que vivemos não deixa de ser um óptimo refúgio para o governo de Sócrates. Apesar da economia estar à beira da recessão, apesar de em todas as áreas cruciais da governação existir um profundo desconforto, a verdade é que o terramoto da economia internacional veio da uma ajuda grande às gentes do governo. O conjunto de medidas anunciado para fazer frente à crise (aqui ou aqui) dá a ideia, à opinião pública, de que o governo está activo e governa. Se isto adicionarmos o temor do desconhecido e da instabilidade política, para além da ausência de alternativa consistente, podemos conjecturar que uma nova maioria absoluta está no horizonte dos possíveis de Sócrates. Lamentavelmente.

07/10/08

Doce Afrodite eis as rosas

John William Godward - An offering to Venus - 1912

Doce Afrodite eis as rosas
que me iluminam o andar.
Dá-me, terna deusa, uma mão
para poisar no regaço
e uma boca que me tome os seios
e me fira o corpo e me encha
a noite escura de cansaços.

Diana Krall - Cry me a river

A crise financeira e a escola portuguesa

Os professores portugueses andam, por ordem do governo, todos entretidos a determinar objectivos para serem avaliados. Os princípios da avaliação fundam-se em concepções retiradas da gestão de empresas. Muito desses princípios são análogos àqueles que orientaram a economia ocidental até ao presente buraco em que se encontra. O que se prepara na escola é, apesar de menos visível e espectacular, uma desgraça idêntica à do mundo da finança. Há um princípio comum que toda a gente percebe: no mundo da finança, vendia-se crédito a quem quer que seja, para atingir e ultrapassar os objectivos; na escola portuguesa, vão-se passar alunos sem saber nada, para atingir os ridículos objectivos que o delírio governamental impôs aos professores. Há muito tempo que descobri que a estupidez é uma coisa que se propaga a grande velocidade e tende para a dominação universal, nem as catásrofes a fazem recuar.

Rédea curta no mulherio

Admirável mundo novo! Mas o mundo de que quero falar não parece novo, mas saído há instantes da Idade Média. Na Arábia Saudita uma fatwa (édito religioso) proferido pelo xeque Muhammad al-Habadan determina que as mulheres quando saírem à rua, e não tenham a cara completamente coberta com um lenço, só poderão mostrar um olho, e não dois como tão desavergonhadamente faziam até aqui. Parece que é um reforço das regras de modéstia. No Irão, para não se ficar atrás no zelo com a modéstia, e depois de se ter criado um linha de táxis só para mulheres, criou-se um carro só para mulheres. Roídos de inveja, os judeus ultra-ortodoxos não perderam a oportunidade para imitar os seus arqui-inimigos. Criaram patrulhas de modéstia e assaltaram casas para agredir mulheres (acto honrado e heróico) por usarem “blusas vermelhas” ou por “conviverem com homens”. Por certo, blusas brancas são menos eróticas e o convívio de mulheres com mulheres é muito mais decente. Consta também que não gostam de modems de acesso à Internet e de leitores MP4 por causa dos downloads de filmes pornográficos. Será que isto nos vai contaminar? Não faltará por aí muito homem desejoso de pôr rédea curta ao mulherio.

06/10/08

Porque te defendes, pobre mortal

William Bouguereau - A Young Girl Defending Herself Against Eros (1880)


Porque te defendes, pobre mortal,
do deus que dispara a flecha incendiada?
Ao teu coração há-de consumir,
e fazer cinza do orvalho que se desprende
e corre em ti como um rio de lava
por entre a ravina de tuas pernas.

Porque afastas o deus
da vertigem da tua pele?
Chama-lo na noite,
mas quando chega feito ladrão
tudo em ti hesita e recua
sob a pálida candeia do luar.

Olha as folhas, na árvore amarelecem.
O Outono breve há-de vir
e em teu coração restará
apenas a poalha da tarde:
os meus dedos não te tocarão.

O Inverno está quase a chegar,
mas nunca mais em ti cantará a Primavera
e a redenção dos pássaros que voltam.

Porque te defendes, pobre mortal,
do deus que dispara a flecha incendiada?

Jan Garbarek - Molde canticle (1991)

Afinal, a culpa é da moral

Tem-se assistido, devido à crise financeira mundial, a um certo retrocesso da louvação do capitalismo e uma crítica acerada às políticas económicas provenientes da era Reagan. Mas o capitalismo, aquele que está em crise, encontra os seus defensores. Henrique Raposo, no útimo Expresso, faz a apologia do que se tem passado, criticando a criação do bode expiatórios (sejam eles e cito «“os bandidos da Wall Street”, os políticos e as sociedades ocidentais»). O curioso é a lição maior que o articulista tira: «A maior lição desta crise não está ao nível da regulação institucional dos mercados, mas sim ao nível da auto-regulação que cada indivíduo deve possuir perante a tentação do crédito. Eis, portanto, a conclusão mais dolorosa: o capitalismo permanece de pé, mas estamos a descobrir que ter casa não é para toda a gente. Em 2008, morreu a democratização da propriedade através do empréstimo bancário.»

Extraordinária lição. Imagine o leitor que perante uma onda avassaladora de crimes, onde as instituições de segurança se impedissem de interferir e regular a segurança dos cidadãos, viesse alguém dizer que o principal problema estava ao nível, não da acção política, mas da auto-regulação que cada indivíduo deve possuir perante a tentação do crime. Isto é para levar a sério? Mas como é possível não responsabilizar todos aqueles que induziram, com interesses e ganhos evidentes, pessoas que não podiam cumprir os seus compromissos a comprar casa? Parece que os culpados de uma derrota militar são os cozinheiros. Os generais e a estrutura responsável é que não pode ser responsabilizada e muito menos a ideologia subjacente, ou a estratégia seguida. Pensar que o problema é moral (auto-regulação dos indivíduos) é querer iludir-se e iludir os outros. O mercado deixado a si-mesmo tal como aconteceu gerou a situação em que vivemos. Agora diabolizar os milhões de pobres que se deixaram tentar pelos cantos de sereia dos gestores inovadores parece ser, assim, um acto de profunda inteligência e compreensão da natureza dos homens e uma óptima solução para o que se está a passar. O melhor ser prendê-los a todos, aos que ficaram sem casa, por atentado à moralidade. Ao mesmo tempo deve-se gratificar infinitamente a gestão política ocidental por se ter demitido da fiscalização e regulação da economia e promover todas as administrações das instituições falidas.

Notícias do paraíso

Olhemos apenas para a edição on-line do Público. O paraíso a que se chegou está aí em todo o seu esplendor: Autoeuropa pára produção de monovolumes por quebra na procura. Quer continuar na área da economia? Maior queda sempre para o PSI-20 (índice da Bolsa de Lisboa): quase dez por cento. Esta, um pouco anterior, também não é desinteressante: Lisboa cai mais de oito por cento e liderava mais um dia negro para bolsas europeias. Mais economia? Mercados antecipam contágio de crise financeira ao resto da economia. E do mundo da política, de que feição correm os ventos para nós, pobres europeus: NATO alerta para dificuldade de travar produção de bomba nuclear iraniana. Bem-vindos ao paraíso, ao admirável mundo novo.

05/10/08

Tudo se ilumina no fulgor da água

Paul Seignac – The Wave

Tudo se ilumina no fulgor da água.
E se a areia é um leito de penas e algodão
o corpo apenas pede à fria tormenta
que nele ateie o espelho de um vulcão.

Sob o signo da vulnerabilidade

O Presidente da República, no discurso do 5 de Outubro, veio falar nos tempos difíceis em que se vive e na necessidade dos agentes políticos não iludirem a realidade. Assim sendo, uma coisa já é oficial: os tempos que se vivem são efectivamente difíceis, de tal maneira difíceis que não há espaço para os iludir. Afinal a crise não é apenas um devaneio de uns quanto pessimistas de serviço. De um outro lugar, do lugar da Igreja, veio a opinião de Frei Bento Domingues: “Vivemos um tempo de incertezas que nos tornam vulneráveis sob o ponto de vista social, económico e afectivo.”

O equívoco de todas estas palavras reside na ilusão optimista que lhes está subjacente. Parece que é a crise ou as incertezas que apelam à verdade e nos tornam vulneráveis. Mas a realidade é completamente diferente. O homem é um ser por essência vulnerável. A vulnerabilidade está inscrita no seu ser e no ser das próprias comunidades e instituições em que o homem vive, e esta é a sua verdade. Não são os tempos difíceis ou de incerteza que nos tornam vulneráveis. Os tempos de crise e de incerteza apenas mostram a realidade que, noutras alturas, escondemos. Mais, nas alturas em que tudo parece correr bem, nem vemos a crise, a incerteza e o desespero que atingem os outros. Isto para não falar de que, muitas vezes, os tempos de certeza em que uma parte de nós vive se constroem na incerteza e desespero de terceiros. A vulnerabilidade do humano está sempre patente, o nosso olhar, porém, está demasiado inclinado para a querer ver.

A única solução, se é que há uma solução, é aprendermos a viver sob o signo da vulnerabilidade. Aceitar a condição que é a nossa, da nossa comunidade e das nossas instituições, aprender a lidar com essa vulnerabilidade e perceber que, para além do mundo da concorrência – mundo legítimo, aliás –, existe o mundo onde os homens cuidam da vulnerabilidade uns dos outros. Se quisermos pensar a essência do político, deveremos pensar não na concorrência que anima os mercados, mas na vulnerabilidade que leva os homens a desejarem cooperar uns com os outros. A vulnerabilidade própria e a necessidade do cuidado são os fundamentos da comunidade política. São eles inclusive que dinamizam a construção das instituições e a organização do Estado enquanto lugar onde impera a lei e o monopólio da violência legítima. A questão política então é: como poderemos mobilizar os cidadãos que vivem em comunidade para cooperar no fortalecimento de instituições que existem sob o modo de ser da vulnerabilidade? A verdade, todavia, é que o actual modelo de relações sociais está longe de ser, para largas franjas da população, mobilizador. Isso deveria preocupar aqueles a quem se entregou a direcção do Estado e a gestão dos negócios públicos. Será que preocupa?

5 de Outubro de 1910

Uma das poucas coisas que resta em mim da modernidade. Mas será a república uma coisa assim tão especificamente moderna? A antiguidade clássica desmente-o.

04/10/08

O tempo é uma rosa de aço

John Everett Millais – A Beauty

O tempo é uma rosa de aço
e estrangula-te a face ao cair das pétalas.
Se a beleza ainda reflecte o meio-dia,
já a noite descai do olhar
e uma penumbra cresce
no vazio, ele te espera.

Um rosto. O que é um rosto
banhado pelo calor do luar?
Uma planície de cicatrizes
onde os vendavais deixaram
pela tarde sulcos; aí
correm rios de lágrimas.

A tudo isso o tempo o traz,
no segredo que envolve cada pétala
da rosa que nasce na hora
em que o negro ferro que passa
se transforma na espada vibrante
onde canta sereno o aço.

Léo Ferré - Avec le temps

A minha desrazão II

Num post anterior referi o sentimento desagradável que tinha perante a referência de Jean-Claude Trichet, a propósito da crise financeira, à II Guerra Mundial. O carácter desagradável do sentimento intensificou-se com as afirmações israelitas de que a Coreia do Norte teria fornecido meios a seis países do Médio Oriente para estes construírem armas de destruição em massa. Independentemente da parcialidade das afirmações dos israelitas, a verdade é que há vontade política no Médio Oriente para obtenção dessas armas e, por certo, também haverá vontade em fornecer-lhas, de forma mais ou menos discreta. Os sinais são preocupantes, muito preocupantes, desde há alguns anos. Mais, essa preocupação só pode aumentar quando esses sinais provêm de múltiplos lados e de diferentes patamares da realidade (economia, política, religião, cultura). Aquilo que pressinto mais do que vejo, na leitura dos acontecimentos mundiais, é uma erosão contínua do Ocidente, erosão essa que começou de forma muita lenta, mas que se tem vindo a tornar cada vez mais rápida. Não creio que o problema seja económico. A falta de vitalidade do Ocidente é a muitos níveis e aquilo que temos visto, ao nível dos desafios político-militares, até agora são apenas e só pequenos ensaios para testar a capacidade de resposta ocidental.

Houve um acontecimento decisivo que me levou, já há muitos anos, a dar atenção a alguns problemas inusitados e que pouco interessavam o comum dos mortais. Esse acontecimento foi a revolução iraniana de Khomeiny, nos anos 70, e a instauração de uma teocracia. Na altura, fiquei de boca aberta. E tentei perceber algum do pensamento que estava por trás do episódio. Aquilo que fui descobrindo, ao longo destes anos, está longe de me tranquilizar. A intranquilidade cresce à medida que o poder militar e económico do Ocidente entra em declínio (no outro dia Pulido Valente pediu desculpa a Mário Soares por o não ter levado a sério quando este começou a falar no declínio dos EUA). A intranquilidade intensifica-se quando muitas das políticas ocidentais têm contribuído para erosão do seu poder e atinge o paroxismo perante a descrença da opinião pública sobre a possibilidade de agravamento drástico da situação. Há muitos anos que percebi que o estado de guerra é a natureza das relações internacionais (obrigado Zé pelo Levinas). A paz - e toda a paz é uma paz particular (a paz ocidental ou a paz oriental ou… ou…), isto é, a paz sob condição de uma potência dominante - só se assegura pelo medo. Essa foi uma das lições, embora sem novidade, da Guerra-Fria. Eu creio, talvez por ser ocidental, que a paz ocidental é mais justa e mais pacífica e mais respeitadora das liberdades do que qualquer outra. Não faltará quem discorde de mim.

03/10/08

A súbita tristeza que se abate

Raphael Soyer – After the bath -1946

A súbita tristeza que se abate
apenas o seio a disfarça.
Se o corpo nu se abre ao olhar,
não é a leveza que o ordena.
Toalha na mão, a roupa caída,
duas sílabas esventradas pela garganta
e a doce amabilidade
é agora um poço misterioso
ou uma rocha firme sujeita
ao tempo e à noite,
ao império da gravidade.

Jornal Torrejano, 3 de Outubro de 2002


Na opinião, comece-se com o cartoon de Hélder Dias. Depois, Carlos Henriques escreve Sporting em perda, Carlos Nuno, Viva a escola, Inês Vidal, Meias tintas, este blogger, Pós-modernidades, José Ricardo Costa, Casa de chá, Miguel Sentieiro, O Pombo.

Para a semana há mais, se os deuses estiverem para aí voltados. Bom fim-de-semana.

Reconheçamos…

Nada pior do que a auto-ilusão. Podemos não gostar do governo e de Sócrates, mas é preciso reconhecer que nem tudo lhe está a correr mal. As sondagens começam a sorrir-lhe e agora a Argentina também quer o Magalhães (estas coisas impressionam o eleitorado). Para cúmulo não existe oposição. A de esquerda é mais dinâmica, embora tenha perdido intenções de voto, mas não é oposição para tomar conta do poder. A de direita pode tomar conta do poder, mas não tem energia nem propostas diferenciadas do governo actual. O mais natural é o eleitorado continuar nos braços dos socialistas. Pelo menos sabem com o que contam: não contam com grande coisa, mas sempre haverá animação, Magalhães, Internet, quadro electrónicos, e o mais que a tecnologia acender na imaginação dos zorrinhos do governo. Pode ser que não seja nada. No fim de contas, já vivemos assim há uns 900 anos e a coisa lá vai correndo.

Vasco Pulido Valente - O começo do fim

Dizem que ganhou Obama. Por mim, achei McCain mais seguro. De qualquer maneira, para lá da polémica e da propaganda, o que emergiu pouco a pouco do debate foi o fim da América como a potência dominante do mundo - a "hiperpotência", para usar o calão dos peritos. Que me lembre, em Portugal, só Mário Soares falou sobre o assunto e ninguém o levou muito a sério (aproveito agora para lhe pedir desculpa). Mas para continuar: Obama e McCain definiram com toda a clareza os compromissos globais da América (embora com uma significativa discordância) e, como os definiram, esses compromissos, não são cumpríveis. Nem militar, nem económica, nem politicamente.

Obama, que durante a campanha "moderou" as suas posições, quer "sair" do Iraque daqui a um ano e meio. Tirando o erro inconcebível de marcar uma data, se no futuro previsível a América sair do Iraque, deixa atrás de si - no Iraque e no Médio Oriente - uma desordem perigosíssima e sem conserto. McCain julga que o surge do general Petraeus está a ganhar a guerra. Não está; e entretanto a guerra custa 10 biliões de dólares por semana e já custou até hoje perto de um trilião de dólares. Pior ainda: o fracasso da intervenção usou e desgastou o exército americano muito para além do tolerável e o recrutamento começa a ser difícil. Para recuperar, a América precisa de anos de paz (como precisou depois do Vietname). Infelizmente, não haverá paz tão cedo.

Mesmo que Obama acabe com a aventura do Iraque (uma pura fantasia eleitoral), é para transferir o grosso das tropas para o Afeganistão, que ele considera o objectivo principal. McCain também vê a maior necessidade de "reforçar" o Afeganistão. Nem um, nem outro devem perceber o esforço económico e humano que o exercício implica ou a irracionalidade de transformar, a tiro, um país tribal num Estado moderno. Nada lhes parece insensato ou extremo: impor à Rússia uma fronteira da NATO do Báltico ao mar Negro; "defender" a Geórgia; impedir (por que meios?) que o Irão venha a ter qualquer espécie de armas nucleares; fazer com que a Coreia do Norte inutilize as que tem; e, evidentemente, "reorganizar" a Venezuela e a Bolívia. A América pensa (e continua a agir) como uma "hiperpotência". É uma ilusão. A tecnologia militar não chega. Sem peso político, sem uma clara hegemonia económica e sem um exército praticamente inesgotável (e dinheiro para o pagar) existem limites que é mortal passar. E a América "sobreestendida" e dependente de 2008 passa, dia a dia, esses limites. [Público, 3 de Outubro de 2008]

02/10/08

Não te sentaste em Trouville tão velada

Claude Monet - Camille on the Beach at Trouville


Não te sentaste em Trouville tão velada,
mas comigo passeaste pela imprecisa areia,
e a cada momento esperámos que
Claude e Camille chegassem na elegância
daquelas dias, a morte os esquecera.

Havia um céu de chumbo e bandeiras ao vento,
e grupos de crianças corriam pela praia,
mas o tempo roubara os parcos veleiros
e nada cavalgava então as ondas,
talvez as nuvens enlouquecidas de Agosto
ou gaivotas desterradas ao frio do norte.

Foi aí que sorrimos um ao outro
e dissemos sim, também aqui amámos
e bebemos vinho e caminhámos para o mar.
Habitava-nos uma serpente de fogo
e éramos crianças tardias a descobrir o amor
nas areias onde Claude assim amou Camille.

Maria Callas - Habanera (1962)

Benfica 2 - Nápoles 0

Se isto continua assim, não tarda nada que se abata, sobre a águia, uma daquelas campanhas que ajudaram, com auxílio da estupidez interna, em tempos já recuados, a transformar o clube mais ganhador de Portugal numa potência de terceira ordem. Não basta ganhar, é preciso cabeça fria. No futebol a cabeça também joga. No Benfica, há muito que se joga apenas com os pés, e mal.