31/01/09

Era o tempo em que falava de esquecimento

Edward Hopper - Stairway (1919)

Era o tempo em que falava de esquecimento.
Em cada palavra havia uma luz
a desenhar clareiras na floresta
ou um mar de fogo na palha
com que ateava secreto o tormento.

Não retomarei o canto que iluminou as cerejas,
nem direi a cor que cobre a verdade.
Caminho vendo corpos trespassados
e silencio o dia magoado no horizonte,
onde esqueci as palavras que desejas.

Desço as escadas e faço da porta fronteira.
Olho a linha de água despedaçada,
onde a fé se dilui entre enredos.
Cerro os olhos em busca da inocência,
mas não há cintilação que te queira.

Iva Bittova & Nederlands Blazers Ensemble *Divna slecinka*

Manifestações em Inglaterra

As manifestações espontâneas que ocorreram na civilizada e democrática Inglaterra contra a contratação de trabalhadores estrangeiros, portugueses e italianos, não são apenas o sintoma de uma crise que, todos os dias, destrói dezenas milhares de empregos, ou da súbita simpatia que o operariado britânico passou a ter pelo British National Party. Elas são um sintoma de que se está a atingir o limite da abertura de fronteiras e da desagregação dos estados nacionais. Mostram, também, a contradição política essencial que percorre a Europa dividida entre uma soberania nacional, de fundas raízes populares, e uma vontade cosmopolítica das elites governativas. Quando a legitimação da soberania passou a assentar no povo, entendia-se implicitamente que o soberano exercia o poder para, em primeiro lugar, defender os interesses da comunidade política a que servia. A experiência dos último decénios, porém, mostra que os interesses económicos dos grandes grupos impuseram, aos dirigentes políticos, uma abertura tal das fronteiras, que aqueles dirigentes passam a ser percepcionados cada vez menos como defensores dos interesses da comunidade que devem servir. Estas manifestações inglesas, claramente xenófobas, deveriam ser lidas com muita atenção. Deveriam também conduzir a uma reflexão sobre a importância do Estado-Nação, e dos limites da abertura de fronteiras. É preciso recordar que esta abertura de fronteiras, esta livre circulação da mão-de-obra, não se inscreveu na realização de qualquer princípio moral de fraternidade universal, mas no mero interesse das empresas em fazer baixar a mão-de-obra dos países mais desenvolvidos e com maior equidade social. Ela visou claramente o empobrecimento das classes populares desses países. A crise só veio mostrar o que estava latente.

30/01/09

A razão, agora uma pura geometria

Edward Hopper - New York Office (1962)

A razão, agora uma pura geometria,
um fardo de betão onde te escondes
a dardejar palavras sobre papel,
a fugir da sombra com que vestes a agonia.

Nesse mundo de flores exactas,
onde as horas passam peregrinas,
deixas mortas as esperanças
que ainda ontem julgavas intactas.

Nem Outono nem Primavera
haverá nas paredes despidas de lilases.
Um traço de luz, um vulto de poeira,
uma canção de cinza, o que te espera.

Olivier Messiaen - Eclairs sur l'au dela... (Part Five)

Modernidades, famílias e o Prof. Cavaco

O Professor Cavaco Silva é um homem probo, dedicado ao bem público, sensato e, entre as gentes da política, alguém que ainda possui crédito perante o país. Mas esta coisa de transformar um mero tesoureiro em monarca é coisa que não funciona. Na sua fronda contra a nova lei do divórcio, o Presidente diz: "Não é um sinal de modernidade a dissolução progressiva dos laços familiares". Isto é uma prova que um economista, professor universitário em Economia, não tem de perceber o que quer que seja da realidade social provocada pelo desenvolvimento económico. Alguém deveria explicar ao Professor Cavaco que não é a lei do divórcio que dissolve progressivamente os laços familiares. O que dissolve os laços familiares é o fim das sociedades tradicionais, a crescente autonomia dos indivíduos e, acima de tudo, o desenvolvimento económico moderno. A proletarização, que recomeçou, a precariedade laboral e a mobilidade exigida pela eficiência da empresa económica capitalista, bem como a necessidade dos membros da família trabalharem em espaços muito diferentes contribuem decisivamente para a "dissolução progressiva dos laços familiares". O que Cavaco Silva não consegue compreender é que aquilo que ele defende para a economia provoca necessariamente aquilo que ele não gosta ao nível da família. A lei do divórcio é apenas um produto superestrutural fundado na infra-estrutura da vida económica, para falarmos à maneira de Marx. E se este falhou rotundamente nos prognósticos sobre o futuro da história e a bondade do comunismo, não deixou de ser genial na análise do capitalismo. Umas leituras do Marx mais filosófico dariam, então, ao senhor Presidente alguns belos motivos de meditação e evitariam que dissesse, em público, aquelas coisas que ficam mal a um universitário, ainda por cima Presidente da República, dizer. De facto, a dissolução dos laços familiares é um sinal claro da modernidade tardia. A lei do divórcio, um subproduto da modernização económica.

Promiscuidades

A leitura disto no Público on-line vem acentuar o clima de desconforto com que se olha para a vida política e institucional portuguesa. Uma coisa ressalta já com excessiva evidência: há muita promiscuidade entre o poder político e as instituições de justiça. O poder político tem demasiadas possibilidades de nomear e desnomear, interferir e orientar o curso da justiça. Se eu não quero uma república de juízes, também não quero que a Justiça possa ser controlada pelos executivos. O parlamento faria bem em seguir a sugestão do juiz Santos Cabral, chamá-lo e ouvi-lo. Se há alguém que merece respeito e cuja palavra seja credível é o juiz Santos Cabral, cuja demissão de director nacional da Polícia Judiciária nunca foi bem explicada.

Jornal Torrejano, 30 de Janeiro de 2009

Vamos lá ver, então, o que traz o Jornal Torrejano na edição de hoje. Para começar uma notícia da terra onde nasci: Meia Via outra vez sem médico de família, José Gil promete luta sem tréguas. Referência ainda para Destacamento da GNR faz balanço positivo da sua acção.

Na opinião, comece-se com o cartoon de Hélder Dias. Depois, na opinião escrita, Carlos Henriques escreve FC Porto líder na primeira volta, Carlos Nuno, A porrada, Inês Vidal, Políticas à parte, José Ricardo Costa, CDS we can! e Vítor Lúcio Freire, Barack Hussein Obama.

Bom fim-de-semana e, se os deuses estiverem pelos ajustes, até à próxima edição do Jornal Torrejano.

A carta rogatória

Como já se percebeu há muito, não nutro qualquer simpatia política por José Sócrates. Considero mesmo que Portugal e o próprio Partido Socialista, embora este seja uma instituição profundamente doente, teriam muito a ganhar, se se livrassem da personagem. Mas há uma coisa que não compreendo: como é que a carta rogatória das autoridades policiais inglesas para as portuguesas surge hoje publicada no Diário de Notícias. O segredo de justiça em Portugal é a coisa menos secreta que se possa imaginar. Toda esta triste história do Freeport, telenovela ao gosto indígena, mostra bem a natureza da sociedade portuguesa e da fragilidade das instituições democráticas. Não estivéssemos na União Europeia, e um golpe militar - como há tempos disse o dr. Mário Soares - já teria posto cobro, ou estaria em preparação para o fazer, ao regime democrático, em nome da moralidade e dos bons costumes. Estas telenovelas têm, assim, um fundo trágico. Representam a manifestação de uma ameaça latente sobre o destino comum. Toda a gente percebe que certos comportamentos não trazem saúde às instituições, mas ninguém parece importar-se. É como se políticos, gente da justiça e jornalistas pensassem que se alguém tem de se afundar, então que vá todo o barco ao fundo. A minha convicção é que se as tropas, num acesso de desvario, saíssem à rua e tomassem conta da casa, não faltaria quem viesse para a rua aplaudir. Foi assim a 28 de Maio de 1926, foi assim a 25 de Abril de 1974, por que razão não seria assim agora?

29/01/09

Ninguém escreve na noite

Edward Hopper - The Night Window, 1928

Ninguém escreve na noite
o rumor dos passos que te anunciam.
Por vezes vens leve e silenciosa
como se foras uma sépala negra
onde me recolho ao amanhecer.

Se o vento empurra ainda a cortina
não é para a luz dali sair,
mas para que as trevas cheguem
e cubram de cansaço o coração
antes que a morte o venha adormecer.

Canto Ostinato on two pianos, Sandra & Jeroen van Veen

Douglas Sirk - The Tarnished Angels (1957)

As erínias

José Sócrates é, do ponto de vista estritamente político, uma das figuras mais detestáveis da democracia portuguesa. Nunca um governo e um governante foram tão arrogantes, nunca uma equipa governamental foi tão fria no esmagamento dos supostos "inimigos", nunca ninguém tratou com tão grande desprezo político órgãos de soberania de posição diferente da sua. A política do actual governo é uma montagem contínua de efeitos de propaganda, onde os governantes, com Sócrates à cabeça, parecem uma trupe de actores a dizer os respectivos papéis. Gostava só de lembrar a frieza e o cinismo político com que Sócrates, no caso do famigerado estatuto dos Açores, tratou o Presidente da República. Esta frieza maquiavélica, baseada no mero cálculo de oportunidades, tem dado alguns frutos ao nível das sondagens. O problema, porém, é que a manutenção sistemática da atitude exigiria dos seus executantes uma natureza divina, imune à falibilidade da condição humana. Nos tempos de Maquiavel, essa natureza "divina" era dada, aos governantes, pelo poder discricionário, onde a violência se prolongava até à prática sistemática do assassínio. Em democracia, a frieza maquiavélica é restrita e submetida ao império da lei humana. Quando ela é a principal arma de uma política, os deuses não tardam a lembrar aos mortais que governam outros mortais a sua verdadeira condição. Tenho esperança, para a sanidade mental de todos nós, que as suspeições que caem sobre o primeiro-ministro sejam falsas. Mas ao observador do fenómeno político, o calvário a que Sócrates tem sido sujeito parece ter uma dimensão metafísica, um ataque violento das erínias. Um rancor interminável parece ter caído sobre o primeiro-ministro, castigando-o, porventura injustamente aos olhos dos mortais e da justiça humana. Já tenho lido, a propósito do caso Freeport, que à mulher de César não basta ser, é preciso parecer. Mas aqui há ainda um equívoco. A um governante não basta ser e parecer ao mesmo tempo. É precisa que ele não desencadeie contra ele, pela arrogância do seu comportamento, o zumbido das erínias. E quando as fúrias são desencadeadas, sejam os motivos apresentados injustos, elas nunca são benevolentes. Os políticos bem precisariam, no lugar de fazerem o "curso" nos truques das juventudes partidárias, esses seminários de tiranetes impotentes, de estudar metafísica e fazer um curso completo de cultura clássica aplicada, fossem eles não perceber. São coisas que não ocorrem a um engenheiro.

Transparências

Transparência é uma coisa que não cai lá muito bem aos negócios públicos em Portugal. Talvez seja o senso comum indígena, o segredo é a alma do negócio, talvez a velha tradição católica, onde tudo se resolve no segredo dos confessionários. Isto entranha-se mas não se estranha e, quando é necessário que as instituições públicas e os concursos sejam transparentes, nós fazemos que sim, que sim senhor, mas o edifício, mesmo quando não é absolutamente opaco, é a dar para o translúcido: a luz passa, vêem-se silhuetas, mas de facto não se percebe nada do que se passa lá dentro. Consta que a Comissão Europeia está a chegar a estas mesmas conclusões: há problemas de transparência por cá. Por isso, decidiram levar o Estado português a tribunal por falta de transparência na selecção de fornecedores de telecomunicações. Segundo o Público, o «executivo comunitário instaurou processo contra Portugal no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeia, “por não terem sido designadas as empresas responsáveis pelo fornecimento dos serviços básicos de telecomunicações através de um procedimento de selecção aberto que não exclua a priori qualquer empresa – como exigem as regras comunitárias das telecomunicações".» São mesmo estranhos os tipos de Bruxelas. Querem procedimentos abertos e não exclusões a priori. Se eles vivessem em Portugal, descobririam que a nossa sociedade vive de procedimentos fechados e que mais de metade da população, falando por defeito, está excluída a priori. Talvez o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia venha civilizar, um pouco, os chefes indígenas.

Banalidades inúteis

As pessoas que ocupam cargos públicos deveriam resistir aos jornalistas e a si mesmas. Deveriam estar caladas. Ontem, foi o Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro a mostrar que se dá mal com as palavras e os conceitos: O caso Freeport que está sob investigação «está na moda, mas é um caso como tantos outros», afirmou ontem o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, ao ser confrontado com questões dos jornalistas sobre o processo. Uma questão de moda? Parece que nenhum nome de pessoa importante no regime aparece associado a ele. Aquilo que a imprensa vem deitando cá para fora estabelece uma relação, porventura muito injusta, entre o caso Freeport e o nome do actual primeiro-ministro de Portugal. Por isso mesmo, e contrariamente ao que diz o senhor Procurador-Geral, o caso não é mais um como tantos outros. Era bom que um Procurador-Geral evitasse este tipo de banalidades inúteis. O principal defeito dos portugueses não será, propriamente, a estupidez.

28/01/09

Nada sei da margem

Edward Hopper - The Wine Shop

Nada sei da margem
que sombreia o rosto,
nem em que impura fonte
hei-de beber o vinho
que escorre desse mosto.

Apenas canto
e oiço a tua voz fatal
no dia que desliza
e pela noite semeia
a luz de um vendaval.

E se nada tiver remédio,
o céu será deserto.
Mas, sobre a água, a ponte:
talvez do longe
ela faça o mais perto.

Mísia - Os velhos amantes

O sublime terrível

É uma expressão habitual, sobretudo na linguagem religiosa, atribuir a um homem que está a morrer a expressão de que vai do tempo para a eternidade.

Esta expressão nada de facto diria se por eternidade se entendesse aqui um tempo que se estende até ao infinito; porque assim o homem nunca sairia do tempo, mas passaria sempre de um para outro. Por conseguinte, deve por ela entender-se um fim de todo o tempo, com a ininterrupta duração do homem. Mas tal duração (olhada a sua existência como grandeza) deve, no entanto, considerar-se como uma grandeza totalmente incomparável com o tempo, da qual, sem dúvida, não podemos fazer nenhum conceito (a não ser simplesmente negativo). – Esta ideia tem em si algo de atroz, porque conduz, por assim dizer, à beira de um abismo do qual, para quem nele se despenha, nenhum retorno é possível [«No severo lugar, que nada atrás deixa volver, o segura a eternidade com fortes braços», Haller]; e, contudo, este pensamento tem também algo de atraente, pois não se pode deixar de para aí dirigir sempre o olhar aterrorizado [Não conseguem os corações saciar-se de ver, Virgílio]. É o sublime terrível, em parte pela sua obscuridade, em que a imaginação costuma agir com maior poder do que na claridade da luz.
[Kant, O fim de todas as coisas (1794)]

Previsões e revisões

Quarenta milhões de pessoas podem perder o emprego este ano, segundo a OIT. Segundo a previsão efectuada, no quadro mais grave da crise actual. Mas nós devemos estar preparados não para o pior, mas para a contínua revisão das previsões. Portanto, nada espantará que daqui a uns meses o quadro negro se situe lá para os 50 ou 60 milhões.

A telenovela bancária


São pastas sem documentos, planos inviáveis, bancos que ninguém conhece, pressões para revelações. Enfim, uma autêntica telenovela. Mas o que não se compreende muito bem é a súbita conversão à regulação do mercado e, muito menos, por que motivo deverá haver um plano para salvar bancos. Estranho liberalismo este. Por exemplo, não seria uma acção de decoro deixar falir o BPP e o BPN?

27/01/09

Philip Glass - Metamorphosis 1

Isto é o que estava a ouvir, no leitor de CD, há pouco, enquanto prosseguia uma jornada de trabalho iniciada por volta das 8:30 e ainda não concluída. E acho que não vou conseguir fazer tudo o que quero. A bela e regalada vida de um professor. Amanhã será o mesmo. Foi mesmo para dizer qualquer coisa aqui.

26/01/09

Não sei se a verdade é uma rosa

Edward Hopper - Sun in empty room

Não sei se a verdade é uma rosa
ou uma manhã de sol em casa vazia.
Às vezes julgo ser um vulcão,
outras uma voz sombria.

Se ilumina a parede,
mostra-me de onde partiste:
ali já não estão os teus cabelos,
nem as pálidas mãos
com que do meu desejo te despedias.

Estremeço, se olho pela janela,
e desconheço se és a luz da rua
ou apenas a sombra
onde se esconde o desejo da rosa,
em tuas mãos havia.

Giacomo Meyerbeer - Les Huguenots - "O beau pays" (Joan Sutherland)

Douglas Sirk - Write on the Wind - Dorothy Malone (1956)

Krisis e proairesis



Este é um pequeno retrato, um instantâneo, da situação a nível internacional. Há algumas coisas que merecem meditação:

O que se está a passar revela uma coisa que tendencialmente nós esquecemos: existir, viver, estar no mundo é uma coisa problemática e a vida, por mais que criemos direitos para a proteger, está constantemente à beira da crise. Se os direitos, neles incluídos os direitos socais, fazem sentido dentro do jogo da linguagem social, já não fazem qualquer sentido dentro do jogo da linguagem da natureza. Na natureza, sobreviveremos se nos conseguirmos adaptar. O problema é que esquecemos muitas vezes que as sociedades humanas são construções fundadas na natureza e que, por mais eficiência que se consiga na vida social, a natureza, com os seus humores variáveis, acaba sempre por irromper, mostrando a fragilidade da nossa existência. Seria bom, assim, compreender que as situações críticas não são uma especificidade dos sistemas capitalistas, mas do mero facto do homem vir ao mundo. O Iluminismo, tanto o de cariz liberal como o de feição marxiana, espalhou a ilusão de ser possível construir sociedades imunes às crises. Não podemos, pelo simples facto da nossa constituição ontológica o não permitir: a crise é inerente à natureza do homem e de tudo o que ele constrói.

Isso não significa, porém, que uma conduta descuidada e desregulada seja a resposta ao existir crítico do homem. As sociedades humanas não são uma espécie de duplicação de uma natureza anterior ao estado social, mas formas dos homens regularem as suas relações com a natureza, com os outros homens e, com o mundo sobrenatural (seja este real ou puramente imaginário). Se a crise se inscreve na estrutura ontológica do homem, a verdade é que o jogo cooperativo que é a sociedade visa diminuir ao máximo os perigos que, para o homem, representa uma natureza deixada sem vigilância. Quando se imagina o mercado, um produto social, como sendo regulado por leis "naturais", está-se a esquecer a essência social e reguladora de todas as instâncias sociais, entre elas o mercado. Uma das consequências pode ser, então, a seguinte: o mercado, em vez de produzir um papel regulador na distribuição dos bens que são necessários aos membros da espécie, pode arrastar muitos desses membros para situações críticas, porventura inultrapassáveis (veja-se: Continuam a faltar alimentos para 963 milhões de pessoas em todo o mundo).

Inerente à essência do homem é, ao mesmo tempo, a assunção da importância do risco e da regulação. No pensamento grego, à krisis responde a proairesis, isto é, a escolha deliberada. É na dimensão da deliberação que se encontra a resposta para a prevenção e solução das situações críticas. Deliberar implicar o uso da razão na ponderação, na busca do equilíbrio e da justa medida. Quando a razão se afasta da justa medida e se torna um mero instrumento de cálculo da eficiência, os actos tornam-se desrazoáveis e a capacidade dos homens fazerem frente às situações críticas, inerentes à existência, torna-se cada vez mais frágil. A crise financeira e o triste espectáculo a que se assiste deve-se, em última análise, a decisões de carácter filosófico que desvalorizam, tanto nas decisões individuais como nas institucionais, o papel da razão enquanto faculdade de deliberar em conformidade com o equilíbrio e a justa medida. O que mostra uma característica nem sempre muito clara da própria razão: a sua vulnerabilidade.

Perdi a fé

Desisto! Muito eu gostava de ter fé. Não estou a falar daquela fé que move montanhas, mas numa outra mais prosaica: a fé nos vaticínios económicos. Agora é o Presidente do Bundesbank (logo do Bundesbank), Alex Weber, que nos diz que a crise financeira internacional é muito mais ampla do que se esperava. Um pobre mortal, educado no temor e na reverência pela ciência económica, sente-se, a cada dia que passa, mais desgostoso e desorientado. Que ciência estaria mais apta, depois da morte de Deus, para dar sentido à vida e prever os fluxos favoráveis do nosso dinheiro, para atrair os bons espíritos da riqueza e afastar os demónios da perda e da desgraça? A Economia, gritará o leitor. Essa deveria ser a ciência exacta que nos guiaria na vida e na selva do mercado. Mas o que se passa é que, se prestarmos atenção, a Economia não é uma ciência, mas uma arte do vaticínio, tão eficaz e profunda como a astrologia, a leitura das mãos, ou a interpretação do voo dos pássaros. Tem, porém, algumas vantagens: contrariamente às outras artes suas irmãs, a Economia pode ir sempre refazendo as suas previsões, ora revendo em baixo isto, ora revendo em alta aquilo. É mais ou menos como se no totobola fosse permitido que alterássemos as apostas até ao fim dos jogos. Mas a vantagem maior é que, apesar desta desilusão constante que os economistas produzem, eles obtêm um efeito extraordinário. Quanto mais se enganam, quanto mais desconhecem e quanto mais revisões fazem, maior é o prestígio de que gozam na esfera pública. É como se, utilizando ainda uma metáfora futebolística, aqueles avançados que falham todos os remates e não marcam um golo que se veja, fossem considerados os melhores e mais bem pagos. Por mim, impediria a Economia de ser ensinada no sistema universitário. Permitia apenas um instituto de artes da adivinhação, onde se ensinaria economia, ao lado da astrologia e da leitura de búzios.

25/01/09

Alban Berg Quartet - Beethoven String Quartet Op. 18 No.1 1st mvt

Limites

Onde reside o principal problema de Barack Obama? No mesmo sítio onde reside o principal problema de todos os recém-eleitos. A sua agenda é marcada por aquele que é substituído no cargo. Diz-se que Obama está a cortar com os principais vícios da administração Bush. É provável, mas isso apenas signifca que a agenda de Obama, como no caso de Guantánamo, está dependente da agenda de Bush. Quando toda a gente reclama um caminho novo, os recém-eleitos apenas podem caminhar, mesmo que em sentido inverso, pela estrada desenhada pelo inquilino anterior. Eis um dos limites da acção política: cada novo príncipe, digamos assim, vai encontrar um mundo velho e problemas antigos. Não há redenção possível nem um mundo novo, quanto muito algumas alterações no estilo e, por vezes, uma ou outra inversão de sentido. O que pode ser suficiente, diga-se de passagem.

Mais tarde

Edward Hopper - Autovía con cuatro carriles
Mais tarde,
quando o Verão chegar,
grávido de metáforas fúteis,
deixem-me os olhos a pairar
sobre a estrada vazia,
cansados de cores e palavras inúteis.

Mais tarde,
passado já o Outono,
se Inverno ainda tiver,
deixem-me a alma ao abandono;
tão frágil e tão fria,
nem um deus a há-de querer.

Mais tarde,
depois do tempo acabar
e negro for o paul,
deixem-me a voz a murmurar
à luz velada da invernia
ou nas planícies viradas ao sul.

Douglas Sirk - Imitation of Life (1959)

Continua a minha viagem pelo universo melodramático de Douglas Sirk.

Escrever na terra

(Imagem retirada do blogue Arestas)

No episódio biblíco da mulher adúltera (Jo 8, 1-11), aqui citado ontem, há, para além da não condenação da mulher, uma outra coisa que me deixa perplexo e que merece meditação. Quando os Escribas e os Fariseus trouxeram a mulher apanhada em flagrante delito, disseram a Cristo que a lei mosaica mandava apedrejar tais mulheres e, de seguida, perguntaram-lhe: Tu pois o que dizes? A resposta de Cristo foi inclinar-se e escrever na terra. Só perante a insistência é que, endireitando-se, lhes dá uma resposta oral: o que estiver sem pecado, que seja o primeiro a atirar uma pedra. Depois, inclinou-se e voltou a escrever na terra. O que causa perplexidade é este escrever na terra. Como interpretar tal acto?


Esta escrita de Cristo só se pode compreender na relação com as personagens dos Escribas e dos Fariseus. Os primeiros eram doutores da lei mosaica, os segundos, defensores de uma aplicação estrita dessa mesma lei. Uma primeira leitura da escrita de Cristo é aquela que é mais corrente: a lei mosaica deveria ser substituída por uma nova lei, a que estivesse fundada no perdão. Há uma confrontação clara entre duas leis, dois discursos e duas regras morais para a acção. Mas aquilo que é problemático, na minha óptica, é o facto do discurso ser agora impresso na terra, no pó e não na pedra (símbolo de eternidade). Isto abre uma outra perspectiva de confronto, porventura mais interessante: à lei eterna dada por Deus a Moisés contrapõem-se, agora e por iniciativa de Cristo, o filho de Deus, uma lei temporal, evanescente, mutável e adaptável às situações. A intemporalidade e eternidade das coisas terrenas desaparece, como desaparecem as palavras que escrevemos no pó da terra. A lei, inclusive a lei moral (Cristo não parece ser um kantiano), torna-se, pelo acto de Cristo, puramente histórica, algo que se escreve, mas que o tempo apaga. As leis que regem os homens não são eternas, mas resultam das circunstâncias históricas e do grau de consciência dominante em cada época (quem estiver livre de pecado, que atire a primeira pedra). Por este acto, Cristo rouba a humanidade à ciclicidade mítica, reflexo da imutabilidade e perenidade do divino, e fá-la entrar na linearidade histórica. É disto que nós, ocidentais, somos herdeiros: Cristo trouxe-nos a história e as suas metamorfoses.

A conquista da Europa



O bispo de Alepo, na Síria, disse hoje, em Fátima, algumas coisas interessantes: "no Islão há tendências fundamentalistas que fazem tudo, directa ou indirectamente, para fazer os cristãos partir" do Médio Oriente. Mas a situação não fica por aqui: "há um discurso nos 'media' muçulmanos, nas mesquitas, nas escolas" de que o Islão está no "início da conquista da Europa". "Na Europa, o secularismo e a exclusão de cristãos inquieta-nos e reforça os muçulmanos", sublinhou o prelado, lembrando o que os muçulmanos dizem: "Já não há fé, nem família, nem moralidade na Europa. Pacificamente, vamos pregar-lhes o Alcorão e vamos todos convertê-los ao Islão".

Contrariamente ao que se pode pensar, e há muito boa gente a pensá-lo, o ateísmo e o agnosticismo generalizado não são vacinas contra o fanatismo religioso. Pelo contrário. A evacuação do espaço público europeu da presença do cristianismo é uma janela de oportunidade para a penetração do Islão. O ateísmo ou o agnosticismo são exercícios intelectuais complexos e inerentes a minorias restritas, mas a fé e a crença no além são inerentes aos grandes grupos sociais. A diminuição do cristianismo na Europa é um perigo real e efectivo. O sentido que ele dava à vida das pessoas desapareceu, mas essa ânsia de um sentido transcendente não desapareceu. Perante o desespero, as grandes massas acabarão por se entregar nos braços de quem tiver um programa claro e um rumo firme em direcção à transcendência. Não por acaso, as conversões de ocidentais ao Islão estão a crescer, mesmo depois dos actos terroristas dos fundamentalistas. O Islão tem um programa de limpeza moral e isso acaba por agradar às pessoas, mesmo àquelas de quem se poderia dizer que possuem uma moral duvidosa. Talvez ainda não se tenha percebido bem o fascínio que reside na ideia de retorno do filho pródigo. Saliente-se ainda uma coisa para os mais distraídos: as alterações nas configurações ideológicas são muito mais rápidas do que eram há apenas umas dezenas de anos atrás. Neste mundo volátil vai acabar por imperar a força que fomenta e sustenta convicções. É desagradável? Sim, é bastante desagradável...

Militares e professores

O Sol on-line noticia que a Marinha tem mais almirantes que navios. Parece uma notícia factual. O que é interessante, porém, é a reacção dos comentadores, a vox populi e, como todos sabemos, vox populi, vox Dei. Um comentário é elucidativo: «Este é juntamente com os professores o maior cancro da nossa sociedade e não é só os almirantes é a tropa toda. Depois temos que comprar barquinhos e aviões para os parasitas brincarem com o nosso dinheiro.» A coisa é bastante simples: fechem-se as escolas, os quartéis, talvez os hospitais, os tribunais, não esqueçamos de fechar o parlamento, as esquadras de polícia e, já agora, os hospitais e centros de saúde. Dispensem-se todos esses parasitas, gente ignara que julga dever receber um ordenado pelo serviço que presta. Uma coisa é discutir a eficiência do serviço público, outra coisa é a cultura de ressentimento que existe na sociedade portuguesa contra o próprio Estado. Mas este ressentimento, que esconde uma espécie de ódio, é apenas a outra face do desejo de depender do Estado. É um caso psicanalítico.

O olhar omnipresente

(Imagem retirada de Blogmação)

Em relação a este paradoxo do olhar omnipresente, aconteceu há pouco tempo uma coisa curiosa com um amigo meu na Eslovénia: uma ocasião, voltou ao escritório à noite, porque precisava de terminar um trabalho; antes de acender a luz, viu, no escritório que ficava do outro lado do pátio, um par constituído por um administrador (casado) e a respectiva secretária a fazer amor apaixonadamente em cima da mesa. No meio da sua paixão, esqueceram-se que havia um edifício do outro lado do pátio, do qual podiam ser vistos com nitidez, dado que o escritório estava brilhantemente iluminado e as enormes janelas não tinham cortinas… O que o meu amigo fez foi telefonar para o escritório da frente e quando o administrador interrompeu por breves momentos a sua actividade sexual e foi atender o telefone, murmurou maldosamente para o aparelho: «Deus está a vê-los!» O pobre homem caiu para o lado e quase teve um ataque cardíaco… A intervenção desta voz traumática, que não pode ser directamente situada na realidade, talvez seja o mais próximo que podemos chegar da experiência do Sublime. [Slavoj Zizek, Lacrimae Rerum, pp. 169]

24/01/09

Vision of Hildegard von Bingen-voice Hana Blochová

Desagregação


No caso Freeport há uma coisa que já é certa: ou a política, ou a justiça ou a comunicação social está a andar ou andou por caminhos desagradáveis ou mal cheirosos, digamos assim. Seja qual for, as instituições democráticas sofreram um novo abalo. Torna-se cansativo viver em Portugal, onde ninguém acredita verdadeiramente em ninguém. Uma opinião pública incrédula e um país a viver permanentemente sobre o princípio de suspeita é o caminho certo para a desagregação das instituições.

Michael Powell & Emeric Pressburger - A Matter of Life and Death (1946)

Interrompi a viagem pela filmografia de Douglas Sirk, para uma intromissão na dos realizadores britânicos Michael Powell e Emeric Pressburger. A Matter of Life and Death é uma reflexão sobre como o amor é capaz de suturar os mundos mais distantes, sejam os que estão separados por um oceano, sejam aqueles cuja fronteira divide o reino dos vivos do reino dos mortos. A Matter of Life and Death é uma belíssima, comovente e, ao mesmo tempo, divertida obra de arte.

Nem eu também te condeno


1 Porém Jesus se foi ao monte das Oliveiras. 2 E pela manhã cedo tornou ao Templo, e todo o povo veio a ele: e assentando-se, ensinava-os. E trouxeram-lhe os Escribas e Fariseus uma mulher tomada em adultério: 4 E pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi tomada no mesmo feito, adulterando. 5 E na Lei nos mandou Moisés, que as tais apedrejadas sejam; Tu pois que dizes? 6 E isto diziam eles, atentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas inclinando-se Jesus, escrevia com o dedo em terra. 7 E como perseverassem perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de vosoutros sem pecado está, [seja] o primeiro que pedra contra ela atire. 8 E tornando-se a inclinar, escrevia em terra. 9 Porém ouvindo eles [isto,] e redarguidos da consciência, saíram-se um a um, começando dos mais velhos até os últimos; e ficou só Jesus, e a mulher que no meio estava. 10 E endireitando-se Jesus, e não vendo a ninguém mais que a mulher, disse-lhe: Mulher, aonde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? 11 E disse ela: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais. [Jo 8, 1-11]

Lembrei-me desta passagem de João, por causa de um texto de Henrique Raposo no Expresso de hoje:

Em “Desonrada” (Livros do Brasil), a paquistanesa Mukhtar Mai conta a sua história sinistra. Aldeia, começou a circular o seguinte boato: o irmão mais novo de Mai terá namoriscado, sem permissão, uma rapariga do clã superior. Em resposta, o tribunal da aldeia decretou que, para compensar o crime do irmão, Mai deveria ser violada pelos homens do clã superior. E assim foi.

Convém ter em atenção que esta misoginia bárbara não atinge apenas os cantos mais obscuros do Islão. Junto do chamado ‘Islão moderado’ também encontramos casos semelhantes. Em “Despedaçada” (Campo das Letras), a franco-marroquina Touria Tiouli descreve como foi presa por ter sido violada no Dubai. É isso mesmo cara leitora: Tiouli foi violada por três gandulos, e as autoridades, em vez de perseguirem os violadores, acusaram Tiouli de “relações sexuais fora do casamento” um crime gravíssimo no moderníssimo Dubai. A vida das mulheres muçulmanas é, de facto, um “monte de sarilhos”.
[Henrique Raposo, Expresso, 24/01/2009 ]

Como se sabe, em certas zonas dominadas pelo Islão, o castigo, ainda hoje, para o adultério é a lapidação (o que mostra a filiação do islamismo na tradição judaica). Do ponto de vista da consciência dos direitos individuais, isso representa um atraso relativamente ao Cristianismo de cerca de dois mil anos. Nestas histórias edificantes, há duas coisas que me deixam perplexo. Em primeiro lugar, a obsessão das religiões, ou de certas religiões, com o sexo. Mesmo o catolicismo actual não deixa de viver obcecado com a sexualidade e as práticas sexuais das pessoas. Em segundo lugar, o olímpico desprezo de Cristo pelo assunto. Cristo pergunta à mulher: ninguém te condenou? E perante a resposta negativa, responde-lhe: Nem eu também te condeno; vai-te e não peques mais. Como se dissesse, não me aborreçam mais com histórias de sexo. Eu tenho mais que fazer do que tratar de psicanálise.

Ruínas tecnológicas


O turvo destino da Qimonda e da Delphi mostra a essência da política do actual governo: o caminho para a falência. O problema começa quando se toma os desejos pela realidade e se se deixa envolver pela retórica da propaganda, como se fosse possível que esta criasse um admirável mundo novo. O que se está a descobrir, todavia, não é sequer os escombros do velho mundo anquilosado da indústria portuguesa, mas as ruínas do universo fantasmagórico e virtual do plano tecnológico. O país faz lembrar aqueles que se aventuram, mar dentro, sem saber nadar: esbracejam e gritam quando perdem o pé.

23/01/09

Janis Joplin - Mercedes Benz

Num remake deste blogue, volta o Mercedes-Benz, da Joplin. Ok! Todos sabemos que os Mercedes já não são Benz, e que, hoje em dia, quando alguém calça umas belas luvas pretende mais do que um Mercedes. Os tempos mudam. Estas histórias de luvas, porém, têm a ver com a magna questão da derrelicção, do abandono do Filho pelo Pai. A cançoneta da Joplin bem explica: «Oh Lord, wont you buy me a mercedes benz ?» Mas o Senhor não compra, o Senhor não quer saber dos desejos daquele seu filho e abandona-o. É então que ele pergunta: mas que fazer, se «my friends all drive porsches»? Será que «I must make amends»? Será que terei de «Work(ed) hard all my lifetime»? Sem «help from my friends»? Ó não, os amigos são para as ocasiões e de ocasião. Adandonado pelo Pai, um pobre filho, se for curioso e empenhado, sempre encontrará os amigos que o enluvarão. «So oh lord, wont you buy me a mercedes benz ?» Se Deus não nos tivesse abandonado, se aquecesse não o coração, mas as nossas mãos, para que seriam precisas tantas luvarias? Thats it!

Douglas Sirk - All I desire (1953)

Contínua a minha viagem pelo universo melodramático de Douglas Sirk, um realizador excepcional, como é excepcional aqui Barbara Stanwick

Cheiros e imagens


E se uma imagem de probidade e honestidade pessoais ainda viesse a ter peso eleitoral? É que anda por aí aquele mau cheiro que empestava o reino da Dinamarca.

Fazer voz grossa

Sócrates, o grande timoneiro que Deus, em desespero de causa, nos deu, disse que não gostou de ver deputados do PS a votar a moção de suspensão da avaliação de professores, uma iniciativa do CDS-PP. Eu percebo perfeitamente o seu desgosto. Com que direito há deputados que, em vez de fazerem o que o feitor lhes manda, são homens independentes, homens que agem em conformidade com as suas convicções e a sua consciência? Isso é inaceitável, e o mordomo deve pôr, de imediato, o pessoal menor na ordem. Quem lhes disse que o parlamento é o lugar do pensamento livre e autónomo?

Por mais que o tempo passe, o paternalismo do dr. Salazar não abandona os nossos candidatos a regentes. Falta-lhes, claro, o talento do homem de Santa Comba. Queira-se ou não, fazer um curso na Universidade de Coimbra não é a mesma coisa do que tirá-lo na Independente. Mas isso são pormenores, o importante é engrossar a voz. Já agora, não era Salazar que desprezava o parlamentarismo?

Índices


Em 1973, no final do marcelismo, Portugal era o 24.º país no Índice de Desenvolvimento Humano, da ONU. Em 2006, Portugal caiu do 29.º para o 33.º lugar (ver aqui e aqui). O que vale esta informação? Poderá sustentar que a ditadura, enquanto regime político, é melhor que a democracia? Não me parece. Mas talvez diga alguma coisa sobre nós, sobre a qualidade da nossa democracia e da classe política que deixamos que nos represente. Mas, fundamentalmente, diz muito sobre as ilusões que se espalharam desde 1974. Desde a via original para o socialismo até à ilusão de que a entrada na União Eurpeia nos dispensava de trabalhar e de pensar. No meio de toda esta mediocridade, está a ilusão da educação, tal como o poder político a concebeu nos últimos 34 anos. Nas escolas portuguesas molda-se, todos os dias, o carácter dos alunos que, tornando-se cidadãos, hão-de conduzir o país lá para o 50.º ou 60.º lugar. Bom seria haver também um Índice da Produção Política de Ilusões. Qual seria o nosso lugar no ranking?

Jornal Torrejano, 23 de Janeiro de 2009


A opinião começa com Carlos Henriques que escreve Taça da Liga - pouco interesse. Depois, João Carlos Lopes escreve Bombeiros, José Ricardo Costa, Um mundo livre de crianças, Miguel Sentieiro, Entrada nos "Entas", e Santana-Maia Leonardo, Em defesa do Robin dos Bosques.

Nada mais havendo a tratar, encerra-se aqui a sessão semanal sobre o Jornal Torrejano. Bom fim-de-semana.

Juventudes



A juventude é um estádio da vida interessante. O seu interesse resulta da combinação entre a efervescência hormonal, a ignorância descabelada e, por vezes, a estupidez mais acintosa. Imagine uma aula onde o professor está a ensinar Platão ou Descartes, a explorar os textos desses autores, a expor as suas teorias e respectivos argumentos. É certo e sabido que terá de ouvir a um adolescente ou pós-adolescente um comentário onde ele comunica ao mundo que não concorda com nada daquilo. Comunicações destas deixam-me logo de sobrolho franzido e a perguntar ao aluno se alguém lhe tinha pedido a concordância (hoje em dia, retraio-me perante a força das teorias pedagógicas que transformaram a ignorância, a estupidez e a falta de vergonha e de humildade em virtudes muito apreciadas na escola). Mas tudo isto vem a propósito daquilo que o dr. Mário Soares disse, e bem, sobre o chamado casamento homossexual. Ora, como todos sabemos, o dr. Mário Soares, gostemos ou não dele, está para a política nacional como o Platão ou o Descartes estão para a história da filosofia.

Tendo em consideração aquilo que a escola portuguesa vem destilando, não é de admirar que o chefe da Juventude Socialista, certamente uma irrelevância que amanhã terá imenso relevo, se apressasse a dizer que o dr. Mário Soares estava enganado. E esclareceu o povo sobre a vexata quaestio da relação entre a esquerda e o dito casamento entre pessoas do mesmo sexo. Parece que o problema não é apenas da esquerda radical, mas de toda a esquerda. O génio em formação teve mesmo a humildade das pessoas profundas, ao partilhar connosco este notável pensamento: «há uma diferença muito grande em ser radical ou estar à frente». Afinal o problema é mesmo uma questão de posição. Uns estão à frente, outros atrás. Compreende-se. Quando o assunto mete questões de sexo, o atrás e o à frente sempre têm a sua importância. No fundo, é um problema de orientação no espaço e, tanto quanto se sabe, o dr. Mário Soares é formado em Direito e Histórico-Filosóficas e não em Geografia. Se ele fosse geógrafo talvez se desenganasse.

22/01/09

David Lynch - The Straight Story

Douglas Sirk - Magnificent Obsession -Jane Wyman & Rock Hudson (1954)

Uma questão de legitimidade

Enquanto Barack Obama assinava o decreto que põem fim à prisão de Guantánamo, a Al Qaeda apelava a ataques contra Inglaterra e, claro está, os EUA. Apesar de se estar já habituado à retórica terrorista, é reconfortante sentir que do lado ocidental os direitos humanos não foram esquecidos. A luta contra o terror torna-se assim mais legítima. E esta legitimidade dada pelo respeito a valores essenciais não é, no combate político contemporâneo, coisa sem importância. Começa bem Obama.

O dia de hoje

Abel Manta - Apolo e as Musas (1934)

O dia de hoje era, na Grécia clássica, o dia de Apolo, deus solar, protector das artes e da poesia. Prova maior do fim dos tempos clássicos é o estado do tempo. Não o sorriso de Apolo, mas a fria chuva. O 22 de Janeiro parece ser propício para o nascimento de filósofos, o que permite adiantar que a ligação entre Apolo e a filosofia, iniciada com Sócrates, se tem mantido. Assim, em 1561, nasceu Fancis Bacon, em 1592, Pierre Gassendi, em 1729, Gotthold Lessing e, em 1891, Antonio Gramsci. Se consultar aqui, descobrirá uma lista de nascimentos importantes no dia de hoje. Mas a dimensão apolínea contínua bem para além da filosofia. Por exemplo, nasceram vários cientistas importantes. Para além do próprio Gassendi, viram a luz, no dia de Apolo, os físicos André Marie Ampère (1775), Lev Davidovich Landau (1908) e Allan J. Heeger (1936), os escritores Lord Byron (1788), August Strindberg (1849) e Robert E. Howard (1906). Isto para não repetir o Gotthold Lessing, ou para não referir esse cineasta maior que se chama D. W. Griffith (1875). Mas, como muito bem sabia Nietzsche, há uma estranha ligação entre o deus Apolo e o deus Diónisos, o que explica o nascimento, também nesta data, de Ava Devine (1974), actriz pornográfica norte-americana. Cada época tem os deuses e os heróis que merece. Então, bom dia de Santo André.

21/01/09

O tempo da responsabilidade

Ontem, assisti com os meus alunos do 12.º ano à tomada de posse de Barack Obama. Todos eles tinham consciência do momento histórico que se estava a viver e como ele se integrava na temática que se está a trabalhar nas aulas, a tolerância. No discurso de Obama (o que eles protestaram pela tradução simultânea que apagou o inglês do Presidente...), há uma palavra essencial, que, espero, tenha sentido para todos nós: responsabilidade. A liberdade individual assenta na capacidade do sujeito em responder por si mesmo. Se estes meus alunos pertencem já a uma elite disposta a responder por si, a deixar as desculpas e os álibis de lado, a escola em Portugal ainda precisa de fazer um longo caminho até que este sentimento seja partilhado pela generalidade dos alunos. O problema, porém, é que esta atitude de responsabilidade, onde se funda a liberdade do indivíduo, é também pouco partilhada pelos adultos. No fundo, ainda se acredita que a nossa vida depende essencialmente de entidades mágicas, como o estado, os outros, a divina providência ou a caixa de previdência. Não tenhamos ilusões, os tempos que aí vêm serão propícios para muitas coisas, menos para soluções mágicas. O tempo da responsabilidade, foi isso que o príncipe americano veio ontem anunciar ao mundo.

20/01/09

Atahualpa Yupanqui - Duerme negrito

Emblemas e questões críticas


Sexta-feira, vota-se uma proposta do CDS-PP para suspender o actual modelo de avaliação de professores. Segunda a Lusa, a direcção da bancada parlamentar do PS está a mobilizar em grande força os deputados, deixando pairar no ar uma qualquer ameaça metafísica, talvez a demissão da inefável direcção dessa bancada. Mas o melhor vem do ministro Santos Silva. Diz que esta questão «é "uma reforma emblemática" e uma "questão crítica" para o cumprimento do programa do Governo». Melhor fora que estivesse calado.

Se esta reforma é o emblema da política do governo, então bem pode limpar as mãos à parede. Uma reforma que gerou a oposição de mais de 90% dos seus executantes, uma reforma que começou na produção de um monstro burocrático e que acaba numa coisa tão simples como esta: um professor pode ser considerado bom, independentemente da sua prática pedagógica e científica. Uma reforma que valoriza coisas tão voláteis como "a participação dos professores na escola" (como se ensinar não fosse a única e efectiva forma de um professor participar na vida da escola), ou a "relação com a comunidade" (o que é isto?), é o espelho fiel do delírio e da incompetência institucionalizada.

E um programa de governo que depende criticamente deste monte de incongruências, não é um programa de governo, mas o alinhamento de umas quantas frases para serem repetidas à saciedade por papagaios imbecis. Como pôde o sociólogo Santos Silva, pessoa que eu, em tempos, julguei merecer alguma consideração intelectual, acabar a defender coisas como estas?

Progresso moral da humanidade?


A investidura de Barack Obama como 44.º Presidente dos Estados Unidos será mais um sintoma do progresso moral da humanidade? Kant dizia que não havia provas desse progresso moral, mas havia sintomas indiciadores. Por exemplo, as regras de civilidade ou a Revolução Francesa, apesar do espectáculo deplorável. A investidura de um negro como Presidente duma república, ainda por cima a maior potência mundial, que, ainda há poucos decénios permitia o racismo, bem pode figurar entre esses sintomas indiciadores do progresso moral da humanidade. Um pouco de fé na razão, mesmo para um céptico das coisas humanas, bem pode servir de consolo ao frio que se faz sentir nestes tempos.

19/01/09

Um mau sinal

Hoje houve uma nova greve de professores. Dei uma volta, há instantes, por uma boa dúzia de blogues de referência, na área da intervenção política ou social. A greve e a contestação dos professores estava completamente ausente. À direita, à esquerda e ao centro. Nem gente compreensiva e simpática para com a contestação dos docentes, nem gente a espumar de raiva contra os grevistas. Nada. Só em dois encontrei referência à entrevista de Alice Vieira ao Público (ver mais abaixo). Isto favorece quem? À partida parece favorecer o Ministério da Educação. Mas a questão é mais funda. Parece estar a instalar-se, na esfera pública, um desinteresse absoluto pela questão educativa. Os professores não ganham nada com isso. Os seus alunos ainda menos. Um mau sinal.

Biber - Sonata 6 from Mystery Sonatas

Entrevista a Alice Vieira

Não faria mal que todos meditassem na entrevista dada pela escritora Alice Vieira ao Público. Quando digo todos, quero dizer mesmo todos: pais, governantes, professores, cidadãos em geral. Como ela diz, aconteceu qualquer coisa terrível na educação nos últimos 30 anos: "tudo tem de ser divertido, nada pode dar trabalho". Foi o triunfo do eduquês e da psicologia light para parolos. Das palavras da escritora apenas relativizaria aquelas que subentendem uma boa intenção ministerial. Quanto ao que diz dos professores, sendo professor e estando hoje em greve, subscrevê-lo-ia. As pessoas precisam de compreender que o que correu mal não foi apenas nos ensinos básico e secundário. O ensino superior está também profundamente doente.

18/01/09

Harrison Birtwistle : Tragœdia

Graças à Ivone (Ponteiros Parados), tive acesso à trilogia de Ésquilo, Oresteia. Para lá da excelência teatral encarnada na Oresteia Company, dirigida por Peter Hall, descobri a música de Harrison Birtwistle, um compositor contemporâneo que não conhecia. Mais um motivo de gratidão para com a Ivone Mendes.

O problema das luvas


Se for verdade isto, o que poderemos concluir do caso Freeport? Não me ocorre nada a não ser que há gente em Portugal que tem trabalho que precisa de proteger as mãos para as não estragar, ou que tem má circulação nessas mesmas mãos e, por isso, necessita de as aquecer. Também nos diz, tendo em conta as avultadas quantias em jogo, que as luvas são um peça de indumentária cujo preço anda pela hora da morte.

17/01/09

A derrota de Platão



Acabou-se! Eis a vantagem da democracia: a limitação de mandatos. Foram oito anos de difícil aprendizagem para o mundo, foram oito anos de equívocos, foram oito anos de oportunidades perdidas, foram oito anos em que o Ocidente se tornou mais fraco. Bush, porventura, nunca perceberá que é um derrotado, apesar das vitórias eleitorais. Há, nesta passagem de Bush pelo poder, outros derrotados: os intelectuais. Rir-se-á o leitor. Como é possível ver na presidência deste Bush uma derrota dos intelectuais? Logo deste que parece não ter uma ideia na cabeça. O problema está aí. Por não as ter, teve necessidade de se rodear de uma elite de intelectuais neo-conservadores. Estes trouxeram todo o esquematismo do pensamento para o domínio da acção política. Os resultados estão à vista. A presidência de Bush é mais uma prova contra o meu filósofo preferido, Platão. Sempre que os intelectuais tentam trazer o mundo das ideias à terra (ó como Marx também sonhou com isso...), o desastre é certo. Não há bandeira ou comoção que nos salve.

Votar nos socialistas?



Consta que o futuro programa do PS inclui um referendo sobre a regionalização. Eis mais um bom motivo para não votar nos socialistas. Como tenho dito, em abstracto, a regionalização até é uma ideia interessante. Mas no contexto actual é mais do que um erro colossal, é um atentado contra a unidade nacional. Quais são os traços essenciais desse contexto: 1. a retórica pós-moderna do fim do Estado-Nação e o esforço de inúmeros actores, falemos assim, para provarem que vivemos numa época pós-nacional; 2. a avidez dos comissários partidários de província, a necessidade de partilharem um pedaço significativo do bolo e de terem uma migalhas substanciais para distribuírem pelos vassalos; 3. o recente episódio do estatuto da região autónomo dos Açores; 4. os anseios, que começam a desenhar-se, de tornar Portugal num estado federado. Estas realidades bastam para pensar não duas vezes, mas vinte vezes antes de se votar na regionalização. A retórica denunciadora do centralismo lisboeta apenas encobre o desejo de pôr as garras em parte substancial do orçamento, para criar pequenos feudos onde suseranos de província ditem a pequena ordem que lhe aquece a alma e exalta os ânimos.