20/02/09

Marxs há muitos

António Vilarigues escreve, no Público de hoje, um artigo com o título “O meu Marx é diferente”. Refere-se às re-leituras que, um pouco por todo o lado, se estão a fazer da obra marxiana. Vilarigues acha-as uma “deturpação objectiva do seu (de Marx) pensamento”. Eu não espero já que pessoas como Vilarigues entendam uma coisa muito simples: os grandes autores são para serem interpretados, deformados, deslidos, treslidos. Não há nenhuma leitura canónica de Marx, como não há de Platão, nem de Espinosa, nem de Kant ou de Wittgenstein. Quero, porém, comentar algumas passagens do artigo em causa, e mostrar que o Marx de Vilarigues é efectivamente perigoso para a espécie humana.

«O meu Marx é o que converteu a utopia em pensamento político e este em acção revolucionária.» Esta frase bastava para perceber a essência utópica da acção dita revolucionária. Mas como salientei noutro post, a utopia é o princípio do crime político organizado. Foi também devido ao carácter utópico do marxismo que as experiências do dito “socialismo real” foram criminosas. Transformar a utopia em pensamento político e em acção revolucionária não é uma coisa bondosa. Pelo contrário, é dar armas à imaginação para que ela suprima a realidade e se entregue à volúpia daquilo que é meramente utópico (à letra, o que não tem lugar).

O Marx de Vilarigues foi «o que descobriu as leis objectivas do desenvolvimento social e provou cientificamente a inevitabilidade da superação do capitalismo e do triunfo do socialismo.» Mas como é possível, nos dias de hoje, dizer uma coisa destas? Mas que leis objectivas são essas? Onde é que podemos testá-las? Onde é que está a prova científica da inevitabilidade (sic) da superação do capitalismo e do triunfo do socialismo? Que ciência é esta? Apenas uma pseudo-ciência que produz proposições metafísicas que não podem ser testadas ou falsificadas, na linguagem de Karl Popper. Não, Marx não descobriu quaisquer leis do desenvolvimento social. Marx apenas fez um conjunto de proposições metafísicas, ao nível daquelas que afirmam a existência de Deus ou a imortalidade da alma. Marx, como muitos autores do século XIX, vivia fascinado pela mecânica clássica de Newton. Pensou que um projecto idêntico poderia ser aplicado à sociedade. Não podia. Marx não o sabia, mas nós no século XXI sabemo-lo. Mas como as proposições de Marx são metafísicas, ainda há pessoas que acreditam nelas por uma questão de fé, mas fé essa que é travestida de ciência.

O Marx de Vilarigues é «o que analisou a vida social como algo que está em permanente movimento. O Marx determinista, mas não fatalista.» Sim, é verdade. Um Marx determinista. Mas esse determinismo marxiano é o sintoma não apenas do seu mecanicismo social, como do desprezo pela liberdade. Se nós pensarmos que a sociedade se desenvolve segundo leis necessárias e inevitáveis, segundo uma determinação legal análoga à natureza, então não há liberdade humana. Resta-nos esperar, como uma fatalidade, pelo socialismo que há-de vir. Aliás, ele veio, mas parece que se aborreceu e foi-se embora.

Para dizer a verdade, este Marx de Vilarigues, e daqueles que pensam como ele, não serve para grande coisa. Marx é um grande pensador e, como todos os grandes pensadores, é um pensador que produziu um pensamento cheio de perigos. O perigo faz parte da essência do pensamento. O perigo do pensamento marxiano reside na utopia que se esconde sob a mitologia da acção revolucionária; reside também na ilusão da cientificidade da sua filosofia. Malgré soi, Marx era um metafísico.

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