24/09/11

Cantar de Emigração


Esta é uma das canções de intervenção de que sempre gostei. O poema é da poetisa galega Rosalía de Castro e a música, de José Niza, desaparecido ontem. A voz, de Adriano Correia de Oliveira. Que melhor canção se poderia dedicar a José Niza? Este parte, aquele parte, e todos, todos se vão... Infelizmente.

O retrato de um país


Em pouco tempo, o sempre tão assertivo, como agora se diz, dr. Jardim viu-se obrigado a refazer o discurso duas vezes. Mas tudo isto é irrisório. Sejam as peripécias vocálicas do senhor, sejam os 5 800 milhões ou 7 000 milhões da dívida da Madeira, nada altera o essencial. O dr. Alberto João Jardim e a Madeira são o retrato fiel de Portugal. São o símbolo da nossa estadia na União Europeia. O que se está a descobrir na Madeira - e que todo este coro de virgens murchas, que agora se atiram ao líder madeirense, já sabia - é o que se passa em cada recanto do território nacional. O azar do dr. Jardim é que o pessoal da troika gosta imenso do dinheirinho que pôs cá e está-se nas tintas para as ameaças da independência da Madeira. O dr. Jardim ganhará as eleições, mas está acabado. Mas nem nisso difere do resto do país.

23/09/11

Thomas Mann, Os Buddenbrook (4)



Os Buddenbrook são um reflexão sobre a estultícia das linhagens. Em quatro gerações, uma família de comerciantes ergue-se, atinge o apogeu, declina e desaparece sem deixar rasto. O último da estirpe morre de tifo aos quinze anos. O tifo, porém, não era mais que o temor sentido por uma actividade que chocava a sua sensibilidade musical. Isto não significa que, dentro das famílias, não haja, por vezes, uma inclinação para a repetição de certas funções sociais. Significa apenas que isso se deve à pressão do meio, às vantagens que essa família foi conseguindo acumular, ou às desvantagens que uma outra não soube ou não pôde evitar. Linhagens são exercícios da imaginação, devaneios sobre uma continuidade de aptidões que não existe, uma tentativa desesperada de controlar o futuro e o medo que se abate sobre cada família pela entrada de um novo membro. O princípio monárquico, a enfatização das genealogias, a afirmação da estirpe são ritos de exorcismo perante o insondável mistério que cada ser humano representa. O jovem e delicado Johann Buddenbrook preferiu o mistério da morte à segurança da genealogia. Um verdadeiro republicano.

Jornal Torrejano


Está online a edição desta semana do Jornal Torrejano. A crónica semanal deste blogger trata de questões de família.  

21/09/11

Sol na eira e chuva no nabal


Esta coisa da "Dieta orçamental é para durar vinte anos, avisa o FMI" já pouco me perturba. Sei lá se duro vinte anos ou, mesmo, vinte segundos. Menos pobre ou mais pobre, o que for soará. No entanto, há uma coisa que me perturba. Tem a ver com as nossas conquistas civilizacionais. O controlo da natalidade, a submissão pura da corrente biológica, fundada no impulso erótico, ao mais rasteiro cálculo de oportunidades está a levar o Ocidente para um beco sem saída. Há dias, por motivos que não interessam para aqui, estava a ler uns textos, de 1904, de Júlio de Matos, onde ele se insurgia contra a insouciance do proletariado e a sua transbordante capacidade de semear prole. Passado um século, introduzidos a pílula e o planeamento familiar, o que diria Júlio de Matos? Não é apenas o desequilíbrio orçamental que é problemático devido à falta de renovação das gerações. É a decadência das instituições, das ideias, dos projectos. Uma sociedade em que a pirâmide etária está invertida, onde os velhos são cada vez mais e os novos cada vez menos, só pode ter pensamentos soturnos e mórbidos. As nossas sociedades já não pensam, apenas cismam. Como pode haver projectos novos, invenção de caminhos, um golpe de asa que altere a situação? Gostámos muito da liberdade sexual que a pílula trouxe, da comodidade que é evitar ter três ou quatro filhos, do fim do império da Igreja sobre as consciências. O dinheiro serviu para carros, casas, viagens. Mas, como se diz no campo, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. A vida é muito mais misteriosa do que a nossa pequena razão consegue calcular. Há que pagar a factura. 

20/09/11

Um deus travesso


Ando há uns dias para comentar este post da Ivone. Não vou entrar na interessante discussão teórica por lá havida. O que me interessa é o último parágrafo. Diz a Ivone: "Sim, meus caros, eu sei: a Grécia e a crise e o euro e a vida. Eu sei, também a conta da água e o meu subsídio de Natal vai descer aos Infernos. Mas sem a literatura, sem a arte, tudo me seria mais difícil." Eu compreendo o deslumbramento perante o livro da Maria Teresa Horta. Ofereci-o à Helena e li um pouco. A escrita é absolutamente luminosa. 

O que há de surpreendente, porém, nos dias de hoje é o carácter ficcional de tudo o que acontece. A Grécia e a crise e a senhora Merkel e os verdadeiros finlandeses e os mercados e as bolsas e o euro e a vida, mais a conta da água e o subsídio de Natal, bem como o Jardim e a Madeira e o BPN, tudo isso é o exercício de um supremo artista, que vai tecendo o plot ao mesmo tempo que se ri das lamentações vagas e irrisórias das personagens. Vivemos na época em que a arte triunfou. Não passamos de personagens, pequenas personagens, de uma intriga onde as peripécias se sucedem ao ritmo determinado pelo arbítrio do criador. Uma personagem romanesca, como se sabe, é impotente perante o desígnio do autor. 

Assim, eu e a Ivone e a generalidade dos portugueses que viram os seus subsídios de Natal descer, como Orfeu, aos Infernos não somos menos impotentes, apesar da nossa aparência de seres racionais dotados de vontade, que as personagens romanescas. As peripécias da Madeira, o ar de bom rapaz do dr. Passos Coelho ou o matiz de sacristão do dr. Seguro, tudo isso faz parte não de uma conspiração contra a razão, coisa que há uns dez anos eu ainda acreditaria, mas de um supremo exercício artístico, com o qual um deus travesso se diverte, com ligeiro enfado, nas longas tardes da eternidade olímpica. Talvez fosse melhor que jogasse xadrez, mas parece que descobriu, para nossa infelicidade, uma veia artística. A Ivone, que me perdoe, mas labora num equívoco. Tudo se tornou literatura e arte, e por isso é tão fácil de acontecer.

16/09/11

Dinamarca, o retorno da esquerda

(Foto no Público)

Uma coligação de esquerda, liderada pela senhora Helle Torning-Schmidt, venceu as eleições dinamarquesas, e pôs fim a dez anos de governação de direita. A Dinamarca está confrontada com um défice público de 4,6% do PIB e um desemprego jovem na área dos 10%. Retorna agora à velha tradição social-democrata. Uma política fiscal mais rigorosa, investimento público e reforma do mercado de trabalho. Apesar de ser provável a vitória da direita nas próximas eleições espanholas, é possível que as eleições dinamarquesas anunciem a próxima deslocação do pêndulo político europeu para o centro esquerda. Resta saber como as questões do Euro e das dívidas soberanas vão influenciar, nos próximos anos, o destino da União e a percepção da realidade por parte dos eleitores.

Jornal Torrejano online


Está online a edição semanal do Jornal Torrejano. A crónica deste blogger tem por título A moral setentrional.

15/09/11

As tensões dos mercados


Os principais bancos centrais do mundo vão avançar com operações de injecção de liquidez nos bancos, para travar as tensões do mercado monetário. O interessante da situação é que ela reduziu a economia ao dinheiro, isto é, à pura informação. Não foram apenas os seres humanos que desapareceram da economia, também as mercadorias, os bens e os serviços se volatilizaram. Agora tudo se passa como se a vida material se tivesse reduzido a uma espécie de jogo do monopólio, mas de onde desapareceram as casas, os bairros, as estações, as companhias. Restam apenas as notas, transformadas num sinal electrónico no monitor de um magalhães (isto antes deste ter sido suspenso para avaliação). A verdade, porém, é que por todo o mundo, e com especial incidência em países como Portugal, a informação electrónica corre, em profusão, das nossas contas bancárias para os senhores do mercado monetário, talvez para lhes acalmar o nervosismo e as tensões. Coitados, há vidas duras.

14/09/11

A bondade moral da mentira a si mesmo


Um estudo publicado na revista Nature chega a uma interessante conclusão. Possuir uma visão adequada da realidade é uma desvantagem competitiva. Os indivíduos que possuem excesso de confiança, quando em situações de competição por recursos cujos benefícios sejam suficientemente grandes em relação aos custos, têm vantagem competitiva sobre os que têm uma visão adequada da realidade. Por outro lado, quando se está perante conflitos com um custo elevado, a selecção favorece aqueles que têm uma visão subavaliada das suas capacidades. Em caso algum, aqueles que possuem uma auto-avaliação realista e adequada são seleccionados.

Deste ponto de vista e contrariamente à moral tradicional, a auto-ilusão e a mentira sobre si mesmo são um bem, enquanto a perspectiva moral que ordena o auto-conhecimento induz uma desvantagem. O célebre oráculo de Delfos, que ordenou a Sócrates conhece-te a ti mesmo!, nada sabia dos processos de selecção. Não bastava a já velha diatribe de Nietzsche contra a verdade. Agora ficamos a saber que é melhor possuir uma imagem ficcional e desadequada da realidade para podermos sobreviver. Assim sendo, o Nietzsche de a Origem da Tragédia tem completa razão. A preocupação do homem teórico, a preocupação com a verdade enquanto adequação do conhecimento à realidade, é uma patologia.